Eu sempre tive sentimentos contraditórios à respeito de H.P. Lovecraft, o cultuado escritor de horror, cuja sepultura visitei recentemente. Em vida ele foi indisfarçavelmente um racista, mas sua prosa por vezes é tão fascinante quanto a sua incrível imaginação. Eu não sabia o que ia sentir ao visitar seu lugar de repouso final.
Sem dúvida, conversar com o guarda do cemitério Swan Point, onde Lovecraft está enterrado ajudou a organizar meus pensamentos a respeito do autor.
Nós ouvimos a voz do guarda antes mesmo de vê-lo:
“Nada de fotos!” ele disse enquanto Lizzy e eu, nos aproximávamos da guarita fechada ao lado do portão de entrada. Eu estava com meu celular na mão, apenas conferindo algumas mensagens. O guarda de cabelo ruivo saiu da cabine espelhada e andou na nossa direção com um passo apressado. Ele explicou que o cemitério é privado e por isso fotografias não são permitidas.
Guardei meu telefone de volta no bolso. Eu sou ambivalente a respeito de imagens, então não me senti lesado pela impossibilidade de registrar a visita. O guarda sequer perguntou para onde queríamos ir, simplesmente disse que poderia nos levar até a sepultura de H.P. Lovecraft se quiséssemos. Lizzy e eu concordamos e pensamos "será que é tão óbvio para onde queremos ir"?
Andamos pelo caminho pavimentado com pedras sem dizer nada, o lugar realmente é tranquilo, uma paz incrível. Quando nos aproximamos da sepultura simples de pedra, identificada apenas por uma placa de bronze, reparei que haviam vários objetos depositados. Eram como oferendas deixadas ao lado da lápide – conchas, pedras coloridas, cartões postais, poemas escritos à mão, desenhos e uma chave.
“Quando o jazigo está limpo, ele fica limpo por semanas,” disse o guarda taciturno. “aí então alguém coloca alguma coisa e um monte delas começa a aparecer. Todos acham que precisam deixar algo.” comentou dando de ombros.
“Porque colocaram uma chave?” perguntou Lizzy.
“Não sei porque eles deixam chaves,” ele respondeu. “Uma pessoa deixou uma chave certa vez e agora todos deixam chaves.”
“E o que são esses papéis e cartões?”
“Sinceramente eu não sei. Você pode ler se quiser.”
Lizzy se abaixou para apanhar uma folha de papel colocada cuidadosamente de baixo de uma pedra. Mas ao invés de apanhar e ler, simplesmente a ajeitou melhor, como se sentisse que aquela mensagem era particular e ela não tinha o direito de ler.
“Vocês pretendem deixar isso aí?” o guarda apontou para a mão de Lizzy, que carregava uma lata de feijões verdes.
Anos atrás, quando eu estava lendo sistematicamente tudo que Lovecraft havia escrito, encontrei uma referência curiosa no Selected Letters. No final de sua vida, Lovecraft estava passando por uma situação financeira delicada e virtualmente todas as suas refeições eram compostas de enlatados. Um dos seus favoritos, segundo ele mesmo escreveu, eram feijões verdes. Em muitas culturas, é comum deixar a comida predileta ao lado da sepultura, e eu achei que esse tipo de oferenda seria apropriada.
“Eu gostaria de deixar, se possível,” disse Lizzy um pouco sem jeito.
“Tudo bem,” ele aquiesceu. “Mas quando o lugar for limpo, nós vamos jogar isso fora.”
O guarda fez o comentário como se achasse que ficaríamos desapontados pelo fato de que Lovecraft não despertaria para comer nosso pequeno presente.
Lizzy colocou a lata na grama perto de alguns bilhetes e os ajeitou para que o vento não os carregasse.
O guarda disse que era a primeira vez que alguém deixava uma lata de comida, apesar de que alguns visitantes já haviam depositado pacotes de ração para gatos. Há aqueles que deixavam cigarros de maconha e garrafas de bebida alcoólica, pessoas que provavelmente não sabiam nada a respeito de como Lovecraft reprovava qualquer substância intoxicante. E há aqueles que deixam CDs de Heavy Metal, que eu duvido muito, seria algo que Lovecraft gostaria de ouvir.
Nós conversamos mais um pouco e o guarda falou sobre o seu trabalho e sobre as pessoas que vem até o túmulo. A sepultura de Lovecraft é de longe a mais visitada do belíssimo Cemitério Swan Point em Providence Rhode Island, onde Governadores e Generais da Guerra Civil também estão enterrados.
No caminho de volta para o centro da cidade, eu me perguntei porque tantas pessoas visitam alguém como Lovecraft.
Pessoalmente eu não vejo Lovecraft da mesma maneira que outros escritores que admiro . Eu olho para ele da maneira que olho para mim mesmo quando eu era mais jovem: admiro sua fidelidade ao seu estilo artístico, sua larga visão cósmica e seu desejo de criar algo marcante que fosse lembrado pelo maior número possível de pessoas. Mas é claro, nem todos visitam Lovecraft pelos mesmos motivos que eu.
Eu suponho que em parte sua popularidade póstuma se deve ao ideal fantástico de nerds comuns. Entre os seus fãs estão escritores, artistas, entusiastas do horror, e misantropos – "perdedores" como disse o guarda antes de se apressar em completar "sem ofensas". São pessoas que se sentem desconectadas com o mundo, mas que sonham e aspiram algo maior ou que sentem que o mundo poderia ser maior, mais amplo.
Não que os fãs de Lovecraft sejam um grupo heterogêneo. Há algo de incrivelmente notável em um escritor que consegue atrair igualmente fãs de metal pesado vestidos de preto, maconheiros, estudantes de inglês, motoqueiros, poetas, professores de literatura, Stephen King (que visitou o cemitério algumas vezes), o escritor francês Michel Huoellebecq, e até um misterioso alemão, descrito pelo guarda, como um sujeito que vem até o túmulo de Lovecraft todo ano na data de seu aniversario e que fica prostrado diante da lápide por pelo menos uma hora antes de ir embora sem dizer nada.
Lovecraft atrai essas pessoas, em parte, pelo tipo de coisa que escrevia, pelo teor cósmico de suas estórias e, em parte, por ele próprio ter sido alguém deslocado em seu tempo. Alguém que é mais compreendido hoje, do que quando estava vivo.
Lendo as cartas escritas por Lovecraft, lembrei do ensaio de Adam Gopnik, “A Orelha de Van Gogh,” que descreve os últimos meses de vida do artista holandês em um asilo para loucos. Gopnick comenta ironicamente sobre a penúria em que Van Gogh viveu seus últimos dias e os preços exorbitantes que suas pinturas atingiram mais tarde. O ensaio conclui fazendo um paralelo entre os colecionadores de arte que gastam enormes quantidades de dinheiro em pinturas que eles esperam um dia valer algo, e os artistas que criam essas obras, literalmente apostando suas vidas, na esperança que elas um dia sejam admiradas e compreendidas.
Essa é minha resposta para a questão, porque a sepultura de Lovecraft atrai tantas pessoas.
Lovecraft apostou sua vida em seu trabalho.
Eu dei minha opinião ao guarda do cemitério, ele coçou o queixo pensativo por um instante e então disse: "No momento que você não tem mais nada a não ser feijão verde enlatado para comer, é a hora de largar a caneta e os papéis, arranjar um trabalho de verdade, numa fábrica".
Essa é a maneira que a maioria das pessoas pensaria. Certamente, todos os governadores e generais enterrados em Swan Point seriam práticos a esse ponto.
Mas não Lovecraft.
não sei qual a veracidade do texto, mas concordo plenamente com os últimos 4 parágrafos.
ResponderExcluirNão faço a menor ideia quanto a existência de um período pós-vida. O próprio Lovecraft não acreditava nisso. Mas, por vezes, ao ler seus melhores trabalhos ou ao perceber o alcance da sua obra, desejo que ele de alguma forma pudesse saber o quão apreciada ela se tornou.
ResponderExcluirDiferente de muita gente do seu tempo, Lovecraft era um escritor proeminente, tão avançadao da mentalidade de seus contemporâneos, que foi simplesmente mal entendido. A razão de ser racista e ateu, não enfraqueceu nem um pouco os seus incriveis escritos. Dotado de uma criatividade ímpar, deixou para a posteridade um legado maravilhoso,onde até hoje forma e cria fãs. Seus escritos influenciam todo o seguimento artístico. .
ResponderExcluirAgora fiquei curioso para saber quem é o misterioso alemão. Isso daria um conto legal, não acham?
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