sábado, 5 de junho de 2021

Medo de Fadas - O horrível assassinato da Noiva Feérica


A horrível tragédia aconteceu na cidade de Tipperary no interior da Irlanda.

As autoridades policiais estiveram varrendo os campos verdejantes da região de Ballyvadlea, há pelo menos uma semana em busca de Bridget Cleary quando finalmente, o corpo da mulher de 26 anos, foi encontrado. Ele havia sido escondido em um bosque isolado, colocado no meio de arbustos, hera venenosa e espinhos, sob uma camada de barro. O cadáver estava sujo quando foi removido cuidadosamente do esconderijo, mas os ferimentos ainda eram bem evidentes; produzidos por algo muito pior do que galhos espinhosos. Partes de seu corpo haviam sido queimadas e ela foi surrada. Bridget estava nua, exceto por uma meia que pendia até a metade da coxa. Havia um brinco na orelha esquerda, mas isso só foi percebido quando removeram o saco de lona que cobria sua cabeça.   

Um juiz descreveria mais tarde os eventos que levaram à morte de Bridget como "uma demonstração da escuridão que pode permear a mente humana, não apenas de uma pessoa, mas de várias - uma escuridão moral, ética, até religiosa. Um lugar tão escuro que é difícil contemplá-lo". O horror diante daquele crime chocou a Irlanda e outros cantos. O jornais divulgaram o ocorrido e muitos leitores custaram a acreditar nos fatos - pois, eles eram realmente inacreditáveis.

Tudo aconteceu no fim do século XIX, uma época em que a razão estava se consolidando na Europa e em todo mundo civilizado. Não era mais a Idade Média, época de superstição, ignorância e incerteza, ainda assim, a morte de Bridget ocorreu por conta de crenças absurdas. A moça foi morta porque pessoas estavam convencidas de que ela não era realmente quem dizia ser, mas uma criatura sobrenatural que havia assumido seu lugar.      

Bridget era a esposa de um tanoeiro chamado Michael Cleary, nove anos mais velho que ela. O casal era muito bem quisto em Tipperary, tratados como pessoas boas que até onde os vizinhos podiam presumir, eram felizes. Eles residiam em uma pequena cabana nos arredores da cidade, compartilhada com o pai de Bridget, um senhor aposentado chamado Patrick Boland. Os dois não tinham filhos, mas desejavam ter em breve. A família tinha um bom rendimento complementado por uma granja que eles mantinham e por trabalhos de costura que a moça fazia. Para todos os efeitos sua vida era bastante confortável. Bridget era letrada, moderadamente independente, considerada inteligente e vivaz.


Contudo, Tipperary era um lugar isolado, rural e com antigas tradições orais. Era também uma sociedade com várias lendas envolvendo o sobrenatural. A crença em fadas, por exemplo, era bastante difundida. De fato, muitos povoados rurais da Irlanda acreditavam não apenas na existência de fadas (as Fae do folclore celta), mas também em sua influência sobre as pessoas. 

Tais crenças coexistiam há gerações com a doutrina cristã, de alguma forma se encaixando nos dogmas religiosos, tornando-se parte do dia a dia das pessoas. As crianças cresciam ouvindo lendas a respeito do "povo pequeno" que vivia sob a terra, habitando labirintos de túneis e cavernas. Os campos só eram preparados para o plantio após uma oferta de grãos ser feita para os espíritos da floresta abençoarem o solo. Muitas famílias deixavam um prato com pão ou um pires com leite na entrada da despensa para satisfazer esses seres. As fadas eram culpadas de tudo que acontecia de errado - objetos perdidos, leite azedado, animais domésticos feridos. Para os homens e mulheres do campo, havia até mesmo um ditado irrefutável: "Apesar de nunca serem vistas, nada é mais certo do que a existência de fadas". 
    
O leitor deve ter em mente que essa narrativa não se refere a uma época incrivelmente antiga, mas que os fatos relatados ocorreram em 1895.

A própria Bridget era fascinada pelas lendas locais, ela costumava passear pelos caminhos na floresta, visitando os lugares que os moradores de Tipperary acreditavam ser o lar das Fae. Na segunda feira, dia 4 de março de 1895, Bridget foi até a casa de um primo chamado Jack Dunne em Kylenagranagh Hill. Ela levava uma cesta com ovos frescos. No caminho ela passou por um forte circular, uma antiga fortificação do período medieval, que no folclore irlandês era tratado como "forte das fadas". Muitas pessoas consideravam perigoso visitar tal lugar, mas Bridget sempre passava por ali quando estava à caminho do vilarejo vizinho. Ela gostava da paisagem, da beleza bucólica e das campinas floridas.


Era uma manhã fria e as montanhas ainda estavam cobertas com a neve do inverno passado. Depois de entregar os ovos, Bridget parou novamente no forte, e ficou ali, observando o lugar mágico por quase meia hora. Em determinado momento, ela sentiu um estranho arrepio e achou melhor voltar para casa. No percurso de 4 quilômetros, ela sentiu um frio cada vez maior, e assim que chegou em casa tratou de jogar um cobertor sobre as costas. Ela se queixou com o marido e com o pai que não conseguia se esquentar. No dia seguinte, ela sequer saiu da cama: tremia dos pés à cabeça, com os dentes batendo sem parar.

Bridget ficou assim até a quinta-feira, quando seu pai andou cerca de 6 quilômetros sob uma chuva torrencial para buscar um médico. O homem não estava, mas a esposa prometeu que ele iria ver a moça acamada até sábado. O médico apareceu apenas na segunda-feira seguinte e examinou a moça que ainda reclamava de sentir um frio insuportável. A lareira do quarto ardia dia e noite e ela continuava tremendo apesar de estar de baixo de três cobertores pesados. O doutor disse que Bridget sofria de "excitação nervosa e de uma leve bronquite", mas nada muito preocupante. Prescreveu chá quente e um tônico fortificante e foi embora.

Mas quando o doutor saiu, Michael pediu que ele esperasse para que pudessem conversar. Ele então cochichou baixo para que ninguém pudesse ouvir: disse que Bridget havia confessado ter estado num lugar proibido, "tocado pelas fadas". Afirmou ainda que seus sintomas surgiram apenas depois dela ter ficado lá por algum tempo. O marido olhou por cima do ombro duas vezes antes de revelar seu verdadeiro temor ao médico - ele temia que a esposa pudesse ter sido encantada pelas fadas. 

O doutor, embora tivesse nascido no interior da Irlanda, tendo sido criado em meio às superstições locais, não deu muita atenção às preocupações de Michael. Ele disse que este devia afastar aquelas bobagens da cabeça e se concentrar em tratar da esposa para que ela se recuperasse. Sem pensar muito no assunto, simplesmente foi embora. 


Mas Michael continuava preocupado. Nos dias que se seguiram, ele olhava a esposa de forma diferente, espiando enquanto ela dormia, cada vez mais convencido de que havia alguma coisa errada com ela. Em suas próprias palavras, ele sentia que "havia algo diferente naquela mulher" e que ela estava cada vez mais diferente da mulher com quem ele havia casado. Em determinado momento ele sentia que cabelo dela estava mais escuro, que seus olhos estavam mais claros e que sua altura estava diferente, ela parecia alguns centímetros mais baixa. Michael começou a temer que a moça acamada diante dele não era mais Bridget, mas um Changeling, uma fada que havia trocado de lugar com sua esposa quando esta estava perto do "forte das fadas".  

É possível que a ideia tenha sido plantada por Jack Dunne. De acordo com alguns, Dunne, um primo distante de Michael, era um sujeito bastante carismático e persuasivo. Ele era conhecido em Kylenagranagh Hill como um seanchaí, um tipo de contador de histórias que conhecia muito a respeito de lendas, principalmente sobre folclore feérico. Bridget já havia contado a Dunne que visitava o forte das fadas sempre que vinha lhe trazer ovos e ele a alertou do perigo que corria ao fazê-lo. A estranha doença, aos olhos de alguém como Dunne, podia ser causada por um encantamento, ou pior...

Na quarta-feira um padre visitou Bridget e disse tê-la encontrado um pouco melhor. Ele não ficou muito preocupado com a estranha doença, mas de qualquer maneira decidiu administrar nela a extrema unção, caso sua condição piorasse. A cerimônia enfatizava a possibilidade de Michael vir à perder a esposa o que o deixou ainda mais transtornado. Ele mandou o padre sair antes deste concluir o sacramento. Em seguida, ele trancou a mulher em casa e saiu para encontrar Dunne. O primo o aconselhou a agir imediatamente, ou a "verdadeira" Bridget poderia se perder para sempre: "Essa não é a sua esposa", o homem teria dito, "já se passaram vários dias, você já deveria ter buscado o velho Ganey para saber como proceder". 

Ganey era um tipo de conselheiro que ajudava as pessoas em assuntos relativos ao mundo feérico, uma autoridade em áreas rurais da Irlanda. Muitas pessoas recorriam a esses "sábios" para ouvir seus conselhos e saber como proceder em situações em que as fadas se insinuavam nas suas vidas. Michael foi visitar Ganey na manhã seguinte. Ele voltou para casa com uma mistura de ervas que precisavam ser fervidas com leite de uma vaca que acabara de ter bezerros. 

Naquela noite, ele forçou a esposa a beber a mistura de gosto amargo, enquanto Dunne e outros três homens seguravam a mulher. Vizinho escutaram alguém provavelmente Michael, gritando: "Beba isso, maldição! Beba isso ou eu mato você, sua bruxa miserável!"


Os homens também foram instruídos a realizar um ritual para afastar influências mágicas da dessas, o que envolvia jogar nela urina e gritar "vá embora presença, retorne Bridget Boland em nome de Deus". Outros vizinhos foram atraídos pela algazarra que se manteve até escurecer. Eles entraram é viram as tentativas de expulsar a suposta fada que havia assumido o lugar da Mulher. Alguns disseram que iam chamar a polícia, mas todos estavam muito assustados para interferir. 

Michael ordenou que a esposa confirmasse seu nome três vezes: "Você é Bridget Boland, esposa de Michael Cleary, em nome de Deus?" Os homens então a carregaram para perto da lareira e a empurraram para perto da chama, uma vez que o fogo supostamente tem o poder de afastar fadas e romper seus encantamentos.

Por volta da meia noite de quinta, o ritual foi concluído. Bridget estava ferida e alucinando de acordo com sua prima Johanna, mas Michael e os demais pareciam satisfeitos em ter quebrado a resistência da criatura. Na manhã seguinte, um padre foi chamado para rezar na casa e afastar qualquer presença que ainda estivesse na residência. 

Na sexta-feira, 15 de março, pela primeira vez em 11 dias, Bridget teve permissão para levantar da cama e vestir roupas. Vários parentes e amigos do casal estavam juntos na cabana para conversar a respeito do que fazer em seguida. Em determinado momento, uma discussão teve início quando Bridget pediu um copo de leite fresco. Fadas e outros seres sobrenaturais, segundo o folclore gaélico gostam de leite fresco e o recebem como uma espécie de tributo. Michael se negou a dar leite a ela e exigiu que ela comesse outros alimentos. Quando ela disse que não queria, Michael voltou a agredi-la, forçando a esposa a consumir pedaços de pão.


Os demais ficaram chocados com a cena e alguns deixaram a cabana aterrorizados. A brutalidade no entanto apenas se intensificou. Eventualmente Michael jogou óleo e parafina em Bridget o que fez suas roupas pegar fogo. Enquanto ela queimava como uma tocha, Michael gritava para os que ainda estavam lá: "Não é minha esposa! Ela é uma fada que tomou a forma da minha Bridget! Não é minha mulher que estou queimando!". Quando alguém enfim se moveu para interferir, Michael disse que mataria qualquer um que tentasse salvar "a criatura".   

Quando finalmente as chamas se extinguiram, Michael envolveu o corpo com um lençol e saiu, deixando as pessoas trancadas com o cadáver. Ele retornou cerca de meia hora depois avisando que já havia cavado um buraco para depositar o corpo. Ele e Patrick Kennedy, um primo de Bridget, carregaram o corpo através de uma área pantanosa por cerca de um quarto de milha e lá o enterraram numa cova rasa em meio a arbustos e espinhos. De volta à cabana, Michael fez o restante dos presentes prometerem que não contariam nada às autoridades.

Na manhã seguinte, um agitado Michael visitou a Igreja de Drangan na companhia de Dunne. O primo queria que Michael se confessasse, mas quando o sacerdote viu o estado de nervos em que ele se encontrava - arrancando os cabelos e chorando, disse que não poderia aceitar sua confissão. Dunne não contou ao padre os detalhes do que havia acontecido, mas deixou escapar que algo terrível havia acontecido, mas que na verdade o único que havia sofrido realmente era uma maldita fada. O padre ordenou que os dois deixassem a igreja achando que eles estavam bêbados e tratou de contatar um sargento de polícia.

Nos dias que se seguiram, a polícia procurou por Bridget e questionou parentes e amigos sobre seu paradeiro. Michael havia inventado uma história, dizendo que a esposa o havia abandonado. Ele visitou o forte das fadas em Kylenagranagh Hill, onde acreditava que Bridget estava sendo mantida prisioneira. Lá gritou chamando por ela, tendo na mão uma tesoura que serviria para cortar a linha que as fadas teriam colocado nos pulsos de sua mulher para aprisioná-la. É claro, Bridget não apareceu!

Na quarta feira, 20 de março, os Delegados da Polícia emitiram um mandato de prisão para oito pessoas que estiveram na cabana na noite em que Bridget foi assassinada. Também mandaram prender Denis Ganey, o "especialista em fadas". os prisioneiros foram levados diante de um magistrado no dia 25, e reunidos diante de um público que os vaiou e jogou objetos. O clima de indignação já havia se instalado por conta da cobertura da imprensa que categorizou o incidente como o mais horrendo dos crimes. Michael foi julgado e condenado por homicídio junto com Jack Dunne, outras quatro pessoas também foram condenadas por conspiração para cometer assassinato. No fim, entretanto, o juiz diminuiu severidade da pena imposta, explicando que os réus agiram de acordo com suas crenças genuínas e que no momento do crime estavam certos de que "tentavam matar uma criatura sobrenatural e não uma mulher". 


Michael ficou confinado em uma prisão até 1910, quando foi liberado para imigrar para Montreal. Jack Dunne cumpriu uma sentença de 3 anos e depois retornou para o vilarejo onde trabalhou como pedreiro. "Deus sabe que eu não teria feito o que fiz, se não fosse por Jack Dunne", disse Michael anos depois. "Foi ele quem colocou na minha cabeça a ideia de que minha mulher era uma fada".

Embora Michael e as demais pessoas envolvidas no assassinato jamais tenham sido entrevistadas por um psiquiatra, um artigo escrito em 2006 no Jornal Irlandês de Ciências Médicas sugere que eles sofriam de um estado psicótico conhecido como Síndrome de Capgras. Essa doença mental envolve a crença de que um indivíduo foi substituído por um impostor. Os autores da tese sugerem ainda que Michael provavelmente teve uma escalada na condição que o levou a um surto psicótico agudo. A Síndrome de Capgras é reconhecida como uma condição psiquiátrica aceita pela maioria dos pesquisadores. O contexto sociocultural de quem é afetado pela doença determina a natureza do "impostor" que pode ser uma outra pessoa ou mesmo um ser sobrenatural - como um alienígena ou uma fada.

A história recebeu amplo destaque e depois do incidente o vilarejo ficou para sempre marcado como "o lugar em que fadas são mortas". Um memorial foi erguido no local onde o corpo de Bridget foi encontrado e muitas pessoas vem de longe para prestar respeitos à sua memória. Mesmo hoje em dia em Tipperary, a história ainda é lembrada. As crianças locais possuem uma rima que diz: "Você é uma bruxa, você é uma fada / Ou você é a mulher de Michael Cleary" (Are you a witch, are you a fairy / or you are the wife of Michael Cleary).

A história continua viva, mais de 100 anos depois.

Um comentário:

  1. Que história tocante! E provavelmente nada do que a pobre mulher pudesse dizer convenceria os outros de que ela era ela mesma, e não uma fada. Bastante semelhante a uma pessoa normal que foi enviada por engano para um manicômio tentando convencer os médicos de que não é louco...
    https://bardodanevoa.blogspot.com/

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