segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O Amuleto do Mastim Alado - Um artefato aterrorizante de um Culto tenebroso

No caixão estava um amuleto de desenho curioso e exótico, que aparentemente tinha sido usado em volta do pescoço do dorminhoco. Era a figura estranhamente convencionalizada de um cão alado agachado, ou esfinge com um rosto canino, e foi primorosamente esculpido em estilo oriental antigo a partir de um pequeno pedaço de jade verde. A expressão de suas feições era extremamente repulsiva, saboreando ao mesmo tempo morte, bestialidade e malevolência. Ao redor da base havia uma inscrição em caracteres que nem St. John nem eu conseguimos identificar; e na parte inferior, como o selo de um fabricante, estava gravado um crânio grotesco e formidável.

H.P. Lovecraft - O Mastim

Agindo no submundo, longe dos olhos de testemunhas inocentes, os Cultos devotados aos horrores do Mythos de Cthulhu tentam a todo custo manter uma fachada de sigilo indevassável. Afinal, é uma das prerrogativas mais valiosas de qualquer sociedade secreta, manter-se como tal, privando o público de suas ações perniciosas. De que outra forma conseguiriam prosperar se os seus rituais e tradições fossem partilhadas abertamente?

Entretanto, de tempos em tempos, um fragmento de tais atividades medonhas acaba escapando e rompendo a superfície para ser resgatado por indivíduos que só então conseguem obter um lampejo desses cultos abomináveis. Muitas vezes, é por intermédio de artefatos pertencentes a cultos e resgatados por terceiros que temos uma visão das suas atividades mais reprováveis. Os artefatos usados por um Culto dizem muito a respeito dele e de seus membros, lançando uma luz sobre aquilo que eles tem de mais enigmático.

Tomemos por exemplo o blasfemo Culto dos Devoradores de Cadáveres de Leng sobre o qual se sabe muito pouco, mas cuja existência é comprovada pela existência de amuletos usados por eles em seus ritos mais sagrados. Sobre o Culto falaremos mais a miúde posteriormente, já que esse artigo se debruça sobre os curiosos artefatos usados por estes devotos como uma espécie de distintivo de honra.

Esses pequenos berloques são muito bem protegidos pelos sectários e é extremamente raro que um deles seja encontrado ou reclamado. Em geral, ao tomar conhecimento que uma dessas joias cai em mãos de estranhos, os membros do Culto devotam grande esforço para recuperá-las. Há boatos de que uma peça em poder do Museu de Chicago, que estava em exibição na ala de antropologia oriental, foi roubada em plena luz do dia por um indivíduo que quebrou o display e tomou a peça antes de poder ser detido. Outro amuleto similar encontrado pelo arqueólogo e aventureiro Monterrey Jack em uma expedição a Península de Yucatán, teria sido roubado do Museu Nacional de Antropologia da Cidade do México em 1932. Na ocasião um guarda de segurança foi morto e um escândalo foi abafado à respeito de como se deu o roubo na instituição. Seja como for, é possível que outros desses amuletos tenham chegado às mãos de colecionadores privados e museus ao redor do mundo. É provável que muitos deles desconheçam o perigo que correm, meramente em possuir tais objetos em seus acervos.

Os amuletos podem se diferenciar em pequenos detalhes, variando em decorrência do ramo do culto que o criou, mas em geral eles guardam similaridades. São talhados em uma peça única de jade verde profundo. De fato, seus criadores se esmeravam em selecionar as melhores peças minerais, quanto mais verdejante melhor, para a criação dos artefatos. Os amuletos eram confeccionados por artesãos experientes que faziam parte do culto e que concediam à peça a forma desejada. Ele poderia ter formato arredondado achatado, uma forma de drágea ou ainda ser esculpida como uma pequena estatueta. No oriente esta última modalidade é a mais comum, enquanto na América Central, a preferência seja por formas arredondadas. Sabe-se de um secto na Rússia que utilizava peças em forma de gota com detalhes em ouro. De todo modo, os amuletos possuem um cordão, geralmente de couro cru, para que possa ser vestido ao redor do pescoço como forma de identificação.

É comum a todos os amuletos, não importa a cultura, que ele traga a imagem de uma criatura agachada semelhante a um grande cão de corpo delgado dotado de asas, do qual decorre seu nome - Amuleto do Mastim Alado. A representação lembra uma esfinge, com feições claramente caninas, embora um exame mais detalhado mostre detalhes perturbadores na anatomia da criatura. Alguns estudiosos que examinaram o item conceberam erroneamente a teoria de que a entidade retratada fosse o Deus central do Culto, quando na realidade ele é uma espécie de Guardião ou Custodes da seita. É comum que o amuleto traga inscrições com símbolos no verso, em geral caracteres do degenerado povo Tcho-Tcho que teriam sido os precursores na criação desses artefatos. Esses caracteres por vezes sofrem alterações, perdendo seu significado ao longo das gerações, ainda que no Planalto de Leng as peças encontradas mantenham os símbolos intactos. A tradução do trecho é aberta a interpretações, mas acredita-se que o significado mais correto seja algo como:

"Oh, morte fiel que vem nas asas do guardião, 

Não se atrase jamais"

Os amuletos muitas vezes trazem em algum lugar o desenho de um crânio humano estilizado, com a boca aberta deixando à mostra dentes afiados. Este emblema é o símbolo mais conhecido do Culto dos Devoradores de Cadáver de Leng, uma imagem tétrica que se traduz em terror para muitos povos que tiveram o azar de cruzar o caminho dessa seita profana de canibais.

Segundo as crenças sagradas do Culto, os amuletos são criados quando uma vítima usando o amuleto em volta do pescoço é sacrificada por um sacerdote. Geralmente esse sacrifício se dá por enforcamento através de um garrote, mas algumas seitas utilizam um pesado porrete para desferir um golpe certeiro na testa da vítima. O cadáver então é preparado ritualisticamente para consumo, com o Sacerdote responsável pelo ritual se alimentando do coração e oferecendo o restante do corpo aos demais membros numa ceia comunal. Simbolicamente a alma da vítima é marcada e conduzida para um limbo dimensional em que os Mastins Alados habitam. Lá essa alma infeliz é caçada, feita em pedaços, mutilada e devorada pelas grandes bestas através da eternidade. Esse sustento espiritual é oferecido ritualisticamente a cada ano. O amuleto então é removido e presenteado a um membro escolhido pelo sacerdote e que provou seu valor diante da congregação. Ele simboliza um reconhecimento a dedicação e lealdade de um cultista.

Uma vez que o amuleto foi usado para capturar um espírito, acredita-se que ele conserva uma parcela de sua energia vital, podendo ser drenada pela pessoa que o possui. Alguns acreditam que o detentor de um amuleto é capaz de se comunicar com a alma da vítima presa no limbo e que sofre tormentos inenarráveis. Esses amuletos permanecem geralmente escondidos, sendo usados apenas durante os rituais e reuniões do Culto. Membros fora da Seita não devem tocá-los ou mesmo saber de sua existência. Geralmente esses colares são recolhidos após a morte de seu dono e concedidos a outros membros, contudo não é impossível que eles possam ser sepultados junto com cultistas de grande status. 

Os amuletos são imbuídos de poderes ligados à feitiçaria do Povo Tcho-Tcho e são itens que conservam capacidades necromânticas latentes. Além de permitir que seu detentor fale com o espírito aprisionado em seu interior e se valha de energia mística contida nele, os colares são usados como foco em diferentes rituais ensinados aos cultistas a medida que eles avançam nas fileiras da seita. Há relatos de amuletos sendo utilizados para consagrar os doentios rituais antropófagos, para se comunicar psiquicamente com outros membros, para comungar com entidades não humanas e principalmente para invocar os Guardiões do Culto, os terríveis Mastins Alados.

Para esse propósito, o cultista deve ter aprendido o ritual com algum sacerdote que o julgou apto dessa honraria. Para trazer um Mastim Alado ao mundo dos homens é necessário realizar um ritual em que o sangue do invocador é coletado em uma cabaça combinado a raízes e ingredientes e usado para pintar símbolos arcanos em seu corpo. A magia só funciona à noite, e tem maior chance de ser bem sucedida nas noites sem lua. 

Após cumprir os preparativos e pintar no chão um círculo de magia iluminado por nove velas, o realizador entoa um cântico lamuriento no idioma dos Tcho-Tcho que irá estreitar a barreira entre as dimensões e permitir que o Mastim Alado rasgue esse tecido e adentre nossa realidade. O ritual em geral demora nove horas para ser concluído. Se a invocação for conduzida corretamente, um Mastim Alado irá surgir no centro do círculo desenhado com sangue para ouvir o pedido de quem o conjurou. Em geral, esse pedido envolve a destruição de um inimigo, a obtenção de algum objeto de poder ou alguma outra missão em nome do Culto. 

O Mastim, se julgar o pedido aceitável, partirá então para concluir sua parte do acordo, e ao regressar, cobrará um sacrifício a ser entregue pelo invocador. Entre os Tcho-Tcho esse sacrifício podia ser de qualquer mortal, oferecido como tributo e levado para a Dimensão dos Mastins Alados. Dentre as seitas Mesoamericanas convencionou-se que os feiticeiros oferecessem uma criança para saciar a fome das feras.

Possuir ou pior ainda, vestir o Amuleto do Mastim, é um perigo para qualquer um não iniciado nos mistérios do Culto dos Devoradores de Mortos de Leng. Não apenas os cultistas são capazes de rastrear e atacar quem estiver de posse dele, como entidades sobrenaturais terminam por tornar a vida do infiel desagradavelmente curta. Eventualmente o uso de um desses amuletos acaba por atrair a atenção de um Mastim Alado que aos poucos começa a fazer seu caminho para punir o transgressor que inadvertidamente utiliza o amuleto. Estas bestas ferozes de dimensões distantes são mestres na caçada e terríveis rastreadores. Aos poucos a presença deles pode ser sentida com manifestações selvagens ocorrendo ao redor da pessoa amaldiçoada que passa a ver os contornos de outra realidade e sentir a presença cada vez mais próxima da fera. Algumas vítimas descrevem sentir o cheiro nauseante, o som dos uivos cada vez mais próximos e os latidos ferais das criaturas. Por fim, percebem o contorno dessas criatura se formando cada vez mais perceptível em nosso plano.

Acredita-se que feiticeiros Tcho-Tcho saibam como aplacar a fúria dos Mastins e evitar que eles apareçam para demandar sua vingança perante o transgressor. Mas parece pouco provável que eles compartilhem esse saber.

Eventualmente o Mastim Alado irá conseguir atravessar para nossa dimensão com o intuito de perseguir o transgressor. A criatura buscará capturá-lo e este será carregado de volta para o Limbo Dimensional onde amargará um terrível destino. Não existe nenhuma maneira de ludibriar o Mastim que inicia uma caçada, mas é possível que poderosos feitiços de proteção que envolvem o Símbolo Ancestral ou relíquias extremamente poderosas como o Olho da Luz e Trevas possam ajudar.

NOTA: O Conto "The Hound" escrito por H.P. Lovecraft em 1922 e publicado na Revista Strange Tales de fevereiro de 1924 apresenta esse perigoso objeto amaldiçoado e também o Mastim Alado. 

A história narra as desventuras de uma dupla de violadores de cemitérios que roubam e colecionam peças removidas de ataúdes ao redor do mundo. Em uma visita a Holanda eles encontram uma sepultura incomum e dela extraem um amuleto que tratam como um grande prêmio. No decorrer da história descobrem o terrível preço a ser pago por reclamar inadvertidamente esse objeto. O conto é notável por conter a primeira menção ao célebre tomo de conhecimento blasfemo, o Necronomicon

Ele também é notável pela qualidade repulsiva dos dois protagonistas que não apenas são ladrões de sepultura, mas pessoas de hábitos e costumes extremamente reprováveis. Lovecraft se esmerou ao criar dois de seus personagens mais detestáveis, o narrador da trama e seu amigo, identificado como St. John.

A dupla tem um fim medonho, sendo levados às raias da completa insanidade pela vinda cada vez mais próxima do Mastim Alado que chegaria para puni-los. 

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