Um grande roleplaying game lá em sua gênese tentou explicar o que era um jogo de interpretação de papéis traçando paralelo entre roleplay e brincadeiras de "cowboys e índios" (assim como polícia e ladrão) que fazem parte da infância de todas as crianças. Portanto, não causa surpresa que nosso hobby tenha vários jogos que usam a temática do Velho Oeste como pano de fundo para contar histórias. O primeiro foi Boot Hill, lançado pela TSR no distante ano de 1975, mas muitos outros o seguiram. GURPS Old West da Steve Jackson Games, Deadlands da Pinnacle, Aces & Eighties da Kenzer, o Faroeste Arcano, Dustdevils, para citar apenas alguns dos mais conhecidos.
Jogos se passando no oeste parecem atrair todo tipo de público, provavelmente pelo fascínio que essa época selvagem e violenta naturalmente desperta em todos nós. Ironicamente, não é de hoje, que muitas ambientações centradas no Velho Oeste combinam o ambiente da fronteira bravia com pinceladas de Terror. Deadlands talvez seja o mais conhecido dos jogos que fundem com maestria horror e tiroteios, medo e cavalgadas, cowboys e mortos vivos...
É inegável que a combinação foi bem recebida pelo público e crítica. Deadlands foi agraciado com o prêmio Origins como melhor RPG e tem um público fiel até hoje. Mas embora ele se esmere em misturar Velho Oeste e Terror, nunca houve um jogo que trabalhasse especificamente o Horror Cósmico de H.P. Lovecraft para esse ambiente. Alguns suplementos de Deadlands arranharam a superfície, mais notoriamente o conhecido "Adios, A-Mi-Go" que colocava os jogadores no papel de cowboys enfrentando uma ameaça vinda de Yuggoth. Outros bons exemplos foram as aventuras "The Good, the Bad, and the Utterly Insane" (o Bom, o Feio e o completamente Insano) publicado na revista Worlds of Cthulhu e "Madness Shall Rise to Devour the West" (A Loucura se levantará para devorar o Oeste) um cenário da campanha Red Eye of Azathoth de Call of Cthulhu. Sem esquecer ainda Devil’s Gulch, uma ambientação do Basic RolePlaying se passando em um oeste sobrenatural usando o BRP como plataforma.
Mas foi o suplemento Down Darker Trails: Terrors of the Mythos in the Old West que sem dúvida foi mais longe na tarefa de combinar o Velho Oeste com as criaturas Cthulhianas.
Publicado pela Chaosium em 2018, Down Darker Trails (doravante DDT) é um suplemento oficial da sétima edição de Chamado de Cthulhu. Contudo, ele não é exatamente Call of Cthulhu como conhecemos, uma vez que foi concebido para ser usado - como opção - em Pulp Cthulhu. A ideia é que o ambiente do oeste pode ser usado para cenários de terror sim, mas com personagens capazes de enfrentar essa ameaça em pé de igualdade. Para mais informações, sobre Pulp Cthulhu, vale a pena ler a resenha desse livro aqui no Mundo Tentacular (nesse link colorido). Essa proposta aproxima, DDT mais dos contos e histórias de horror escritas por Robert E. Howard, do que de H.P. Lovecraft. Não me entendam mal, o horror continua lá, firme e forte, mas há espaço de sobra para aventura, exploração, coragem e sangue. Trocando em miúdos, é um jogo de "aventuras sinistras" ao invés de "terror niilista".
Down Darker Trails é uma ambientação para construir histórias no Oeste americano, nominalmente entre 1850 e 1900, quando o Oeste Selvagem chamava por mais e mais pessoas interessadas em domar essa terra selvagem ou morrer tentando. Ele fornece todo tipo de informação sobre o período, cobrindo em detalhes pungentes e crus toda a brutalidade, selvageria e violência antes de mergulhar nos elementos sobrenaturais.
Uma das coisas mais interessantes do suplemento é que ele busca destacar as diferenças existentes entre o jogo clássico que se passa em 1920 e a época de Down Darker Trails. Há um trabalho apurado de pesquisa que ajuda a apresentar com clareza quase didática o ambiente social do final do século XIX. Racismo por exemplo, mostra sua face mais feia no Oeste americano, quando a escravidão havia acabado de ser abolida, nativos americanos ainda eram tratados como selvagens e hispânicos como cidadãos de segunda classe. O livro não tapa o sol com a peneira, ele expõe de forma bem explícita o tratamento dispensado a minorias no período. Também não esconde a brutalidade e violência que fazia parte do dia a dia nas terras da fronteira, onde roubo, vingança, injustiça e assassinato estavam em todo canto. O velho oeste era um lugar perigoso e assustador e apenas os mais fortes conseguiam sobreviver nele.
Um dos aspectos mais interessantes na ambientação é pegar esse lugar já abrasivo e insalubre pela ação dos homens e torná-lo ainda mais assustador, ainda mais aterrorizante, graças a inclusão dos Mythos. Mas sobre isso, falaremos mais adiante.
Os personagens dos jogadores em Down Darker Trails são criados essencialmente da mesma maneira que o descrito no Livro Básico de Chamado de cthulhu sétima edição. O jogador escolhe uma ocupação, rola os seus atributos, distribui pontos em uma lista de habilidades e constrói seu background. O livro introduz 26 ocupações, algumas exclusivas para DDT, como por exemplo Cowboy/Cowgirl, Dilettante/Greenhorn, Jogador Profissional, Fora da Lei. Rancheiro, Rastreador, Caçador de Recompensas, Homem da Montanha entre outras. Um toque genial é correlacionar personagens históricos com as ocupações, bem como personagens da ficção, de filmes e televisão para explicar cada uma das ocupações descritas. Isso ajuda os jogadores e o Guardião a visualizar o tipo de personagem que será criado.
Além disso, algumas habilidades foram alteradas para se enquadrar na ambientação. Por exemplo, a chance básica em uma habilidade como Reparos Elétricos foi reduzida uma vez que nessa época se tratava de um conhecimento recente. Da mesma maneira, a chance básica de outras habilidades, como por exemplo, Cavalgar, foi aumentada já que praticamente todas as pessoas estavam minimamente familiarizadas com cavalos. Novas habilidades também foram adicionadas,incluindo Jogatina, Usar Cordas e Fazer Armadilhas.
Para os que adotarem a vertente Pulp do jogo - que eu considero especialmente adequada para a proposta do jogo, há quatro tabelas listando Talentos de natureza Física, mental, Combativa e Miscelânea. Outros talentos já existentes no Pulp Cthulhu foram remodelados para se encaixar no Velho Oeste e ter o Flavor da ambientação. Se o Guardião usar o Pulp Cthulhu, pode esperar personagens mais capazes e heroicos, com maiores chances de superar desafios envolvendo tiroteios, sobrevivência no deserto e perigos convencionais. Também terão uma chance um pouco melhor contra ameaças sobrenaturais. Há dicas para construir personagens condizentes e sugestões para trabalhar o background. Outra regra bem vinda contempla criar personagens mais experientes, com uma carga extra de conhecimentos e habilidades, mas com algumas desvantagens atreladas. Por exemplo, é possível criar um veterano da Guerra Civil Americana, com várias habilidades extras obtidas nos campos de batalha, ao custo de cicatrizes físicas, mentais ou emocionais.
Outras regras opcionais que encaixam bem na ambientação inclui aumentar os pontos de vida dos personagens - para diminuir a letalidade de tiroteios e a falta de recursos médicos. Também há regras específicas para simular duelos, atirar com duas armas, lutar além de seus limites etc. No geral, são pequenas mudanças que permitem aos personagens resistir e atuar de maneira mais efetiva. Mas não se preocupe, embora as regras melhorem a capacidade combativa e resistência dos personagens, eles não são imunes aos horrores dos Myhos e seu poder esmagador. Portanto, se por um lado, os personagens conseguem sobreviver a tiroteios e perseguições contra inimigos humanos, por outro eles continuam em franca desvantagem contra as depredações do sobrenatural.
O suplemento apresneta regras específicas para situações clássicas do gênero Western, como perseguições à cavalo, guiar carroças e tem um tratamento especial no que diz respeito a perda de sanidade. O consumo de álcool, algo comum no oeste pode de fato, ajudar a superar o terror e conceder alguma capacidade de lidar com a insanidade. É claro, também há espaço de sobra para regras se referindo a novos equipamentos, armamento e animais de carga.
A história do Velho Oeste começa com a chegada de espanhóis no século XVI e termina com o assassinato do Presidente William McKinley em 1901. O foco do livro, no entanto é o período exatamente posterior a Guerra Civil, com a Guerra recebendo destaque especial como um divisor na vida dos habitantes do oeste americano. O livro no entanto cobre uma vasta gama de temas, tudo, desde Caçada a Búfalos e guiar um rebanho de gado de um estado para o outro, da vida nas cidades e povoados, até a atuação da lei e ordem e aspectos sociais é apreciado de uma maneira muito detalhada. O Guardião não vai se sentir desamparado em momento algum, mesmo que seja alguém que conhece bem pouco sobre o período. As descrições de lugares históricos, das cidades, campos de batalha e territórios é excelente e você sente imediatamente que tudo é fruto de pesquisa e dedicação. De um modo geral, o livro cumpre o papel de apresentar a ambientação e abrir o leque de possibilidades para o Guardião.
O capítulo dedicado às tribos de nativos americanos também é bem completo. Cerca de vinte tribos são descritas em detalhes suficientes para compreender o modo de vida e costumes desses povos. É perfeitamente possível construir personagens que sejam nativos dessas tribos, o que abre a opção de criar uma campanha com nativos. Há um "quem é quem" do período, descrevendo algumas personalidades marcantes do Oeste Americano, incluíndo chefes tribais, generais da Guerra Civil, homens da lei, criminosos e muito mais. Muitos nomes vão soas familiares e as estatísticas desses indivíduos são uma curiosidade bem interessante. Achei especialmente curiosa a inclusão de Ambrose Bierce, escritor americano que escreveu muitos contos de horror e desapareceu misteriosamente no México.
A seção sobre o Velho Oeste ocupa quase metade das páginas de Down Darker Trails, deixando o restante do livro para revelar os mistérios do Oeste Sobrenatural. Esta seção começa com um exame das criaturas e entidades dos Mythos que podem ser encontradas nessa região. Em geral, muitas das entidades, como os Habitantes da Areia (Sand-Dwellers), Povo Serpente (Serpent People), K’n-yanians, e Yig, são oq ue a maioria dos fãs de Lovecraft esperam encontrar em uma ambientação centrada nessa parte da América. Entretanto, há algumas boas surpresas. Por exemplo, o Deus sem Face (Faceless God), um obscuro avatar de Nyarlathotep, mais conhecido como uma Esfinge do Egito, vaga pelos desertos do meio-oeste… Um pequeno problema é que algumas criaturas e entidades não estão presentes no livro básico e sim no Malleus Monstrorum, um suplemento que está fora de impressão atualmente. Há vários Tomos dos Mythos que podem ser encontrados pelo Oeste Sobrenatural, bem como alguns novos. Além disso, o livro apresenta diversos cultos e sociedades secretas, além de estilos de magia como Magia Rústica e tradições xamânicas.
As coisas se tornam ainda mais estranhas (e bastante pulp) no capítulo dedicado aos Mundos Perdidos do Oeste. Nele, quatro localidades perdidas ou onde os investigadores podem se perder são apresentadas. Duas delas são baseadas em contos famosos: O Vale Perdido de Robert E. Howard e os subterrâneos de K’n-Yan no qual o conto "The Mound" de H.P. Lovecraft e Zealia Bishop se baseia. Os outros dois são o "Deserto Sombrio", descrito como uma sinistra dimensão paralela de nosso mundo que pode ser adentrada fisicamente ou através de sonhos, e onde o tempo parece não passar. As ideias para construir aventuras usando esses lugares poderiam ser um pouco mais elaboradas, mas ele confere algumas sugestões interessantes para uma pequena campanha usando esses cenários.
Concluindo Down Darker Trails temos a descrição de duas típicas cidades (ou melhor povoados) do Oeste Selvagem, com respectivas aventuras se passando nelas. Pawheton é uma daquelas cidades da corrida do ouro no Território de Dakota, no melhor estilo Deadwood. O lugar é mais um assentamento com tendas e cabanas do que uma cidade estabelecida, enquanto San Rafael é uma cidade de rancheiros na divisa do Texas com o Mexico. A primeira é claramente inspirada na série de TV, Deadwood, enquanto a segunda parece muito aqueles vilarejos empoeirados dos filmes de Faroeste Spaghetti italiano. Uma delas é mais suja e violenta, a outra mais clássica e romantizada. Ambas, no entanto, oferecem opções na forma de segredos, rumores e NPCs, muitos deles relacionados aos Mythos.
A primeira aventura tem o título "Something from Down Bellow There" (Alguma coisa lá de baixo) e pode ser situada em qualquer uma das cidades base apresentadas. Nela os jogadores são contratados para descobrir o que aconteceu a um grupo de garimpeiros que trabalhavam perto da cidade e que desapareceram se deixar vestígios. O desafio aqui é tentar negociar com aquilo que os garimpeiros encontraram enquanto escavavam uma mina. Há um ar de Robert E. Howard na trama. A segunda aventura é "Scanlon Daughter" (A Filha de Scanlon) que se passa em San Rafael. Ela pode ser descrita como uma versão sangrenta de Romeu e Julieta com um acréscimo dos horrores lovecraftianos no caldo. Esse cenário irá demandar planejamento e diplomacia, muito mais do que habilidade com armas, mas é claro, há espaço para um ou dois tiroteios.
Fisicamente DDK é um livro que segue o modelo da Chaosium para a sétima edição de Call of Cthulhu. Ou seja, capa dura, interior colorido e uma bela arte que combina bem com os elementos do texto. De fato, muitas das ilustrações foram pinçadas em compêndios e ilustrações do período e são incrivelmente bonitas e detalhadas. O livro também se vale de muitas fotografias de época de celebridades do período e de localidades famosas. Os mapas são excelentes e o trabalho de cartografia com San Rafael é brilhante. A arte mais recente, feita especificamente para o livro, é comparativamente inferior, não chega a comprometer, mas destoa do restante. O livro tem um texto fluido e gostoso de ler, e quem já gosta do assunto encontrará uma arca do tesouro de curiosidades.
Ao contrário de tentativas anteriores que buscavam trazer o Velho Oeste para o universo dos Mythos, Down Darker Trails faz o caminho inverso. Ele apresenta o Oeste Selvagem de uma maneira vibrante e detalhada e só então se preocupa em inserir os elementos sobrenaturais nele. Essa mudança de postura faz toda a diferença e trás o contexto histórico para frente da ambientação. O jogo é primeiramente a respeito do Oeste e dentro dele aparecem de maneira mais discreta os elementos de horror cósmico.
Além disso, o livro é muito bem escrito e pesquisado, com referências e uma rica bibliografia que pode servir para futuras consultas. Ele fornece uma base sólida para o Guardião construir sua própria ambientação de horror no Oeste selvagem que pode descambar para uma campanha. Há muitas sugestões e ideias a serem aproveitadas ao longo das páginas. Para os fãs é um suplemento imperdível com ação e aventura nas planícies e uma boa dose de horror além do tempo e espaço.
quero
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