terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Três Autores e uma Carta Perdida - Uma correspondência de H.P. Lovecraft endereçada a Jorge Borges


Originalmente publicado no blog Paulistando.

Uma carta encontrada em um livro...

10 Barnes St., Providence R.I.,
                       Outubro 2, 1928    

Caro Señor Jorge Luís Borges:–

Receber uma carta de Buenos Aires, da distante Argentina, elogiando ‘The Colour Out of Space’ me deixou surpreso e encantado. Não calculava que a Amazing Stories chegasse tão longe e alcançasse leitores tão variados e interessantes. Suas observações acerca do conto são instigantes. Destaca o paradoxo de tentar descrever uma cor que induz o próprio sentido da visão ao engodo; correlaciona a poeira cinzenta, que vento nenhum dissipa, com o fim dos tempos; e lembra que sete homens testemunharam a transubstanciação da cor num raio luminoso apontado para Deneb. Depois de tudo isso não me espantou saber que é escritor, a elegância e articulação da missiva não deixam dúvidas. Desconfio também que foi alfabetizado em inglês.

Procurei Buenos Aires no globo, constatei que fica na foz de um rio, como Providence – só que muito maior. Na verdade, cada vez que examino o mapa da América do Sul embarco numa viagem de divagações.

Aquela gigantesca cordilheira que desenha a costa oeste, mais os dois rios colossais – um no norte outro no sul – entre os maiores do mundo, que drenam todo o território, não parecem coisas naturais. O subcontinente inteiro já esteve no fundo do mar, foi um dos primeiros a emergir como terra firme. Não é despropositado imaginar que tenha estreitas ligações com as lendas de Atlântida. Quem sabe, em outras idades da Terra, como nos tempos de Cthulhu, foi manipulada por forças e poderes ciclópicos. Conhece minha série de noveletas sobre este tema? Se não, terei prazer em enviar algum material.

Diferente dos confins da Ásia e da África, conhecidos há milênios como prolongamentos elásticos do imaginário europeu, a América do Sul é a nova fronteira do assombro e da novidade. Lá a realidade é mais extravagante do que a fantasia. Acredita-se que tudo é possível naquela geografia – incerta e insondável – recentemente aflorada na mentalidade ocidental. Por exemplo, meu tio Franklin C. Clark falava de um velho missionário escocês, o Pastor David Brodie, que garantia ter visitado uma tribo primitiva, os Mlch, que viviam na fase da aquisição da linguagem e da fabricação dos conceitos. Estavam passando do urro à fala. Eram poucos, infelizmente devem ter sido dizimados pelo progresso.

Por causa da saga de Cthulhu acompanho atentamente as campanhas do Coronel Percy H. Fawcett pelo coração das selvas sul-americanas. De alguma maneira nossos interesses, apesar das diferenças, convergem. O arqueólogo inglês procura comprovar a realidade das lendas, eu me contento em engendra-las. Fawcett – um herói audaz – busca a cidade perdida de ‘Z’, para ele um posto avançado, ou uma colônia, das civilizações Atlântidas ou até mais velhas. Eu – nas silenciosas noites da Providence – invento histórias sobre ruinas e seres imemoriais. Gostaria que ‘Z’ fosse encontrada, seria uma maravilhosa corroboração para os mitos que estou desenvolvendo.

Entretanto, até o momento que escrevo, o Coronel Fawcett permanece perdido nas úmidas florestas brasileiras. Em 1925, junto com seu filho mais velho, Jack Fawcett, e o fotógrafo Raleigh Rimmell, partiu numa expedição ambiciosa e temerária. O grupo não manda notícias há mais de três anos. Pelos planos pretendia explorar a região da Serra do Roncador – belíssimo e sinistro nome – e retornar até 1927. A última comunicação, de maio de 1925, é otimista, garante que a cidade de ‘Z’ existe e brevemente será alcançada. O ponto intrigante da aventura é uma instrução oblíqua que deixou antes de partir: caso não voltasse, nenhuma força de busca deveria seguir seus passos.

Nos últimos meses os jornais e revistas começaram a especular sobre o trágico destino da jornada, sugerindo hipóteses aterrorizantes: atacados por doenças ou feras, devorados por tribos canibais ou afogados em rios traiçoeiros. Cada andarilho e garimpeiro sul-americano conta uma versão diferente do encontro com Fawcett. Ou virou cacique de um grupo de indígenas primitivos; ou, desmemoriado como o Rei Lear, vaga pelas selvas sonhando com a cidade de ‘Z’; ou, rejuvenescido, vive feliz integrado a uma tribo de homens loiros de olhos azuis. A família rejeita todas estas suposições desvairadas. Declara e reitera que Fawcett continua vivo e lúcido. Paciente, aguarda o retorno triunfal do Coronel.

Por uma dessas travessuras do destino – chamadas coincidências, enquanto estava respondendo sua carta, recebi um curioso relato de um antigo correspondente residente na Flórida. Nunca sei quanto devo acreditar em Isidoro Acevedo, é um fabulista de piratas e caças aos tesouros que gasta o tempo visitando bibliotecas pelo Caribe. Contudo seus argumentos para o desaparecimento de Fawcett são inusitados e consistentes.

De acordo com o flibusteiro Isidoro, faz uns dois anos, Fawcett vive clandestinamente na costa colombiana, na Ilha de Providence (outra coincidência?), reescrevendo suas memórias. O arqueólogo, depois de vagar treze meses pelas florestas sul-americanas, com a saúde debilitada e abalado pela morte do fotógrafo Raleigh Rimmell, resolveu abandonar definitivamente a busca pela cidade perdida de ‘Z’. O problema era passar pelo constrangimento de admitir a derrota. Para contornar o impasse se juntou com garimpeiros e viajou clandestinamente para a Bolívia. De lá contatou a família e juntos tramaram um plano de ação extraordinário. Camuflar o Coronel e construir uma rede de controvérsias para obscurecer o desaparecimento do herói.

O estratagema era simples e eficaz: divulgar periodicamente novidades e contrainformações sobre o desbravador e negar taxativamente a morte do patriarca. Com essas diretrizes poderiam preservar o aventureiro romântico e manter total controle sobre a versão mais conveniente de sua biografia. O arranjo tinha uma vantagem tática valiosa: um ícone desaparecido sempre pode produzir notícias espetaculares, mesmo conflitantes. Fora o sempre adiado clímax do personagem reaparecer, se e quando necessário. Apostavam que a Historia Oficial, algum dia, adotaria como verdade esta mitografia construída e romanceada.

Meu caro J.L.B., minha resposta à sua carta enveredou para o Coronel Fawcett. Foi premeditado, porque, como este homem singular era frequentador assíduo do Brasil e da Bolívia, pode ser que tenha desaguado no Rio da Prata noticias sobre suas andanças. Se souber alguma coisa, por favor, me informe. Também, gostaria de ler seus trabalhos, afinal parece que ambos somos parodistas involuntários de Poe. Caso tenha escrito contos fantásticos em inglês, quem sabe podemos publica-los na Weird Tales, se quiser sob pseudônimo.

Publicado originalmente no blog paulistando.

Yr most obt Servt

H.P.L.

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Comentário de Monteiro Lobato com lápis vermelho:
“Quem é Jorge Luís Borges?”
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Notas:

a) A carta foi encontrada (já traduzida, datilografada e com a anotação final) dentro do livro de Monteiro Lobato – 'O Presidente Negro ou O Choque das Raças: romance americano do ano 2228’ – São Paulo/Rio de Janeiro, Cia. Editora Nacional, 1926 (Primeira Edição). Carimbo na página três: “Célia Regina Lane / professora de inglês”. Comprado num sebo do Bixiga, bairro de S. Paulo.

b) Monteiro Lobato, entre Maio de 1927 e Março de 1931, residia em Nova York e servia ao Brasil como Adido Comercial, portanto é inexplicável como esta correspondência, se verdadeira, chegou às suas mãos.

c) Algumas hipóteses, entretanto, podem ser adiantadas. Talvez, durante a tentativa de publicar o livro‘Presidente Negro’ nos Estados Unidos, alguma cópia dos originais traduzidos foi enviada a H.P. Lovecraft. E o Cavalheiro de Providence, um missivista compulsivo, por um lapso, confundiu os dois escritores sul-americanos e trocou os endereços nos envelopes.

d) Nesta vertente, não seria perdulário imaginar a existência de outra carta extraviada, de H.P. Lovecraft. para Monteiro Lobato, despachada, quase na mesma data, para J.L. Borges por engano.

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Alguns humildes comentários da minha parte:

1) Sim, eu sei... essa carta deve ser uma invenção. Não creio que Lovecraft tenha se correspondido com Jorge Luiz Borges, muito embora os dois tenham sido autores do gênero fantástico e tenham vivido no mesmo período. Embora os dois até pudessem ter algum assunto em comum (e fico imaginando que bate papo surgiria desse encontro!) não acho que Lovecraft escreveria a um colega de outra nacionalidade, menos ainda da América Latina. Borges possivelmente conheceu a obra de Lovecraft, mas isso só deve ter acontecido muitos anos depois dele ter morrido, quando seus contos foram redescobertos e republicados.

2) A ligação com Monteiro Lobato é ainda menos provável, embora realmente Lobato tenha residido em Nova York na época que Lovecraft amaldiçoava viver na vizinhança de Red Hook. Acho bem pouco provável que Lobato tenha sabido quem era Lovecraft em vida; seus interesses quanto a literatura giravam em torno de romances clássicos, contos e novelas consagradas. Lobato comprava os direitos sobre a tradução de várias obras e as publicava no Brasil, mas raramente entre essas obras havia algo de horror ou ficção fantástica ("O Médico e o Monstro" era uma exceção louvável). Lembrando que Lovecraft era quase um desconhecido, exceto por um pequeno nicho de leitores, não me parece provável que um conhecesse a existência do outro.

3) Lobato e Borges nunca chegaram a se encontrar pessoalmente - ao menos eu não determinei isso em nenhuma pesquisa. Mas é possível que dada a proximidade entre Brasil e Argentina, os autores tenham ouvido falar ou lido as obras um do outro.

4) O trecho sobre o interesse de Lovecraft na mal fadada Expedição do Coronel Percy Fawcett é uma ótima sacada. Imagino que Lovecraft deve ter manifestado interesse quanto ao destino do Explorador perdido nas profundezas das selvas brasileiras. O paradeiro do famoso aventureiro constituiu um dos grandes enigmas da época e Lovecraft, como leitor compulsivo de jornais e revistas deve ter consumido avidamente as matérias publicadas exaustivamente sobre ele.

5) Se essa carta parece, soa e tem tudo para ser uma invenção, muitos podem perguntar: "Por que então, publicar esse HOAX no Blog"? Ora, a resposta é simples: Porque é uma história simplesmente deliciosa que eu adoraria que fosse verdade. A conexão entre Lovecraft, o prodigioso cavalheiro de Providence, Borges o autor mais importante do gênero fantástico na Argentina e nosso Monteiro Lobato - que muitos conhecem apenas como o criador do "Sítio do Pica Pau Amarelo", embora ele tenha feito muito, muito mais em sua longa carreira de escritor, seria algo notável.

6) Fico imaginando um mundo perfeito em que influenciado pela obra de Lovecraft, Borges e Lobato pudessem se juntar ao famoso Círculo Lovecraftiano e escrever contos de horror cósmico envolvendo os Mitos de Cthulhu. O que poderia surgir dessa mistura? De que forma, o inquieto autor paulistano (nascido em Taubaté) poderia inserir os horrores do Mitos no cenário tropical do Brasil? 

Imaginar tal coisa, já me faz salivar...

5 comentários:

  1. Borges publicou pelo menos um conto inspirado em lovecraft. Se nao me engano chama-se Livros de Areia

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  2. Quando falta-me o ar, não são necessárias as palavras.

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  3. Sim, Borges escreveu um conto. Creio que se chamava "There are more things" ou coisa assim. Mas esta "carta" certamente é falsa...😉

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  4. Ola, pessoal.. faz tempo que acompanho o fantastico site e ele me maravilha cada vez que leio...é uma coisa que te da desconforto e fascina ao mesmo tempo... mas o motivo que escrevo e em relação ao velho e bom Monteiro Lobato. Ele era dono da Companhia Editora NAcional e a editora publicou um dos mais fantasticos romances de terror que tive a oportunidade de ler ( não sei se o Lobato leu o original )...Trata-se do Naufrago do Espaço, seguido do Astro do Terror, ambos de Gustavo Le Rouge... NA historia, pelo que me lembro, um sujeito vai para Marte pilotando uma espaçonave impulsionada pela mente de vários bramanes. Em Marte temos vampiros invisiveis, monstros bizarros, charcos de sangue e várias outras coisas que não me lembro detalhadamente, mas posso dizer que Lobato acertou na mosca quando adquiriu os direitos de tais livros.. são sensacionais até hoje..
    Obrigado
    Luiz Henrique Trompczynski
    Terra RicaPR

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  5. Olá,
    A carta menciona o missionário David Brodie e sua descoberta dos Mlch. Isso é um resumo de um conto de Borges publicado em 1970, chamado O Informe de Brodie (e publicado com outros contos num livro de mesmo nome). Segundo Borges o conto foi inspirado na última viagem de Lemuel Gulliver.
    De fato Borges escreveu um conto dedicado "à memória de Howard P. Lovecraft". Se chama There are More Things, e foi publicado com outros contos em O Livro de Areia em 1975.
    Sobre este conto, Borges escreve:
    "O destino que, como se sabe, é inescrutável, não me deixou em paz até que perpetrei um conto póstumo de Lovecraft, escritor que sempre julguei um parodista involuntário de Poe. Acabei por ceder; o fruto lamentável chama-se 'There are more things'".
    Abçs,

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