quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Hellbound Heart - Resenha do livro "Hellraiser" de Clive Barker


Vou contar uma história, curta mas verdadeira.

Quando eu tinha 12 anos, o filme Hellraiser estreou em cartaz em alguns poucos cinemas do Rio de Janeiro. Li nos jornais e na revista Fangoria (uma revista importada dedicada a filmes de horror) a respeito dele e fiquei doido para assistir. Era "O" filme de Horror daquele ano. Mas entrar num cinema para ver esse filme não era nada fácil já que ele tinha censura etária de 18 anos.

Fui em dois cinemas, mas sempre que tentava comprar ingressos me informavam que esse filme era para adultos e que eu não tinha idade para assistir. Em uma das vezes, no Roxy, chamaram até o gerente que explicou pacientemente que se me pegassem lá, o cinema recebia uma multa. Mas não me dei por vencido! 


Na semana seguinte tentei novamente, dessa vez no pequeno Cine Jóia (que os leitores residentes do Rio devem conhecer), um cineminha pequeno, apertado e com menos de 60 assentos desconfortáveis numa galeria de Copacabana (o Jóia ainda existe, um pouco melhor hoje em dia!).

O sujeito da bilheteria, um senhor já de idade, carequinha e de bigode branco, olhou para mim e perguntou qual o filme que eu queria ver. Respondi que era o da sessão das 16 horas, sem dizer o nome. Ele consultou um programa e peguntou: "É esse do sujeito com a cara cheia de tachinhas? Que troço feio..." disse, e tentou repetir o título "Hellraiser" sem sucesso.

Soou como "EL LASER". 

Eu acenei com a cabeça um "U-hum" meio sem jeito e para minha surpresa ele pegou o dinheiro e me devolveu o bilhete. "Tá bem vazio... Não tem quase ninguém".


BELEZA! Nem acreditei! Vou ver o filme, pensei todo animado!

Quando entrei na sala realmente percebi que não havia quase ninguém. O público se resumia a mim e mais um casal de meia idade (ou não, quando a gente é moleque todos parecem ter meia idade!). Os dois passaram pela minha poltrona com uma cara de surpresa e reprovação quando me viram sentado ali.

Luzes apagadas e vamo que vamo! HELLRAISER.

Uma hora e trinta e quatro minutos de horror petrificante do qual, confesso, não devo ter visto mais do que 40 minutos. Os outros, passei encarando o vazio, com a mão na frente do rosto ou olhando por cima do meu ombro, pensando ter ouvido os dentes do cenobita trincador estalando atrás de mim. Cara, que cagaço!

Se serve de consolo, eu aguentei estoicamente até o fim. Mais do que o casal que saiu da sala na cena em que Frank renasce do inferno. Embora eu quase tenha me arrependido de não tê-los seguido quando veio a infame cena "Jesus wept" lá na parte final.


Luzes acesas e eu apavorado com o filme. Olhava para qualquer sombra e dava um pulo. Voltei para casa assombrado e nem sei como dormi. Cacete, que parada bizarra! De todos filmes que vi, Hellraiser talvez tenha sido o que me deixou mais baqueado.

Como a maioria das pessoas, eu assisti o filme Hellraiser muito antes de ler o conto original que deu origem a ele, "The Hellbound Heart", uma novela escrita pelo escritor britânico Clive Barker em 1986. Para ser absolutamente sincero eu fiquei tão apavorado com Hellraiser que tive de esperar alguns anos até assistir a ele novamente em vídeo - em uma sala bem clara e arejada!

Anos se passaram e eu comecei a me interessar pela obra de Barker, mas o conto que deu origem a Hellraiser continuava sendo um enorme mistério para mim. Ele não havia sido publicado em português e levei mais uns 15 anos para conseguir emprestada uma cópia em formato pocket book. Li, mas nunca fiquei inteiramente satisfeito pois com certeza deixei escapar alguns detalhes. Além do mais, queria ter minha própria edição e não ter de ler apressado para devolver.


Finalmente, ano passado, ouvi falar que Hellbound Heart seria finalmente publicado em português pela Editora Darkside. Adquiri a minha edição na pré-venda e quando ela chegou fiquei surpreso pela qualidade do material.

Cara, que livro caprichado e que edição luxuosa: Capa dura imitando couro negro, acabamento de qualidade com detalhes em dourado, desenhos e papel de alta qualidade.

E o conteúdo, ah, o conteúdo! Ler esse livro foi como entrar naquela claustrofóbica sala de cinema uma segunda vez, mas agora capaz de suportar o choque e desfrutar dos sustos. De todos os escritores de horror que conheço, Clive Barker é um dos únicos que consegue me afetar através daquilo que escreve. Eu adoro King, Straub, Koontz, Blackwood, e é claro, Lovecraft, mas nenhum deles consegue ser tão visceral em suas descrições quanto Clive Barker. As coisas que ele escreve ficam marcadas como uma tatuagem na nossa memória.


Em suas estórias, ele consegue alcançar aquela qualidade distinta presente somente em alguns expoentes da literatura de horror: ser ao mesmo tempo repulsivo e atraente. Você por vezes não quer continuar lendo, mas alguma coisa faz com que você continue virando as páginas compulsivamente do início ao fim. Hellraiser tem essa característica, compartilhada apenas por outros grandes clássicos do horror.

A novela, "The Hellbound Heart" não é longa, ela tem pouco menos de 150 páginas e foi incrivelmente bem adaptada no filme Hellraiser, o que faz sentido já que Barker foi tanto o diretor quanto roteirista da produção. As principais diferenças residem na estética, mas a essência do filme/novela é basicamente a mesma, rendendo obras igualmente soturnas, assustadoras e sinistras.


Para aqueles que não sabem do que trata, Hellbound Heart - traduzido aqui com o título Hellraiser, provavelmente para se aproximar do filme, se inicia com o desaparecimento de um sujeito desprezível chamado Frank Cotton. Frank é um ocultista que conseguiu adquirir uma misteriosa caixa quebra-cabeças que supostamente abre um portal para um reino de percepções e prazeres indescritíveis. Frank acaba resolvendo o enigma, mas o resultado não é bem o que ele esperava. A caixa libera os cenobitas, seres demoníacos ("anjos para alguns, demônios para outros") que o arrastam aos gritos para sua dimensão infernal. Lá ele sofre torturas inenarráveis e é reconstruído para outras sessões nas mãos de seus algozes.


Quando o irmão de Frank, Rory e sua esposa Julia, se mudam para a mesma casa onde ele desapareceu, uma gota de sangue acaba libertando Frank de sua prisão. Julia, que teve um caso tórrido como cunhado antes do casamento, encontra a coisa medonha que foi seu amante implorando por mais sangue no porão. O sangue regenera seu corpo, uma simples gota foi capaz de trazê-lo de volta, uma quantidade considerável pode devolver sua aparência original. As coisas pioram exponencialmente, Julia atrai homens para a casa e os assassina friamente. Rory acaba envolvendo sua amiga Kirsty, e pede a ela que descubra porque Julia está se comportando de maneira tão estranha. No processo Kirsty é arrastada para um pesadelo medonho no qual os Cenobitas são convocados para um ajuste de contas com direito a muito sangue, ganchos afiados e carne flagelada. Dor, sofrimento e prazer em medidas iguais... uau!

Barker é um demente que escreve como poucos!

Quem viu o filme e leu esse resumo deve ter percebido que há algumas pequenas diferenças entre os dois. No filme, Rory, o irmão de Frank, se chama Larry e sua personalidade é um tanto diferente. Mas a principal alteração foi transformar Kirsty na filha adolescente de Larry, o que fez bastante sentido.


A estrutura funciona muito bem no livro, da caracterização dos personagens, a trama central, os temas e os diálogos, até o visual. Hellraiser não envelheceu tanto quanto poderia se pensar, tratando-se de uma estória que se passa em meados dos anos 80. Algumas pessoas reclamam do tamanho, acham a estória um tanto curta e acreditam que a trama poderia ter se concentrado em explorar um pouco mais a origem da Caixa Lemarchand ou dos Cenobitas, mas a narrativa entrega exatamente o que promete. Ela é enxuta e direta ao ponto! Sem enrolação, sem barriga, sem encher linguiça - você pagou por terror, é isso que vai receber.

A novela é intensa, acompanhando pessoas realmente desprezíveis cometendo os atos mais atrozes, mas a prosa é tão bem feita que você se sente envolvido pela narrativa. Barker como eu disse, é mestre em causar repulsa e fascínio na medida exata.

Não tenho dúvida ao dizer que Hellraiser é sem dúvida um dos melhores filmes de horror de sua época, enquanto Hellbound Heart é uma das mais perfeitas estórias de horror escritas nas últimas décadas. Ela pode parecer simples, mas o diabo, como diz o ditado, está nos detalhes.


Qualquer pessoa remotamente interessada em horror deveria ler essa estória e tenho certeza, não irá se arrepender.

A contribuição de Clive Barker para o gênero horror vai, obviamente, muito além dessa pequena obra prima, mas se ele tivesse de ser lembrado por uma única novela, esta seria Hellbound Heart.

Leia, leia agora!

3 comentários:

  1. Excelente! Li e reli nesta nova edição, o que me fez rever o filme (e estou agora preso em um ciclo de insanidade rsrs).

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  2. Esse e Aliens sãos os meus filmes de terror preferidos. Hellraiser muito superior em terror que muitas bobagens do tipo pânico.

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  3. Até hoje (e olha que já sou velho), Hellraiser é o único filme de terror que me fez ter pesadelos.

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