sábado, 4 de agosto de 2012

Conto Tentacular - "Impressão Fria" por Ransey Campbell

Por Ransey Campbell
Traduzido por Arthur Ferreira Jr, extraído do Blog "Domínio Publicano"


IMPRESSÃO FRIA
…mesmo os servos de Cthulhu não ousam mencionar Y'golonac, pois virá o tempo em que Y'golonac libertar-se-á da solidão das eras para mais uma vez caminhar entre a humanidade... 
—REVELAÇÕES DE GLAAKI, VOLUME 12

Sam Strutt lambeu seus dedos e os limpou no seu lenço; as pontas de seus dedos estavam cinzentas e sujas de neve da barra da plataforma de ônibus. Então puxou seu livro da sacola de politeno ao seu lado, retirou o tíquete de ônibus do meio das páginas, uniu-o à capa para proteger esta de seus dedos, e começou a ler. Como muitas vezes acontecia, o condutor assumia que o tíquete autorizava a jornada atual de Strutt; e este não o corrigia. Lá fora, a neve rodopiava, descendo pelas ruas laterais e escorrendo por entre as rodas dos carros estacionados.

O barro enlameou suas botas quando saiu da Brichester Central e, escondendo a sacola sob seu casaco para melhor protegê-la, arrastou-se até a banca de livros, quase escorregando nos flocos de neve que se assentavam sobre a rua. As vidraças da banca não estavam bem fechados; a neve havia se infiltrado e caído sobre as brochuras lustrosas. “Olha só isso!” reclamou Strutt com um jovem que estava perto dele e ansiosamente esquadrinhava a multidão, colocando seu pescoço por dentro da gola, como se fosse uma tartaruga. “Não é nojento? Essas pessoas não se importam mesmo!” O jovem, ainda observando os rostos úmidos, concordou de maneira abstraída. Strutt foi ao outro lado da banca, onde o assistente distribuía jornais. “Ei!” chamou Strutt. O assistente, separando troco para um cliente, fez gesto de pedir que esperasse. Sobre as brochuras, pelo vidro esfumaçado, Strutt percebeu o jovem correr e abraçar uma garota, e então gentilmente enxugar o rosto dela com um lenço. Strutt notou o jornal segurado pelo homem que aguardava o troco. Lia-se ASSASSINATO BRUTAL EM IGREJA EM RUÍNAS; na noite anterior um corpo fora encontrado dentro das paredes sem teto de uma igreja de Lower Brichester, quando a neve foi retirada de uma imagem de mármore, revelou macabras mutilações sobre o cadáver, mutilações ovais que pareciam – O homem tomou do jornal e seu troco e saiu para a estação. O assistente voltou-se para Strutt, sorridente: “Desculpe fazê-lo esperar.” “Sim,” disse Strutt. “Você percebe que esses livros estão pegando neve? As pessoas podem querer comprá-los, sabe.” “Você quer comprar um?” respondeu o assistente. Strutt apertou os lábios e voltou-se para o vento que trazia a neve. Por trás dele ouviu o retinir de vidraça contra vidraça.

A banca BONS LIVROS PRA LER NA ESTRADA servia de abrigo a quem passasse; ele fechou a vidraça que batia e começou a checar os livros. Nas prateleiras, os títulos atuais mostravam a capa frontal enquanto outros, a contracapa. Garotas riam próximo a cartões de natal engraçados; um homem de barba por fazer foi pego por uma rajada de vento, cheia de flocos de neve incômodos, e parou, olhando ao redor, incerto. Strutt apertou a língua com os dentes; não deveriam permitir que vagabundos ficassem nas livrarias, sujando os livros. Atento com a visão periférica, para ver se o homem dobraria as capas dos livros, ou quebraria as encadernações, Strutt moveu-se entre as prateleiras, mas não conseguiu achar o que procurava. Porém, conversando com o caixa, estava um assistente que havia conversado com ele, elogiando Noites Violentas no Brooklin quando Strutt comprara esse volume, semana passada, e pacientemente ouvira uma lista das leituras recentes do

professor, embora houvesse parecido que ele não reconhecera os títulos. Strutt aproximou-se e inquiriu:



“Olá – tem outros livros empolgantes para esta semana?”



O homem o fitou, confuso. “Outros...?”



“Você sabe, livros como este?” Strutt levantou a sacola de politeno para mostrar a capa cinzenta de O Mestre do Chicote, de Hector Q., da editora Ultimate Press.



“Ah, não. Acho que não temos.” Tamborilou os lábios. “Exceto – Jean Genet?”


“Quem? Ah, você quer dizer, Jennet. Não, não, obrigado, ele é chato feito água parada.”



“Bem, desculpe, senhor, mas acho que não posso ajudá-lo, então.”



“Oh.” Strutt sentiu-se rejeitado. O homem parecia não tê-lo reconhecido, ou talvez estivesse fingindo. Strutt havia conhecido esse tipo de gente antes, sempre reprovando intimamente seu gênero de leitura. Ele buscou pelas prateleiras novamente, mas nenhuma capa chamou sua atenção. Na porta, desabotoou furtivamente a camisa, para proteger seu livro mais ainda, quando sentiu uma mão descer sobre seu braço. Cheia de gordura, a mão deslizou até tocar sua sacola. Strutt a expulsou com raiva e confrontou o vagabundo.



“Espera um pouco!” sibilou o homem. “Você está procurando mais livros como esse? Eu sei onde pode encontrar alguns.”



Esta abordagem ofendeu o senso orgulhoso de leitura de Strutt, que não tinha razão para ser suprimido. Ele puxou a sacola dos dedos que dela se aproximavam. “Então, gosta desse tipo de literatura também, não é?”


“Ah, sim, tenho vários.”
Strutt fisgou a isca para ver se valia a pena. “Tipo quais?”


“Oh, Adão e Evandro, Me Leve Onde Quiser, todas as aventuras do Harrison, você sabe, são várias.”


Strutt admitiu, resmungando por dentro, que a oferta do sujeito parecia genuína. O assistente os observava; Strutt devolveu o olhar. “Muito bem,” disse. “Onde é esse lugar de que você está falando?”


O outro tomou de seu braço e puxou-o com disposição para a neve que soprava. Erguendo sobre os rostos suas golas, os pedestres deslizavam por entre os carros, enquanto esperavam pela remoção de um ônibus que havia derrapado; os flocos de neve esmagavam-se nos cantos dos para-brisas e sobre os limpadores. O homem arrastou Strutt por entre as buzinas que soavam e gritavam, e então por entre duas vitrines de lojas, onde moças fitavam presunçosas enquanto vestiam manequins sem cabeça, e então por um beco. Strutt reconheceu a área como um lugar onde havia procurado em vão por livrarias escondidas; desapontantes alcovas de revistas masculinas, o ocasional hálito quente e pungente de cozinhas, carros cheios de coberturas de neve, bares ruidosos oferecendo calor contra o clima frio. O guia de Strutt esgueirou-se pela porta de um bar público, para espanar o casaco; a camada branca rachou e caiu. Strutt juntou-se ao homem e ajustou o livro em sua sacola, aninhada sob sua camisa. Bateu as botas no chão, para tirar a crosta de neve, parando enquanto o outro seguia; não queria ficar conectado àquele homem, mesmo numa ação tão trivial. Observou com desagrado o companheiro, seu nariz inchado que agora fungava, a barba rala que se mexia nas bochechas que inflavam quando o homem soprava as próprias mãos trêmulas. Strutt tinha horror de tocar qualquer pessoa que não fosse meticulosamente limpa. Além da porta, os flocos de neve já começavam a cobrir suas pegadas, e o homem disse: “Sempre sinto tanta sede, ao caminhar rápido assim.”


“Era esse seu jogo, não era?” Mas a livraria o esperava. Strutt andou pelo bar e pediu duas doses a uma enorme garçonete, de busto arrepiado de frio, que ia e voltava com os copos e girava as torneiras com gosto. Velhos fumavam cachimbo em vagas alcovas, um rádio blaterava marchinhas, os homens segurando canecos alvejavam com jovial imprecisão tanto um jogo de dardos quanto as escarradeiras. Strutt dobrou seu casaco e ficou próximo ao homem; o outro permaneceu como estava e ficou olhando para a própria cerveja. 
Determinado a não falar, Strutt prestou atenção aos espelhos turvos que refletiam grupos gesticulantes ao redor de mesas lotadas, fora de sua linha de visão direta. Mas gradualmente ficou surpreso com a taciturnidade de seu companheiro de mesa; era certo que essas pessoas (assim pensava ele) eram notavelmente loquazes, na verdade, virtualmente impossíveis de calar a boca? Aquilo era intolerável; sentar à toa num boteco de esquina abafado, quando podia estar caminhando, ou lendo – algo devia ser feito. Engoliu a própria cerveja e bateu com o vidro no protetor de mesa. O outro o imitou. E então, visivelmente embaraçado, começou a bebericar, parecendo estranhamente nervoso. Ficou depois óbvio que o sujeito estava brincando com a espuma, e então pôs o copo na mesa e começou a fitá-lo. “Parece que é hora de irmos andando,” disse Strutt.


O homem olhou para cima; o medo arregalou seus olhos. “Jesus Cristo, eu estou todo molhado,” resmungou. “Levo você lá assim que a neve baixar.”


“Era esse seu jogo, não era mesmo?” Gritou Strutt. Nos espelhos, alguns olhos o fitaram. 


“Você não vai tirar esse drinque de mim, a troco de nada! Não vim até aqui pra...!”


O homem andou para lá e para cá, encurralado.


“Tá bom, tá bom, mas pode ser que eu não encontre o lugar nesse tempo feio.”


Strutt achou que essa última frase havia sido idiota demais para merecer resposta. Levantou, e abotoando seu casaco, atravessou as arcadas nevadas, olhando para trás para ter certeza de que estava sendo seguido.


As últimas vitrines de lojas, e por trás delas pirâmides de latas, marcadas com rótulos mal escritos, eram substituídas por linhas de janelas furtivamente acortinadas, postas em panoramas cansativos de tijolo vermelho; por trás das vidraças, decorações de Natal penduradas como coroas de flores fúnebres. Atravessando a rua, enquadrada pela janela de um quarto, uma mulher de meia-idade puxava as cortinas e escondia o rapaz adolescente em seu ombro. Strutt não perguntou exatamente aonde estavam indo; achava que podia controlar a figura à frente sem falar com ele, e de fato não tinha interesse de falar com o homem quando ele parava, trêmulo, sem dúvida devido ao frio, e voltava a andar, apressado, enquanto Strutt, cinco centímetros mais alto que o metro e setenta do outro, e de melhor físico, continuava a segui-lo. Por um instante, quando um pedaço de neve caindo o empurrou para a rua, os flocos superexpondo o ambiente e cortando suas bochechas como navalhas temporárias de gelo, Strutt ansiou por conversar, falar das noites que passara acordado em seu quarto, ouvindo a filha da senhoria ser espancada pelo pai, no quarto um andar acima, tentando pegar os sons abafados que vinham do ranger de camas, talvez do casal abaixo. Mas esse momento passou, levado pela neve; o fim da rua havia se aberto, separado por uma demarcação em duas pistas acarpetadas de neve grossa, uma virando para esconder-se entre as casas, e a outra mais curta, pegada à rotatória. E agora Strutt sabia onde estava. 


De um ônibus que pegara antes, naquela semana, havia notado aquela placa de MANTENHA À ESQUERDA jogada inútil sobre a demarcação, sua face voltada para baixo.



Cruzaram a rotatória, embrenharam-se pelos restos decompostos de relheiras, cheios de poças enganosamente cobertas, acumuladas por trás do rastro de escavadeira de uma obra de restauração do bairro, e adiantaram através do remoinho branco até um trecho de terreno baldio, onde uma fogueira solitária esgotava a força da neve. O guia de Strutt esgueirava-se para dentro de um beco e o professor o seguiu, tencionando manter-se próximo do outro conforme este batia a neve granulada das tampas das latas de lixo e esquivava-se de portões de quintais onde cães arranhavam e grunhiam. O homem virou à esquerda, e então à direita, por entre os paredes próximas e labirínticas, entre casas cujos cantos cruéis das vidraças quebradas e portas oscilantes e tortas, nem mesmo a neve, mais gentil para com prédios do que para com seus ocupantes, pode suavizar. Uma última virada e o homem deslizou para uma calçada sob os restos de uma loja, sua fachada quase vazia, salvo por garrafas de vinho sob um pôster com os dizeres, HEIN 57 VARIET. Uma massa de neve caiu dos frangalhos de toldo, apenas para ser engolida pelo bueiro abaixo. O homem ficou ali tremendo, mas quando Strutt o confrontou, apontou temerosamente para a calçada oposta: “Ali está, já chegamos.”

Rastros de lama da neve derretida molharam as calças de Strutt ao atravessar a rua, enquanto este checava mentalmente que, enquanto o homem tentara desorientá-lo, ele havia deduzido qual avenida principal estava a cerca de quinhentos metros dali, e então leu a inscrição por sobre a loja: LIVROS AMERICANOS: COMPRA E VENDA. Tocou uma cerca que protegia uma janela opaca abaixo do nível da rua, deixando uma ferrugem úmida irritá-lo sob as unhas, e observou a vitrine na janela diante de si: História do Flagelo – um livro que achara monótono – dividindo espaço com romances de ficção científica de Aldiss, Rubb e Harrison, que escondiam-se envergonhados por entre capas lascivas; Le Sadisme au Cinéma; o Voyeur de Robbe-Grillet, parecendo estar perdido; Almoço Nu – nada que valesse sua jornada até ali, refletiu Strutt. “Tudo bem, é hora de entrar,” impeliu o homem para dentro, e com uma olhadela por cima do tijolo vermelho erodido na janela do primeiro andar, notando as costas do espelho de penteadeira encaixado para substituir uma vidraça, Strutt também entrou. O outro pausou mais uma vez e por um segundo desagradável, os dedos do rapaz roçaram o casaco úmido do sujeito. “Vamos lá, onde estão os livros?” exigiu, abrindo alas para entrar na loja.



A amarelada luz solar fazia-se ainda mais sombria pela influência da vitrine e das revistas de pin-up penduradas pelo lado de dentro da janela almofadada; a poeira flutuava preguiçosamente pelos raios de luz dispersos. Strutt parou para ler as capas das brochuras enfiadas em caixas de papelão em uma mesa, mas as caixas continham apenas faroestes, fantasias e erotismo americano, vendidos por metade do preço. Fazendo careta diante dos livros que tinham as pontas esticadas como pétalas em flor, Strutt passou pelos encadernados e espiou atrás do balcão, levemente preocupado; quando havia fechado a porta ao passar pelo sino sem lingueta, havia imaginado ouvir um grito em algum lugar próximo, rapidamente contido. Sem dúvida, seria o tipo de coisa que se ouve o tempo todo por aqui, pensou, e voltou-se para o outro: “Bem, eu não vi ainda a razão para ter vindo aqui. 
Ninguém trabalha nesse lugar?”

De olhos arregalados, o homem fitava para além dos ombros de Strutt; este olhou para trás e viu o painel de vidro fosco de uma porta, um canto do vidro completado com papelão, negro contra uma diáfana luz amarelada, que filtrava-se através do painel. Presumiu ser o escritório do livreiro – será que ele havia ouvido o comentário de Strutt? O professor confrontou a porta, pronto para enfrentar alguma impertinência. Então o homem passou por ele, buscando distraidamente algo por trás do balcão, abrindo descuidadamente uma cristaleira cheia de volumes de sobrecapas de papel marrom, e finalmente extraindo um pacote de papel cinzento de seu esconderijo em um canto da cristaleira. Jogou o pacote para Strutt, resmungando, a pele sob seus olhos pinicando em tiques: “Olha um aí, olha um aí,” e observou Strutt rasgar o pacote.



A Vida Secreta de Wackford Squeers – “Ah, esse é bom,” aprovou Strutt, distraindo-se momentaneamente e metendo a mão no bolso em busca da carteira; mas dedos gordurentos agarraram seu pulso. “Pague na vez seguinte,” implorou o homem. Strutt hesitou; será que dava pra ficar com o livro sem pagar? Naquele exato momento, uma sombra tremulou por sobre o vidro fosco: um homem sem cabeça, arrastando algo pesado. Decapitado pelo vidro fosco e por sua posição agachada, racionalizou Strutt, percebendo então que o livreiro deveria ter contato com a Ultimate Press; e ele não deveria prejudicar este contato, roubando um livro. Empurrou os dedos frenéticos do sujeito para o lado e contou duas libras; mas o outro recuou, esticando os dedos num visível temor, e escolheu-se contra a porta do escritório, de cujo painel a silhueta de antes havia desaparecido, antes de quase aninhar-se contra o peito de Strutt. O professor o empurrou e deixou as notas no espaço deixado na cristaleira, onde estava antes o Wackford Squeers, e então virou-se para o sujeito: “Não vai embalar o livro? Aliás, não, pensando melhor, eu mesmo faço isso.”



O cilindro no balcão soltou de maneira estrondosa uma faixa de papel marrom; Strutt tirou um pedaço descolorido. Ao empacotar o livro, afastando o pé da embalagem anterior, algo caiu no chão. O outro havia recuado até a porta da frente, quando fez um botão solto de seu punho puxou a borda de uma caixa cheia de livros; ficou pasmo diante dos livros espalhados no chão, mãos e boca bem abertas, um pé sobre um romance aberto como se fosse um mariposa pisada, e ao seu redor flutuavam os ciscos de poeira por entre os raios de luz salpicados de neve solta. Em alguma parte, ouviu-se o clique de uma tranca. Strutt respirou fundo, fechou seu pacote com fita adesiva e, rodeando o homem com ar de desagrado, abriu a porta. O frio atacou suas pernas. Começou a subir os degraus e o outro disparou em seguida. O pé do homem estava na soleira da porta, quando passadas fortes aproximaram-se, sentidas no tremer das tábuas. O homem deu meia-volta, e abaixo de Strutt, a porta bateu. Strutt esperou; mas então ocorreu-lhe que poderia se apressar e livrar-se do guia. Alcançou a porta e uma brisa purulenta de neve alfinetou-lhe as bochechas, limpando a poeira velha da loja. Virou o rosto e, chutando a casca de neve que formara-se sobre a manchete de um jornal molhado, dirigiu-se para avenida principal, que ele sabia ser próxima.


Strutt acordou tremendo. O sinal em neon do lado de fora da janela de seu apartamento, algo clichê, mas teimoso como uma dor de dente, definia-se extravagante contra a noite a cada cinco segundos, e baseado nisso e nas rajadas de vento frio, Strutt soube que era manhãzinha. Fechou novamente os olhos, mas embora suas pálpebras estivessem quentes e pesadas, sua mente não se anuviou. Além dos limites de sua memória, espreitava o sonho que o havia acordado; ele movimentava-se temeroso. Por alguma razão, havia pensado numa passagem de sua leitura noturna anterior: “Quando Adão chegou à porta, sentiu a mão de Evandro agarrar a sua, torcendo seu braço para trás, forçando-o a ajoelhar-se no chão...” 
Seus olhos abriram-se e buscaram a estante, em busca de alívio; sim, o livro existia, seguro dentro de sua capa, cuidadosamente alinhado a seus companheiros. Lembrou-se de retornar para casa uma noite, para encontrar Senhorita Whippe, Governanta à Moda Antiga, enfiado dentro de Prefeitos e Bichas, escangalhado dentro de Prefeitos e Bichas; a senhoria explicou que ela deve ter substituído erroneamente após a limpeza, mas Strutt sabia que ela os havia danificado de propósito. Comprou uma estante com tranca, e quando a senhoria pediu a chave, ele respondeu: “Obrigado, acho que posso lidar com os livros eu mesmo.” Você não consegue fazer amizades hoje em dia. Ele fechou os olhos novamente; o quarto e a estante, criados em cinco segundos pelo neon e destruídos em igual regularidade, encheram-no de seu vazio, lembrando-o que ainda restavam semanas até o começo do novo período letivo, quando enfrentaria a primeira aula da manhã e adicionaria o “Vocês já me conhecem” à usual apresentação no estilo “Vocês jogam limpo comigo e eu jogo limpo com vocês,” aviso que algum garoto certamente testaria, e Strutt teria de lidar com ele; ele viu a extensão de cadeiras de ginásio espalhadas, lá onde ele bateria um tênis de ginástica com força revigorante – Strutt relaxou; embalado pelo eco totalizante de pés como pilões sobre o chão de madeira do ginásio, o balançar febril das barras de parede quando os rapazes subiam como enxame na direção do teto, e olhando fixamente para cima, acabou adormecendo.

Ofegando, obrigou-se a fazer os exercícios matutinos, e então bebeu rapidamente o suco de frutas que era sempre sua primeira escolha na bandeja trazido pela filha da senhoria. Maldosamente bateu com o copo ao devolvê-lo à bandeja; o vidro trincou (ele iria dizer que era uma acidente; ele pagava aluguel suficiente para cobrir esse prejuízo, e podia muito bem ter um pouco de satisfação com esse dinheiro). “Imagino que você teve um Natal estupendo,” falou a garota, inspecionando o quarto. Ele pensou em agarrá-la pela cintura e satisfazer aquela feminilidade arrogante – mas ela já havia ido embora, as pregas de sua saia dançando, deixando o estômago de Strutt embrulhado e quente de antecipação.



Depois, arrastou-se até o supermercado. De vários jardins vinha o arranhar de pás limpando a neve, ruído de fazer rangir os dentes; esses sons diminuíam e eram respondidos pelo chiados da neve engolindo as botas que andavam. Quando emergiu do supermercado, abraçado a um monte de latas, uma bola de neve roçou seu rosto para esmagar-se contra a janela, formando uma barba translúcida, que descia pela vidraça como o muco dos narizes daqueles rapazes que mais sentiam a cólera de Strutt, pois ele tinha o propósito de extrair aquela feiura, aquela hediondez, na base dos castigos físicos. Strutt olhou ao redor, buscando quem havia arremessado a bola de neve – um menino de sete anos, que subia em seu triciclo para fugir com rapidez; Strutt moveu-se involuntariamente, como se fosse puxar o garoto para dar-lhe uma surra. Mas a rua não estava deserta; logo a mãe da criança, de bobes saindo por debaixo de um lenço, batia na mão do filho: “Eu te avisei, não faça isso – Desculpe,” dirigiu-se ela a Strutt. “Está bem,” resmungou, e marchou de volta a seu apartamento. Seu coração batia incontrolavelmente. Desejava de maneira febril que pudesse conversar com alguém, como havia conversado com o livreiro dos limites de Goatswood, que compartilhava de seus instintos; quando o homem morrera, no começo daquele ano, Strutt sentira-se abandonado num mundo hostil e de conspiração tácita. Talvez o dono da nova loja pudesse provar-se similarmente simpático? Strutt teve esperanças de que o homem que o havia conduzido até ali não fosse um atendente, mas se ele era, certamente poderia ser alguém de quem se podia livrar – um livreiro com contatos com a Ultimate Press certamente deveria ser alguém similar ao próprio Strutt, que se oporia tanto quanto ele à presença daquele sujeito, enquanto estivessem conversando com franqueza. Além desses devaneios, Strutt precisava de livros para ler naqueles feriados natalinos, e o Squeers não duraria o suficiente; a loja com certeza estaria fechada na Véspera de Natal. Tendo definido seus propósitos, largou as latas na mesa da cozinha e desceu correndo pelas escadas.



Strutt saltou do ônibus em silêncio; a barulhada do motor rapidamente foi sumindo e abafou-se por entre as casas cobertas de neve. A neve empilhada aguardava a vinda de algum som. Ele chapinhou por entre os rastros de carros até a calçada, a camada de neve sobre esta marcada por incontáveis pegadas sobrepostas. A rua serpenteava; tão logo a avenida principal estivesse fora de vista, a rua lateral revelava seu verdadeiro caráter. A neve acumulada sobre as entradas das casas tornava-se gasta; protusões enferrujadas surgiam em meio à brancura. Uma ou duas janelas mostravam árvores de Natal, suas carumas envelhecidas caindo, seus galhos encurvados com as luzes voluptuosamente faiscantes. Contudo Strutt não tinha olhos para esses detalhes, mas mantinha seus olhos na calçada, buscando evitar as manchas circuladas por pegadas de cães. Seu olhar acabou encontrando o de uma velha senhora que fitava um ponto abaixo de sua janela, que talvez fosse o limite de seu mundo exterior. Sentindo um calafrio momentâneo, apressou o passo, seguido por uma mulher que, dado o conteúdo de seu carrinho de bebê, havia parido uma pilha de jornais, e parou diante da loja.



Embora o céu alaranjado mal podia iluminar o interior da loja, nenhum brilho elétrico era visível por entre as revistas, e a placa quebrada pendurada por trás do entulho poderia talvez ter escrito a palavra FECHADO. Lentamente, Strutt desceu pelos degraus. O carrinho de bebê rangeu próximo, os últimos flocos de neve espalhando-se por sobre os jornais em seu interior. 
Strutt fitou sua curiosa proprietária, voltou-se e quase caiu numa súbita escuridão. A porta havia se abrido e uma figura bloqueava o umbral.


“Não estão fechados, imagino?” falou Strutt com a língua enrolada.

“Talvez não. Em que posso ajudá-lo?”

“Estive aqui ontem. Livro da Ultimate Press,” respondeu Strutt ao rosto na mesma altura do seu, desconfortavelmente próximo.



“Claro que esteve, sim, eu lembro.” O outro oscilava sem cessar, como se fosse um atleta fazendo aquecimento, e sua voz variava constantemente de baixo para falsete, o que perturbava Strutt. “Bem, entre antes que a neve te pegue,” disse o outro, e bateu a porta por trás deles, evocando uma nota do fantasma de lingueta do sino.


O livreiro – este deveria ser ele, presumiu Strutt – assomou por detrás dele, uma cabeça mais alto; descendo por entre a meia-luz, entre os vagos e vindicativos cantos das mesas, Strutt sentiu uma obscura compulsão de assegurar-se de alguma forma, e comentou: “Espero que tenha encontrado o dinheiro do livro. Seu homem parecia não querer que eu pagasse. 
Algumas pessoas teriam levado isso ao pé da letra.”


“Ele não está hoje conosco.” O livreiro ligou a luz dentro de seu escritório. Quando seu rosto de dobras e linhas gordas recebeu luz, pareceu crescer; os olhos afundaram-se em estrelas flácidas de rugas; as bochechas e a testa rebentaram com tantas linhas de expressão; a cabeça flutuava como um balão inflado pela metade, por sobre o paletó de lã. Por baixo do bulbo luminoso descoberto, as paredes se apertavam, cercando uma mesa bastante desgastada, da qual fluíam cópias cheias de impressões digitais da revista O Livreiro, jogadas de lado por uma máquina datilográfica negra, cheia de poeira, do lado da qual descansavam um toco de cera de lacre e uma caixa de fósforos aberta. Duas cadeiras opostas em cada lado da mesa, e por trás desta uma porta fechada. Strutt sentou-se diante da mesa, espalhando pó pelo chão. O livreiro caminhou de um lado para o outro ao redor de Strutt e subitamente, como se atingido pela própria pergunta, disparou: “Diga-me, por que você lê esses livros?”


Aquela era uma pergunta muitas vezes dirigida a Strutt por aquele professor de inglês na sala de docentes, até que parasse de ler seus romances durante os intervalos. O súbito retorno da pergunta o pegou desprevenido, e conseguiu apenas soltar seu velho contra-argumento: 
“Como assim, por quê? E por que não?


“Eu não estava te criticando,” apressou-se o outro, movendo-se inquieto atrás da mesa. 


“Estou genuinamente interessado. Eu iria perguntar se você não deseja que o que lê aconteça, de certa forma?”


“Bem, talvez.” Strutt ficou desconfiado com o rumo que a conversa estava tomando, e desejou poder impor seus próprios termos; mas suas palavras pareciam cair naquele silêncio coberto de neve que escondia-se por dentro das paredes empoeiradas, para desaparecerem de imediato, sem deixar rastros. 


“Quero dizer: quando você lê um livro, não o faz acontecer diante de si, dentro de sua mente? Em particular se tentar conscientemente visualizar, mas isto não é o essencial. Você pode afastar-se do livro, é claro. Conheci um livreiro que trabalhava com esta teoria; você não tem muito tempo para ser você mesmo nesse tipo de área, mas quando ele podia, trabalhava na questão, embora nunca a tenha formulado apropriadamente – Espere só um segundo, vou mostrar te uma coisa.”


Pulou da mesa para dentro da loja. Strutt imaginou o que estava além da porta por trás da mesa. Semiergueu-se, espreitando para trás, mas viu o livreiro já retornando pelas sombras esvoaçantes, segurando um volume extraído em meio a Lovecrafts e Derleths.
“Este aqui tem a ver com seus livros da Ultimate Press, sério,” disse o outro, batendo a porta do escritório ao entrar. “Estarão publicando um livro de Johannes Henricus Pott no ano que vem, assim ouvi falar, e que também trata de sabedorias proibidas, como este aqui; você sem dúvida se encantaria em saber que eles acham que podem deixar algo do Pott no latim original. Este aqui deve interessá-lo, contudo; é a única cópia. Provavelmente, você não conhece as Revelações de Glaaki; é uma espécie de Bíblia escrita sob orientação sobrenatural. Existiram apenas onze volumes – mas este é o duodécimo, escrito por um homem no alto de Mercy Hill, guiado por sonhos.” Sua voz ficou menos firme, conforme continuava a falar. “Não sei como foi que foi que ganhou as ruas; suponho que a família do homem possa tê-lo encontrado em algum sótão, após sua morte, e com ele ganho um punhado de cobres, quem sabe? Meu livreiro – bem, ele conhecia as Revelações, e percebeu que este exemplar era sem preço; mas não queria que o fornecedor percebesse que tinha uma descoberta em mãos e talvez a levasse à biblioteca ou à Universidade, de modo que o tomou como parte de um lote maior e disse que iria usá-lo para rascunho. 
Quando leu – Bem, havia uma passagem aqui, que parecia ter sido feita especialmente para testar sua teoria. Olhe só.”


O livreiro mais uma vez deu a volta por Strutt e colocou o livro em seu colo, seus braços descansando nos ombros do professor. Strutt comprimiu os lábios e deu uma olhadela no rosto do outro; mas alguma força diminuiu, recusando-se a apoiar sua desaprovação, e ele abriu o livro. Era um velho livro-razão, de encadernação craqueante, suas páginas amareladas cobertas por linhas irregulares de finas linhas manuscritas. Por todo o monólogo introdutório, Strutt ficara atônito; agora que o livro estava diante de si, lembrou vagamente daqueles pacotes de folhas datilografadas duplicadas, que eram passadas adiante nos banheiros de sua adolescência, pois “Revelações” sugeria algo proibido. Assim intrigado, leu de maneira aleatória. Ali em Baixo Brichester, o bulbo exposto definia cada pedaço de tinta descascada da porta à sua frente, e mãos moviam-se em seus ombros, mas em alguma parte lá no fundo, sentia-se perseguido através da escuridão, por pegadas vastas e sutis; e quando virou-se para olhar o que era aquilo, uma figura inchada e brilhante já estava sobre ele – Mas o que era tudo aquilo? Uma mão apertava seu ombro esquerdo e a mão direita virava as páginas; e finalmente um dedo sublinhou a seguinte sentença:


Além dum abismo na noite subterrânea, uma passagem leva a uma muralha de tijolos massivos, e além da muralha está Y'golonac, esperando para ser servido pelas esfarrapadas figuras sem olhos da escuridão. Há muito ele tem dormido além da muralha, e aqueles que rastejam por sobre os tijolos passam por sobre seu corpo, sem saber que ali está Y'golonac; mas quando seu nome é pronunciado ou lido, ele atende para ser venerado ou para alimentar-se e assumir a forma e alma daqueles de que se alimenta. Pois aqueles que leem sobre o mal e buscam a forma desse mal dentro de suas mentes convocam o mal, e assim poderá Y'golonac retornar para caminhar entre a humanidade e esperar aquele tempo quando a terra será limpa e Cthulhu ascenderá de sua tumba entre as algas, Glaaki arrebentará o alçapão de cristal, a prole de Eihort nascerá para a luz do dia, Shub-Niggurath forçará e esmagará a lente lunar, Byatis destruirá sua prisão, Daoloth rasgará a ilusão para expor a realidade que está oculta por trás dos véus.



As mãos em seus ombros mudavam constantemente a pressão, afrouxando e apertando. A voz flutuava: “O que achou disso?”

Strutt pensou que era um lixo, mas de alguma forma, sua coragem escorregou e se desfez; replicou de maneira bem mais suave: “Bem, não é – não é o tipo de coisa que se vê à venda.”

“Achou o trecho interessante?” A voz se aprofundava; agora era um baixo arrebatador. O outro rodou para trás da mesa; parecia maior – sua cabeça batia no bulbo, lançando sombras que espreitavam pelos cantos, e recuavam, e mais uma vez espreitavam. “Está interessado?” Sua expressão era intensa, se é que aquilo podia-se chamar de expressão; pois a luz movia as trevas nos buracos de seu rosto, como se a estrutura óssea estivesse visivelmente derretendo.



Lá no fundo da mente ofuscada de Strutt, surgiu uma suspeita; ele não ouvira falar de seu querido amigo morto, o livreiro de Goatswood, que um culto de magia negra existia em Brichester, um círculo de jovens dominado por um certo Franklin, ou Franklyn? Será que estava sendo entrevistado para admissão no culto? “Eu não diria isso,” argumentou.



“Ouça. Houve um livreiro que leu este trecho, e eu contei a ele que você podia ser o alto sacerdote de Y'golonac. Você convocará os vultos da noite para venerá-lo, em certas épocas do ano; prostrar-se-á diante dele e em troca, sobreviverá quando a terra for limpa para os Grandes Antigos; irá além dos limiar para aquilo que se separa da luz...”



Antes que pudesse terminar, Strutt interrompeu sem pensar: “Vocês estavam falando de mim?” Acabara de perceber que estava sozinho com um louco, num recinto fechado.



“Não, não, quis dizer o livreiro. Mas a oferta agora é para você.”


“Bem, desculpe, mas tenho outras coisas para fazer.” Strutt preparou-se para levantar.


“Ele também recusou.” O timbre da voz feria os ouvidos de Strutt. “Eu tive de matá-lo.”
Strutt congelou. Como lidar com alguém insano? Pacificando-o. “Espere aí, espere aí, espere só um segundo...”


“Que benefício lhe traria a dúvida? Tenho mais provas à sua disposição do que você seria capaz de suportar. Você será meu alto sacerdote, ou jamais deixará esta sala.”


Pela primeira vez em sua vida, enquanto as sombras entre as paredes opressivas moviam-se mais lentas, como se antecipantes, Strutt batalhava para conter uma emoção; submergiu sua mescla de medo e cólera com calma. “Se não se importar, tenho de encontrar uma pessoa.”


“Não quando seu destino está aqui entre essas paredes.” A voz engrossara. “Você sabe que eu matei o livreiro – estava em seus jornais. Ele fugiu para a igreja em ruínas, mas eu o segurei com minhas mãos... E então deixei que o livro na loja para ser lido, mas o único que o pegou, por engano, foi aquele homem que o trouxe aqui... Um tolo! Enlouqueceu e entrou em posição fetal no canto da sala, quando viu as bocas! Eu o mantive porque pensei que ele poderia trazer alguns de seus amigos que chafurdam nos tabus físicos e perdem as verdadeiras experiências, aqueles lugares proibidos ao espírito. Mas ele acabou por contatá-lo e trazê-lo logo quando eu estava me alimentando. Aparece comida aqui, de vez em quando; jovens rapazes que vêm buscando livros, em segredo; eles têm de ter certeza de que ninguém saiba o que estão lendo! – e podem ser persuadidos a ler as Revelações. Imbecil! Ele não pode mais trair-me com seu desleixo – mas eu sabia que você iria retornar. E agora será meu.”


Os dentes de Strutt rangiam silenciosamente, até que ele pensou que suas mandíbulas iriam estourar; levantou-se, assentindo a cabeça, e passou o volume das Revelações para a figura; estava pronto para, assim que a mão se fechasse sobre o encadernado, sair correndo pela porta do escritório.


“Você não pode sair, sabe disso; está trancado.” O livreiro balançou os pés, mas não fez movimento na direção de Strutt; as sombras agora estavam impiedosamente claras, e a poeira estava suspensa no silêncio. “Você não está sentindo medo – parece ser calculista demais. É possível que ainda não acredite? Tudo bem...” colocou  suas mãos na maçaneta da porta por trás da mesa: “...você quer ver o que restou de minha comida?”


Uma porta abriu-se na mente de Strutt, e ele recuou horrorizado do que poderia estar além dela. “Não! Não!” gritou. A fúria seguiu-se a sua involuntária demonstração de medo; desejou ter uma bengala, com que subjugar a figura que o intimidava. Julgando por seu rosto, pensou, as massas proeminentes no paletó de lã devem ser de gordura; se eles brigassem, Strutt venceria. “Vamos deixar isto claro,” gritou, “já brincamos demais aqui! Ou você me deixa sair ou eu...” mas encontrou-se procurando uma arma qualquer. Subitamente, pensou no livro que estava ainda em sua mão. Roubou a caixa de fósforos da mesa, por trás da qual a figura observava, ominosamente impassiva. Strutt riscou um fósforo, e então segurou as capas por entre o dedo indicador e o polegar, balançando as páginas. “Eu vou queimar o livro!” ameaçou.


A figura ficou tensa, e Strutt ficou frio de medo de seu movimento seguinte. Ele tocou a chama no papel, e as páginas viraram-se, consumindo-se tão rapidamente que Strutt teve a impressão de fogo brilhante e sombras crescendo instavelmente massivas nas paredes, antes do livro tornar-se cinzas no chão. Por um momento, encararam um ao outro, imóveis. 


Depois das chamas, uma escuridão correu até os olhos de Strutt. Através dela, ele enxergou o paletó rasgar-se com estrépito, diante da expansão da figura.


Strutt jogou-se contra a porta do escritório, que resistiu. Girou seu punho, e observou num estranho deslocamento atemporal o punho estilhaçar o vidro fosco; o ato pareceu isolá-lo, como se suspendendo toda ação além de si mesmo. Através das facas de vidro, na qual brilhavam gotas de sangue, viu os flocos de neve dançarem na luz âmbar, infinitamente distante; distante demais para que pudesse chamar por ajuda. Assaltou-o um horror de ser seguro por trás. Do fundo do escritório, veio um som; Strutt virou-se, mas ao fazê-lo fechou os olhos, aterrorizado demais para encarar a fonte daquele som – mas quando os abriu, viu a razão pela qual a sombra no vidro fosco, ontem, parecia sem cabeça, e então gritou. Quando a mesa foi jogada para o lado, pela gigantesca figura nua, e cuja pele ainda prendiam-se trapos do paletó de lã, o último pensamento de Strutt fora uma inacreditável convicção de aquilo só estava acontecendo porque ele lera as Revelações; em algum lugar, alguém havia desejado que aquilo acontecesse com ele. Não era justo, ele não fizera nada para merecer aquilo – mas antes que pudesse gritar em protesto, seu fôlego foi cortado, quando as mãos desceram sobre seu rosto e nas palmas, abriram-se bocas úmidas e vermelhas.




Cold Print originalmente publicado em Tales of the Cthulhu Mythos, 1969.

6 comentários:

  1. Pessoal desculpem pelos espaços pulados em excesso. Infelizmente o blog na hora de postar apresenta tudo em perfeita ordem, mas quando faz a publicação acaba cheio de erros.

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  2. Eu que o diga!

    Valeu pela publicação aqui e no aguardo de um artigo sobre Y'Go!

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  3. Olá, se tiver paciência, dê uma olhada em emu conto dos Mythos.

    http://philosophista.blogspot.com.br/2009/07/normal-0-21-false-false-false.html

    Até Mais

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  4. Caramba, Philosophista. EU VI ESSE REPLY DO WARREN ELLIS, na época!!!! 2009!!!

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  5. Esqueci do jabá
    http://dominiopublicano.blogspot.com.br/

    Contos meus sobre o Mythos
    http://simetriamacabra.blogspot.com.br/

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