Baseado em trechos da resenha de Rustin F. Holmes
É um fato inquestionável que o mercado de RPG é dominado por lançamentos norte-americanos.
Mas de vez em quando, algo surpreendente surge em outros países. Infelizmente enquanto muitos jogos americanos (ou escritos em inglês) são traduzidos para outros idiomas ao redor do mundo, poucos fazem o caminho inverso. Em 2012, a editora Cubicle 7 nadou contra a corrente e adquiriu os direitos para publicação de um bem sucedido RPG, lançado originalmente na França, chamado Yggdrasil. Jogo este que está chegando agora ao Brasil através de um Financiamento Coletivo da editora New Order.
Yggdrasill foi lançado originalmente pela companhia francesa Le 7ème Cercle (responsável entre outras coisas pela terceira edição do lendário Kult e pelo excelente Qin - The Warring States). Ele foi concebido pelo game designer Neko, um dos nomes mais proeminentes na Europa, figura por traz de inúmeros jogos muito elogiados por lá. Os outros autores são Kristoff Valla e Florent.
O tema de Yggdrasil são as grandes sagas nórdicas que celebram as explorações, as batalhas, aventuras e perigos de uma época cheia de magia e desafios. A ambientação coloca os jogadores na pele de guerreiros escandinavos, navegadores audazes, exploradores intrépidos e heróis capazes de feitos épicos. Mais do que isso, o livro propõe uma imersão na cultura, folclore e tradições dos povos nórdicos de uma maneira raramente vista em livros de RPG. O nível de detalhes e a quantidade de recursos é nada menos do que sensacional o que denota uma pesquisa séria e extremamente correta por parte dos autores.
O jogo se passa na Escandinávia da Era do Bronze, entre os séculos IV e VI, uma terra que os habitantes locais chamam de Scandia.
Sejamos claros, Yggdrasill não é uma ambientação sobre Vikings a despeito de muitos assumirem isso à primeira vista. Trata-se de um jogo de fantasia com ação, aventura, romance, e política que se passa na porção mais ao norte da Europa. Eu não sou um historiador, mas acredito que o clássico período Viking tenha ocorrido bem depois desse que serve como pano de fundo para a ação em Yggdrasil. Desse modo, esqueça qualquer referência a invasões e pilhagens na Inglaterra e na França, às expedições do navegador Erik ou às raízes do cristianismo no velho mundo.
Em Yggdrasil você encontrará apenas os Deuses Nórdicos, além é claro, muita intriga e disputas territoriais entre os vários povos e tribos que formam a terra chamada de Scandia. A ambientação entretanto não se propõe a ser puramente histórica, há espaço de sobra para superstições e o reino do sobrenatural, com direito a todo tipo de besta lendária e monstros tenebrosos pinçados da rica mitologia nórdica. A proposta me lembra muito Pendragon, que também conseguia conjugar com perfeição antigas lendas com fatos históricos. Monstros e magia existem, mas são elementos raros que quando aparecem causam desconfiança, fascínio e medo.
Existe muita magia no ar (não que haja magos e feiticeiros no sentido da palavra vagando pela Scandia, não há!) mas no sentido de que as lacunas e questionamentos são preenchidos por crenças e fábulas que enaltecem as façanhas de grandes heróis e de seres divinos. A ambientação tem todo um clima épico, voltado para aventura e excitação que deve agradar aqueles jogadores que gostam de acompanhar o progresso de um personagem desde seu início simplório até sua transformação em um grande herói.
O Livro Básico de Yggdrasil é composto por três grandes partes: a primeira se dedica a apresentar a ambientação, a cultura, o dia a dia e os mitos dos personagens que nasceram na Escandinávia. O segundo se debruça sobre as regras do jogo, incluindo o sistema de resolução dos desafios, criação de personagens e progresso dos mesmos, além é claro de várias dicas para facilitar o trabalho do narrador. A terceira parte é composta de uma longa e complexa aventura introdutória intitulada "Offerings to the Great Winter" (Oferendas para o Grande Inverno).
Pretendo falar mais detalhadamente de cada uma dessas partes a seguir.
A primeira parte do livro se concentra exclusivamente na ambientação. Ele fornece uma grande quantidade de informações sobre como o povo nesse período vivia, no que acreditava e como desempenhava suas funções na sociedade. Há muitos detalhes interessantes a serem absorvidos e nesse ponto Yggdrasil serve como um valioso recurso para qualquer narrador interessado em situar suas aventuras nesse período histórico. A pesquisa histórica aqui foi extensa, mas em momento algum o texto se mostra aborrecido. Um ponto extremamente positivo é a maneira como os tópicos procuram afastar os equívocos culturais mais comuns, falando desde os infames capacetes com chifres, a respeito da alegada violência e sanguinolência desregrada dos guerreiros nórdicos e até a verdade sobre os famosos barcos drakkars. Nenhum ponto é omitido e a maneira como o texto descreve cada detalhe acrescenta muito a ambientação permitindo ao narrador explorar cada recurso em sua sessão de jogo. O narrador não terá muito trabalho de pesquisa, tudo está fartamente documentado e se ele escolher se pautar apenas pela leitura desse livro básico estará bem embasado.
O capítulo trata da tumultuada geopolítica da Escandinávia e dos povos que disputam o domínio sobre essa região. Três reinos principais são apresentados: Noruega, Dinamarca e Svithjod (Suécia). O narrador pode centrar sua campanha em um dos reinos ou fazer com que os jogadores viagem através deles conhecendo as peculiaridades de cada território. Não há um reino mais importante, todos eles são tratados da mesma maneira com detalhes que incluem geografia, política, figuras ilustres e facções importantes que disputam o poder. Há muitos exemplos de personagens que irão figurar nas aventuras criadas e que podem ser utilizados como NPCs pelo narrador.
Um espaço considerável é dedicado a mitologia nórdica: os Deuses, semi-deuses, entidades e heróis são apresentados em detalhes, sua influência sobre o mundo e as terras que eles governam nos chamados Nove Mundos são bem definidas. Também há a preocupação de explicar como funciona o sistema de crenças e a própria religião dos povos que habitam Scandia, além de sua relação com o mundo espiritual. Novamente há uma enorme preocupação de ser fiel ao contexto histórico e garantir que tudo seja perfeitamente correto inserido no rico folclore nórdico. A cosmologia dos Nove Mundos contempla a noção da Árvore do Mundo, uma estrutura fundamental que sustenta todos os Reinos em seus galhos. Além de Midgard (A Terra dos Mortais), a Árvore do Mundo reúne as Terras dos Mortos, os reinos de Elfos, Anões, Gigantes de Gelo, do Fogo e Tempestade, além é claro, Asgard, a morada dos Deuses.
Apesar de dedicar uma grande importância aos mitos e lendas, o narrador pode escolher descartar toda a parte fantástica e se dedicar somente aos aspectos históricos/ realistas em sua campanha. Ou então abraçar o misticismo e todos os elementos sobrenaturais contidos nela. Eu pessoalmente acredito que as duas opções tem seus méritos, pessoalmente gosto de incluir elementos sobrenaturais nas minhas campanhas, mas nesse caso fico até tentado a conduzir uma trama com os pés nos chão, onde deuses não passam de mito e o que importa é o suor no rosto e a força no braço que segura a espada.
Os temas centrais de Yggdrasil são a importância do Destino (Fate), como o indivíduo encara as questões de honra e a maneira como ele promove o nome de sua família/clã. O primeiro capítulo consegue transmitir essa noção de forma bem clara para o leitor. Uma campanha de Yggdrasil gira em torno de conquistar poder, realizar façanhas e acumular riquezas, como todos os jogos de aventura e exploração, mas aqui também diz respeito a promover o bem comum de sua comunidade, ganhar destaque e escrever seu nome em uma bela saga. O histórico de vida de seu personagem é o que realmente vale no final das contas e é pelo seu legado que o personagem está lutando.
A Segunda Parte do livro inclui os capítulos que tratam das regras para conduzir uma sessão de Yggdrasil. Esta é a seção mais longa com detalhes para a criação de personagem, combate, magia, progresso, habilidades e façanhas.
De modo geral eu gostei bastante do sistema de regras (o mesmo usado para Qin). Ele é simples e ágil, com alguns detalhes que podem levar algum tempo para serem absorvidos, mas que uma vez compreendidos são facilmente assimilados pelo narrador e jogadores. Não é difícil de pegar as manhas do sistema e em pouco tempo todos estão jogando em pé de igualdade.
Eu pessoalmente sou fã de sistemas em que as regras ficam escondidas e que o narrador tem liberdade para adaptar ou improvisar sem ficar atrelado a convenções que precisam ser seguidas ao pé da letra. Yggdrasil tem um sistema elegante, que não chega a ser complexo mas que requer alguma atenção do narrador.
Não vejo necessidade em me aprofundar em muitos detalhes a respeito das regras, por isso vou fazer apenas um resumo de como funciona um rolamento básico em Yggdrasil. A ficha dos personagens é composta de nove habilidades distintas separadas em três grupos Mind (Mente), Body (Corpo) e Soul (Alma). Dentro desses grupos estão os seguintes atributos: Força, Vigor, Agilidade, Intelecto, Percepção, Tenacidade, Carisma, Instinto e Comunicação. Esses atributos são quantificados com um número que se refere a quantidade de dados de dez lados que serão rolados para testar uma ação. A maioria dos NPCs tem 2 em cada atributo, mas os personagens dos jogadores possuem números um pouco melhores (afinal são heróis). Além dos atributos cada jogador possui habilidades específicas descritas em sua ficha.
Digamos que Ingvar, nosso personagem de exemplo, está tentando saltar de um barco para outro a fim de abordar seus inimigos. Ele deverá fazer um teste de força que é o atributo que rege esse tipo de ação física. Ingvar tem três pontos em força e dispõe da habilidade saltar com 2 pontos. Para verificar se é bem sucedido no seu objetivo, o jogador que controla Ingvar rola 3d10 (que correspondem a sua força 3). Seja lá quantos dados forem rolados, ele sempre irá escolher o resultado de DOIS dados e somá-los. Em seguida irá acrescenta o seu nível na habilidade pertinente. Conforme o exemplo, "saltar" com duas graduações. O resultado final será comparado com o Nível de Dificuldade estabelecido pelo narrador antes do teste ser realizado. Se o número for igualado ou ultrapassado, o personagem terá sido bem sucedido. A dificuldade normal é 14, mas pode ser elevada para ações/ manobras mais complexas ou reduzida para tarefas triviais.
Os dados rolados podem obter um "ace" (ás), quando resultam em um "10" natural. Nesse caso, o jogador pode rolar novamente e somar o resultado ao montante final. As habilidades, como saltar, nadar, escalar, cavalgar (apenas para citar algumas) fornecem números fixos que são sempre somados ao produto final dos dados.
O combate segue essa mesma mecânica, repartido em rodadas, os envolvidos agem em uma ordem de iniciativa e tentam rolar os dados igualando ou superando um grau de dificuldade que lhes permitirá atingir o oponente e causar dano. Combatentes com o atributo agilidade, podem fazer múltiplas ações em sua rodada tendo em mente entretanto que cada ação adicional será mais difícil que a anterior. Os personagens podem realizar manobras de combate, explorar fraquezas ou empregar as suas vantagens para facilitar os ataques. Falando de forma bem clara, combate em Yggdrasil é algo sangrento e extremamente perigoso de se encarar. Jogadores devem ser sábios de evitar confronto se possível, estando cientes de que uma luta, mesmo contra um adversário aparentemente inferior, pode ser potencialmente letal.
O sistema de criação de personagens em Yggdrasil é bastante simples e não vai tomar muito tempo dos jogadores que com alguma sorte poderão se dedicar a escrever um background com o tempo livre. Para construir seu personagem, você escolhe uma vocação e compra habilidades e atributos. É necessário escolher vantagens e desvantagens que vão se traduzir em benefícios e penalidades para seus testes, além de optar por algumas manobras de combate ou magias que concedem trunfos que podem ser decisivos. Os arquétipos de personagem são variados contemplando desde guerreiros convencionais, até berserkers, skalds e volver, cada um com suas peculiaridades. É possível criar personagens bem diversificados que sem dúvida irão se enquadrar no que cada jogador planeja.
Um ponto interessante durante a criação de personagens é que o jogador sorteia três runas de destino para seu personagem. Essas runas decidem importantes aspectos a respeito da vida pregressa do personagem e também determinam alguns fatores centrais no seu futuro. Eles fornecem sugestões para o narrador construir a estória com base no destino sorteado. Por exemplo, se uma runa diz que o personagem jamais será rico em vida, isso irá afetara carreira do personagem ao longo de sua existência. Os tesouros e recompensas de alguma forma terão menor valor para esse personagem e o narrador terá de se adequar para cumprir essa sina.
A porção final dedicada às regras fala de experiência e do progresso do personagem. A parte mais inovadora apresenta um Sistema de Renome para acompanhar os feitos do personagem a medida que ele cumpre cada etapa de sua Saga. É esse recurso que ajudará a construir o legado do personagem que poderá escrever seu nome entre os grandes heróis de Scandia.
A terceira parte do livro inclui um cenário pronto que se ajusta perfeitamente aos moldes do livro, sendo uma ótima introdução para o narrador e para os jogadores de primeira viagem. Poucas vezes vi um livro básico oferecer uma aventura tão bem construída e detalhada (sem falar de extensa). O narrador depois de ler o livro não terá maiores problemas em conduzir essa aventura, ela flui facilmente e tem como principal objetivo conquistar os jogadores. Da maneira que ela foi escrita, ela contém intriga e luta na medida certa, doses de mistério e aventura que irá satisfazer o grupo mais exigente e deixar aquele gostinho de quero mais necessário para impulsionar uma campanha.
Fisicamente Yggdrasil tem o padrão gráfico de qualidade dos livros editados pela Cubicle 7. Praticamente todos os livros dessa editora britânica tem um magnífico acabamento que prima pelo bom gosto na arte e na diagramação. É claro, livros com essa qualidade não são baratos, mas você vê onde foi parar o seu dinheiro. A maior parte da arte original, presente na edição francesa foi reaproveitada nessa edição, incluindo os fantásticos desenhos dos arquétipos de personagens e das paisagens selvagens que se sobressaem. A arte colorida é extremamente evocativa, ela casa bem com os textos e se mostra empolgante "pedindo para ser folheado".
Yggdrasil é um livro em capa dura, colorido com 232 páginas em papel brilhante de qualidade. Esse é o tipo de livro que fica bonito na prateleira e que resiste bem a ser levado na mochila para o lugar de jogo. Mapas de Scandia (Noruega, Dinamarca, Suécia e terras adjacentes) cobrem o verso da capa com uma cartografia elaborada. O editor escolheu uma cor forte em sépia para várias páginas internas que é agradável para ler e dá um toque de antiguidade ao livro.
Este é sem dúvida um RPG extremamente atraente.
Eu imagino que Yggdrasil poderia ser uma boa plataforma para apresentar nosso hobby para quem conhece pouco ou quase nada a respeito de RPG (Alô jogadores que querem introduzir amigos, esposas ou namoradas na nobre arte de rolar dados na mesa). As regras são intuitivas, a temática é acessível e o fator histórico sem dúvida conseguiria conquistar novos jogadores em busca de mais realismo e menos fantasia. Sem dúvida também é uma ótima pedida para quem costuma narrar ocasionalmente em encontros, sendo que para um grupo de jogadores habituais ele poderia se converter numa ótima opção de campanha mais longa e profunda. Para os fãs de folclore nórdico, Yggdrasil é fundamental, mesmo não sendo especificamente a respeito de Vikings com certeza o tema é próximo o bastante e irá agradar ao mesmo público.
O Financiamento Coletivo já está no ar, ainda há tempo de participar, deem uma olhada no link abaixo e conheçam mais detalhes a respeito desse lançamento da Editora New Order.