sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

Revisitando Lovecraft: Relemos o Conto "Os Sonhos na Casa da Bruxa" (1933)


Bem vindos de volta a Revisitando Lovecraft, onde nós fazemos uma releitura de algumas das histórias do velho Cavalheiro de Providence em busca de coisas que deixamos passar e curiosidades escondidas no texto.

Nesse artigo vamos esmiuçar uma de suas histórias mais tétricas de Lovecraft "Os Sonhos na Casa da Bruxa". Uma curiosidade interessante é que este conto já foi filmado em duas ocasiões em séries de antologia. A primeira foi em Mestres do Horror (2002), sob a direção de Stuart Gordon. Na segundo e mais recente oportunidade tivemos o conto revisto em Gabinete de Curiosidades de Guillermo Del Toro (2022).

Na primeira oportunidade o conto foi adaptado com maior fidelidade embora o orçamento fosse consideravelmente menor e os efeitos um tanto mais canhestros. Na segundo oportunidade, a história foi dramaticamente alterada fazendo com que ela tivesse pouco (de fato, muito pouco) do conto original além do nome dos personagens.

"Sonhos na Casa da Bruxa" como o próprio título sugere está inserido no Ciclo dos Sonhos de H.P. Lovecraft. Trata-se de um conto envolvendo elementos típicos de um horror mais convencional (uma casa assombrada, uma bruxa, um familiar etc.), mas que mergulha em alguns conceitos do Mythos de Cthulhu. 

A história foi escrita entre Janeiro e Fevereiro de 1932, e publicada em Julho de 1933 em Julho na edição número 22 da revista Weird Tales. Na descrição os editores a definiram da seguinte forma: "Uma história de Matemática, feitiçaria e a Noite de Walpurgis, na qual o terror espreita e cresce - uma nova história do autor de 'Ratos nas Paredes'.  


SUMÁRIO:

Walter Gilman, estudante da Universidade Miskatonic, começa a traçar uma conexão entre o Folclore Antigo em Arkham e a Matemática e Física modernas. Ele estuda livros esotéricos como o Necronomicon e o Livro de Eibon até que os professores interrompem seu acesso a eles. Mas eles não podem impedi-lo de alugar um quarto numa velha casa que pertenceu a Keziah Mason. Keziah foi uma feiticeira nos tempos coloniais, levada perante o tribunal de bruxaria de Salem em 1692. Ela admitiu servir com lealdade um Homem Negro que lhe ensinou os portentos da magia. Ela alegava conhecer linhas e curvas que levavam além do nosso mundo. Valendo-se deste conhecimento, a bruxa escapou de sua cela deixando apenas desenhos nas paredes. 

Essa lenda fascina Gilman. Ele não se importa com os rumores de que Keziah e seu familiar Brown Jenkin ainda assombram a casa onde ele busca refúgio. Na verdade, ele seleciona o próprio quarto do sótão em que a bruxa praticava seus feitiços. Ele é irregular, com uma parede inclinada para dentro e o teto inclinado para baixo, de modo que os dois planos enviesados ​​criam ângulos singulares. Esta arquitetura bizarra também cria um loft entre o telhado e a parede externa, mas esse espaço está fechado há muito tempo e o proprietário se recusa a abri-lo.

Seja pela atmosfera sombria de Arkham ou pelo conteúdo de seus estudos, Gilman começa a ter sonhos febris em que mergulha num abismo aterrorizante de “crepúsculo inexplicavelmente colorido e sons desconcertantemente desordenados”. Os ângulos estranhos acabam causando visões inquietantes e minando a saúde física e mental do estudante.

Após estes sonhos, Gilman começa a experimentar alucinações em que Brown Jenkin e a Bruxa Keziah Mason, vem até ele. Sua audição fica desconfortavelmente aguda e ele ouve arranhões no sótão acima de seu quarto. Nas aulas, ele formula teorias bizarras: com o devido conhecimento matemático, um homem pode passar da quarta dimensão para outras regiões do espaço. Ele sugere ainda que em alguns bolsões do espaço, o tempo pode não existir, de modo que um estrangeiro pode ganhar a imortalidade, envelhecendo apenas em passeios de volta ao espaço contínuo.

Meses se passam e os sonhos febris diminuem. Os demais inquilinos, em geral estrangeiros dizem que Gilman se tornou sonâmbulo e o alertam para se proteger durante a temporada de Walpurgis. Gilman dá de ombros, mas se preocupa com uma velha que vê nas ruas. Em seus sonhos, a velha  Keziah aparece em seu quarto. Em seus delírios ele é levado a um terraço sob três sóis. Uma cidade alienígena se estende abaixo até onde a vista alcança. Keziah e Brown Jenkin estão acompanhados de seres alienígenas, em forma de barril e com cabeça de estrela. Gilman acorda com a queimadura do sol; mais tarde, o senhorio descobre uma imagem de metal em sua cama, um ser em forma de barril e com cabeça de estrela. Gilman se recorda de ter quebrado o enfeite da balaustrada do terraço em seu "sonho".


O "sonho" seguinte leva o inquilino até o loft sobre seu quarto, um covil repleto de livros e objetos estranhos que pertenceram à bruxa. Keziah o apresenta a um homem enorme de pele negra, com vestes negras, que quer que ele assine um livro. Keziah providencia a pena. Brown Jenkin morde o pulso de Gilman para fornecer o sangue que ele usará como tinta. Ele desmaia, mas depois se lembra de uma nova jornada em vazios negros, ao longo de "curvas alienígenas e espirais de algum vórtice etéreo", em um caos final de sombras saltitantes e flautas monótonas. Ele desperta desse sonho com o pulso ferido.

Gilman leva a imagem de metal a professores, que não conseguem identificar os elementos constitutivos de sua liga. Ele consegue dormir no quarto de um outro inquilino chamado Elwood, mas Keziah ainda o arrasta para um beco onde o Homem Negro espera para realizar o medonho sacrifício de um bebê inocente. Gilman tenta fugir, mas o Homem Negro o agarra e estrangula. As marcas de seus dedos permanecem pela manhã em sua garganta e os jornais relatam o sequestro de uma criança de uma lavadeira polonesa. Os poloneses não estão surpresos - tais abduções são comuns em momentos perigosos como o iminente Dia de Walpurgis - quando o Sabá das Feiticeiras é mais poderoso.

Em 30 de abril, véspera de Walpurgis, Gilman está escondido no quarto de Elwood. Ele ouve o som de feiticeiros que supostamente se encontram em uma ravina perto de Arkham. O mesmo ritmo reverbera nos abismos por onde Brown Jenkin o conduz. Eles emergem no loft, onde Keziah está prestes a sacrificar a criança roubada. Gilman se sente compelido a ajudar, mas luta para se livrar do transe. Ele estrangula Keziah com a corrente de um crucifixo que um dos inquilinos poloneses ofereceu como proteção. Brown Jenkin no entanto abre o pulso da criança e coleta seu sangue em uma tigela de metal. Gilman chuta o familiar para o espaço entre o chão e a parede.

No dia seguinte, um médico descobre que os tímpanos de Gilman estão seriamente comprometidos. Embora ele possa ter matado Keziah e ferido Brown Jenkin, o rato familiar faz uma nova visita naquela noite para morder seu peito, devorar seu coração e matá-lo.

Depois de todo esse horror, a Casa da Bruxa é fechada e seus moradores a abandonam de uma vez por todas. Anos mais tarde, um vendaval destrói o telhado da velha casa. Os trabalhadores chamados para colocá-la abaixo encontram o espaço do sótão que revela ossos recentes de crianças, o esqueleto de uma velha e objetos místicos. Eles também encontram o crucifixo usado por Gilman e um pequeno esqueleto que confunde o departamento de anatomia comparativa da Miskatonic. Ele parece de um rato, mas com patas como as de um macaco e um crânio parecido com o de um humano.

Os poloneses acendem velas na Igreja de St. Stanislaus para agradecer que o riso fantasmagórico de Brown Jenkin nunca mais será ouvido.


DISSECANDO O CONTO:

O que é Tipicamente Lovecraftiano: Lovecraft aproveita para inserir dois elementos distintos de sua mitologia quando Gilman viaja através do vazio. A Cidade alienígena habitada pelos Seres Ancestrais (apresentados em detalhes em At the Mountains of Madness) e o Trono de Azathoth, no centro do Universo. 

O que é Degenerado: Como sempre, Lovecraft introduz uma série de vizinhos estrangeiros cheios de costumes e superstições. No fim das contas, eles parecem rir por último, já que as tais superstições, na história são 100% certas.

A Coisa Rato, o monstrinho pavoroso que atende pelo nome de Brown Jenkin também parece ser um habitante degenerado da Nova Inglaterra que faz o nariz aristocrático de Lovecraft torcer de desgosto.

O que Pertence ao Mythos: Nyarlathotep faz uma aparição em carne e osso, usando o disfarce do Homem Negro. Esse avatar é uma de suas máscaras mais conhecidas, ligada a bruxaria, ele seria um tipo de patrono das feiticeiras. Ele aparece repetidas vezes, acompanhado convenientemente de Keziah Mason sua aprendiz nos caminhos da magia e rituais. Ele também figura tentando convencer Gilman a saltar nos espaços vazios que induzem crises de sanidades.

Temos também uma aparição luxuosa de Coisas Ancestrais, os estranhos seres em formato de barril que acompanham a Bruxa através dos vazios de espaço-tempo.

Finalmente, Azathoth, o todo poderoso Deus da Entropia, o Sultão Demoníaco faz uma aparição relâmpago em seu trono instalado no Centro do Universo.

Tomos e Livros: Gilman encontra pistas que servem para colocá-lo no caminho correto de suas investigações consultando vários livros na Biblioteca Orne da Miskatonic. Insinuações obscuras sobre a verdadeira natureza da bruxaria podem ser encontradas, segundo ele, nas páginas do Necronomicon, no fragmentário Livro de Eibon (criado por Clark Ashton Smith em 1932) e no Unausprechlichten Kulten de Von Junz (mencionado por Robert E. Howard em 1931). Os livros como sempre figuram como itens centrais na trama.

Há também a menção a um Livro no qual os bruxos e indivíduos corrompidos por eles assinam seu nome com sangue. O livro é parte do folclore da Nova Inglaterra e é uma parte conhecida da mitologia da Caça às Bruxas. Livros Demoníacos eram assinados com sangue à fim de firmar a barganha final ou pacto entre o demônio e aqueles que aceitavam se submeter a ele.

O que é Insano: Gilman até começa a história com uma boa sanidade, mas no decorrer da trama ele escorrega lentamente para a mais completa loucura. Sua mente racional, típica de um matemático brilhante, não é capaz de suportar as revelações de um mundo sobrenatural. A medida que ele descobre horrores nos seus pesadelos febris, Gilman começa a questionar sua própria razão. É claro, para um matemático, nada pode ser mais apavorante do que ângulos impossíveis que literalmente pulverizam sua sanidade tanto quanto as aparições da bruxa e seu familiar.


COMENTÁRIOS

- Diz a lenda que Lovecraft ofereceu a seu amigo e fiel colega de correspondência August Derleth a oportunidade de ler seu novo conto "Sonhos na Casa da Bruxa" em primeira mão. Derleth assim o fez, mas quando terminou não sabia o que dizer ao amigo. Ele, no entanto, deixou claro que não havia gostado nem um pouco da história.

A resposta negativa de Derleth a "Sonhos" parece ter atingido Lovecraft em cheio. Por fim, ele concordou com Derleth que o material era uma "bagunça miserável" e por algum tempo se recusou a enviar o conto para ser avaliado para publicação. Ironicamente, ou talvez caracteristicamente, o próprio Derleth submeteu posteriormente a história à Weird Tales que aceitou a versão e a publicou na íntegra. Isso comprova a afirmação original de Derleth de que, embora "Sonhos" fosse uma história ruim, ao menos, era vendável.

Lovecraft via uma grande diferença entre "vendável" e "realmente bom" e detestava usar material que estivesse aquém de suas habilidades como autor. Em certa altura ele chegou a se perguntar se seus dias de escritor de ficção haviam acabado. Por algum tempo ele chegou a cogitar abandonar sua carreira, mas felizmente a reviravolta viria logo depois com o magnífico "Shadow Out of Time" que lidaria de forma mais eficaz com tópicos cósmicos abordados.

A base científica de "Sonhos" é realmente um tanto confusa, já que Lovecraft buscou seguir os conceitos mais "modernos idealizados por Planck, Heisenberg, Einstein e de Sitter". Temos um esforço para explicar a quarta dimensão e hiperespaço, conceitos que o próprio Lovecraft dizia não compreender inteiramente, mas que poderiam ser interessantes para sua trama. Na história, Lovecraft mistura Física Aplicada ao Folclore Colonial da Nova Inglaterra, em especial a Arkham, tratada de forma mais taciturna e purulenta do que nunca. 


É uma mistura maravilhosa mas que, por vezes, ameaça desestabilizar a trama alternando momentos de Ficção Científica e Horror Gótico. Hoje conseguimos enxergar a genialidade dele ao combinar esses temas, mas na época era uma ousadia grande demais e talvez, por conta disso, a história acabou sendo muito criticada. Por pouco Lovecraft não destruiu o texto, o que teria sido muito triste já que "Sonhos" é hoje um de seus contos mais populares.

- Não há nenhuma "Keziah" ou mesmo "Mason" nos documentos e registros da Caça às Bruxas. Lovecraft disse que pesquisou se os nomes estariam em algum processo real, pois temia que alguém pudesse se ofender com a representação de um ancestral envolvido diretamente na Caça às Bruxas.

- Lovecraft teve o cuidado de informar que as viagens durante o sono de Walter Gilman eram de fato experiências corporais, e não meros sonhos. Quando o malcriado Brown Jenkin morde Gilman, Gilman acorda mordido. Quando ele viaja pelo vazio transdimensional para um planeta com três sóis, ele acorda com uma queimadura infernal. Tudo que acontece em seus sonhos se reflete no mundo desperto. Além disso, ele traz de volta uma lembrança em forma de enfeite de metal criado com elementos desconhecidos!  

Fica claro também que Keziah e Brown Jenkin não são fantasmas, espíritos ou seres imaginários. A dupla está viva em sua época tanto quanto estavam em 1692. Isso se deve às suas viagens exploratórias pelo vazio e por passar a maior parte do tempo em regiões atemporais onde ninguém envelhece. Pelo menos é o que Gilman insinua em sua conversa com Elwood, outro aluno que está lá para ajudar a explicar o funcionamento das teorias para o leitor.

- O conto tem alguns trechos saborosos envolvendo localidades que Lovecraft usou ou que viria a usar em outras de suas histórias. Um desses é o Trono de Azathoth, uma dimensão negra onde flautas tocam e gigantescos Deuses Exteriores dançam ao redor do Todo Poderoso Caos Entrópico que é Azathoth. Este é o tipo de excursão que deveria explodir com a sanidade de qualquer um, contudo Gilman consegue superar esse horror indizível com relativa facilidade.


Outra viagem alucinante do matemático é para o planeta de três sóis, especialmente porque traz os Seres Ancestrais com cabeça de estrela que passamos a amar tanto depois de "Nas Montanhas da Loucura". Gilman viaja para esse lugar misterioso visitado anteriormente por Keziah Mason e onde ela recebeu instruções sobre a hipermatemática.  Há pouca relação com a história principal, além de dar um exemplo de quão longe uma viagem quadridimensional pode levar alguém.

A razão pela qual ninguém na Universidade Miskatonic parece saber sobre a Raça Ancestral é que a Expedição à Antártida ainda não havia acontecido. Sonhos na Casa da Bruxa se passa entre 1927 e 1931, quando a casa é destruída de uma vez por todas. A expedição, relatada em detalhes pelo Professor Dyer em "Nas Montanhas da Loucura" ocorre apenas em 1931. Imagino a perplexidade se alguns dos sobreviventes da Expedição um dia descobrissem que objetos semelhantes aos achados no Continente Gelado surgiram misteriosamente em Arkham. Sanidade, por favor...     

- A participação de Nyarlathotep nesse conto é uma grande sacada de Lovecraft. Para os colonos puritanos da Nova Canaan, Satã (o Grande Inimigo de Deus) podia assumir muitas formas, desde animais (pássaro branco, gato preto, sapos) até humanos (em especial um homem negro). Lovecraft sugere aqui - de modo muito inspirado, que o diabo não é nada mais do que uma das Máscaras de Nyarlathotep, interpretada dessa forma pela moral puritana.

Lovecraft dessa vez tem o cuidado de nos dizer que não se trata de um homem negro africano, embora em duas ocasiões testemunhas o confundam após um olhar de relance. O Avatar do Homem Negro tem a pele "preta como piche" - possivelmente escuro como carvão ou ônix, um tom que não é natural para a pele humana. Suas feições não são "negroides" e seus olhos são verdes emanando um brilho sobrenatural. Não tenho certeza, mas parece claro que estamos falando de uma figura que claramente NÃO é humana. Lovecraft é estranhamente tímido sobre os cascos fendidos, que deveriam ser a característica mais marcante dessa criatura. Eles estão sempre escondidos atrás de uma mesa, depois na lama profunda ou sob o manto que ele usa. Mesmo assim, podemos ouvir o inconfundível som de cascos sobre o piso. 

- Uma coisa interessante nesse conto é que embora a feiticeira use magia baseada em hipermatemática e conceitos de física aplicada, ela também recorre a elementos de bruxaria clássica. Destes o mais marcante sem dúvida é Brown Jenkin, seu rato familiar com rosto de gente.


Na Feitiçaria clássica europeia, o Familiar é uma espécie de espírito que assume a forma de um animal para servir ao bruxo como ajudante, espião, conselheiro ou mensageiro. A superstição remonta a Idade Média, onde gatos (em especial o Gato Preto) era considerado muitas vezes como companheiro de bruxos e feiticeiros, contudo, corvos, sapos, cobras e outros animais também podiam ser familiares. A crença de que bruxos possuíam tais seres foi carregada para a América e nos tempos coloniais era algo enraizado no inconsciente coletivo das pessoas. Um Familiar podia agir como os olhos e ouvidos de uma bruxa e através dele, ela podia realizar os mais variados sortilégios. 

Brown Jenkin, embora se encaixe no termo "Familiar" parece ser algo diferente em relação aos espíritos animais que povoam o imaginário medieval e colonial. Ele, afinal de contas, tinha uma face e modos que o tornavam mais parecido com um homem amaldiçoado do que um espírito que assumiu a forma animal. Lovecraft deixou em aberto qual a origem de Brown Jenkin, mas ao apresentar a repugnante criatura, manteve vários elementos que o identificam primordialmente como um Familiar - ele é um espião, protetor e companheiro de Keziah Mason, fazendo de tudo pela sua ama e senhora. 

- Ainda no que diz respeito a bruxaria, em seu sentido histórico imaginado e muito temido por cristãos nervosos, ela é um tema que permeia toda a obra de Lovecraft. Se você tiver um antepassado que mexeu com magia negra, e estiver interessado em descobrir a história de sua família, pode ter certeza que não é uma boa ideia. A Caça às Bruxas de Salem está presente em várias histórias de Lovecraft, o que é natural já que ele viveu na região onde tudo aconteceu e História Americana Colonial era um dos seus temas favoritos. 

Não é de se estranhar, portanto, que mesmo os seres alienígena de além das estrelas, como os Mi-Go possuem rituais e um estilo de magia que se assemelha aos rituais de bruxaria empregados por feiticeiras. Tanto os Fungos de Yuggoth quanto as cabalas de feiticeiras celebram rituais de Beltaine e saem na Lua Cheia para fazer seu Gorgo Morgo


Em "Sonhos na Casa da Bruxa" temos a explicação perfeita para isso: todos esses rituais antigos são maneiras de canalizar o poder do Mythos. Alguns seres veem isso como matemática, lógica aplicada ou metafísica, aos olhos dos bruxos e feiticeiros de outrora, eram rituais arcanos de louvor e devoção. Mas no fim, todos eles obtinham os mesmos resultados. 
 
O que é bem interessante, na verdade. Claro, nós humanos não fomos, via de regra, feitos para utilizar esse conhecimento e quem o faz acaba enlouquecendo, mas a ideia de algum tipo de sistema de magia, por mais  caótico e bizarro que seja, conectando raças tão díspares, é bastante estimulante. 

- Outro aspecto levantado nesse conto é o papel vital da Matemática como uma espécie de "idioma comum em todo universo". Ela é uma espécie de constante na qual as fundações do universo se equilibram. E num universo caótico como o idealizado por Lovecraft, no qual o Mythos desafia a própria noção de lógica racional, algo que é constante não pode ser desprezado. A hiper-matemática usada por Gilman e dominada por Keziah Mason constitui uma espécie de linguagem mágica usada como tal para abrir portais e conjurar seres de realidades paralelas.

Matemática e folclore aliás são dois cursos bastante difundidos na Universidade Miskatonic. É importante tomar cuidado com quem estuda os dois nas histórias lovecraftianas. A matemática diz como fazer as coisas, já o folclore aponta que o que você está prestes a fazer é má ideia.

Lovecraft, obviamente não era um grande fã de matemática – ele sempre disse que foram suas notas baixas na disciplina que impediram seus estudos de astronomia, carreira que desejava seguir. Ainda assim, para um noob, ele demonstrava um profundo interesse em conceitos matemáticos, ainda que os utilizasse de forma distorcida para criar os "ângulos não-euclidianos" que enlouqueciam seus personagens.


Sua sugestão de que a matemática é capaz de abrir vastas perspectivas no cosmos que ameaçam a sanidade torna o assunto ainda mais curioso. O estudo profundo de cálculo, a resolução de fórmulas e a solução de teoremas dão ensejo a portas dimensionais sendo abertas, janelas se escancarando e horrores tentaculares escorrendo para nosso lado. O que poderia ser mais legal? Dá até vontade de estudar matemática... (só que não) 

- "Sonhos na Casa da Bruxa" oferece um outro vislumbre curioso no que diz respeito a relação de Religiões e o Mythos. Em geral, Lovecraft transferia para suas histórias a crença inabalável que fazia de si mesmo um "Materialista Convicto". Ele não tinha aversão a religião, tendo sido ele próprio educado em uma família cristã, contudo seu interesse no assunto era quase nulo. Ele deixava claro em suas histórias que o horror do Mythos transcendia a pífia noção teológica humana. Os Deuses do Mythos eram reais, os do homem, mera construção sociocultural. 

É surpreendente encontrar uma história, quanto mais uma que está incrivelmente inserida dentro do Horror Cósmico, onde um símbolo religioso se mostra capaz de salvar o protagonista. Na história, quando Gilman arranca o cordão com o crucifixo que estava em seu pescoço e mostra para a Bruxa, ela reage "com pânico", permitindo a ele escapar de seu ataque mortal. É possível que essa seja a única oportunidade em que um símbolo ligado a uma "fé humana" surtiu algum efeito contra o Mythos ou seus utilizadores.

Talvez Lovecraft tenha tentado demonstrar que embora Keziah Mason estivesse em conluio com as forças do Mythos, ela própria, não era um ser sobrenatural, mas um ser humano. E como tal estava atrelada a superstições e noções morais do século XVII. Isso explicaria a razão pela qual ela reage temendo o crucifixo e seus "poderes".

Bem, creio que seja isso...

Relendo "Sonhos na Casa da Bruxa" só posso dizer que ele melhora com o tempo.

Um comentário:

  1. Amei o post. Eu adoro o blog de vcs. Vcs devem conhecer mtos livros né? Será que podem me ajudar? Eu queria muito ler livro de bruxa, mas sabe bruxa de vdd, nao essas teen boazinhas de hj em dia. Tipo cadê os livros de bruxas más? Que comem crianças, que são velhas, que voam em vassouras, que gargalham, que gostam de satan... sabe bruxa clássica mesmo, vcs conhecem algum livro de bruxa assim? sinto que as bruxas clássicas estão sumindo :/

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