segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Muralha de Adriano - Os Limites do Império Romano na Escócia


Próximo do fim do primeiro século, os Romanos já haviam incorporado ao seio do Império a maior parte do território hoje pertencente à atual Inglaterra. Não havia sido nada fácil dada a resistência dos povos locais decididos a não se submeter ao jugo dos invasores. Os romanos já haviam experimentado um histórico de violentas rebeliões no sul, sendo a mais famosa o levante comandado pela rainha celta Boadicea, em 61, que resultou na destruição de Londinium, povoado romano que deu origem a Londres. Outros levantes causavam sérios danos e constituíam um obstáculo às pretensões do Império. Havia líderes tribais hostis e os druidas, representantes das velhas crenças pagãs, condenavam a invasão dos romanos, que haviam recentemente adotado a crença cristã.

Demorou quase um século, apenas quando Cláudio chegou ao trono, para as operações nessa região se intensificarem e surgirem resultados favoráveis para os romanos. O que hoje é conhecido como Inglaterra, em especial a região sul e leste, foi enfim conquistada pelas legiões.

Em meados de 70 dC, a atenção dos romanos se voltou para o norte, um território chamado Caledônia, que oferecia vastas riquezas na forma de escravos e metais. Essa conturbada região que hoje corresponde à Escócia sinalizava como o próximo alvo natural para as expansões imperiais. Tratava-se de uma região selvagem e pantanosa, habitada por inúmeras tribos e clãs bárbaros que formavam um povo conhecido pelos romanos como Pictos. Os Pictos eram vistos como uma grave ameaça à seu domínio. Seu nome em latim significava "pintados" e se referia às tatuagens e pinturas corporais que eles adotavam quando iam para a batalha. Esses guerreiros implacáveis, de cabelos negros e pele morena, se entregavam ao calor da batalha de uma forma que assustava até os legionários mais calejados.  Os pictos lutavam nus e tinham uma bravura que beirava a insanidade. Saltavam para o combate com lanças e machadinhas, investindo sem se importar com a própria segurança.


As primeiras incursões romanas na Caledônia ficaram marcadas por mais derrotas do que vitórias. Os pictos se mostraram inimigos ferozes e dispostos a tudo para preservar as suas terras. Eles sabiam como se mover rapidamente pelo território e armavam emboscadas mortais que causavam sérios danos às tropas romanas. No mais famoso e ousado desses ataques, uma emboscada noturna teria causado baixas consideráveis à IX Legião. Os homens que retornaram da expedição à uma charneca foram literalmente massacrados pelos pictos usando flechas envenenadas. Os poucos que voltaram com vida estavam muito feridos ou enlouquecidos pela experiência.

De acordo com Tacito, cronista principal do Governador Julius Agrícola, o ponto de virada para os romanos foi a vitória conquistada em 83 dC, na sangrenta Batalha de Mons Grapius, que resultou numa verdadeira carnificina. Os romanos conseguiram atrair um grande contingente de seus inimigos para uma luta em campo aberto onde, sabiam, levavam vantagem. Acreditando que sua vantagem numérica lhes daria a vitória, os pictos invadiram o campo de batalha aos milhares. Foram derrotados pela melhor organização e disciplina dos romanos. Hordas de pictos foram rechaçadas uma após a outra pelas centúrias romanas dispostas ao longo do campo. Segundo o historiador, a ferocidade do combate foi tamanha que os caledônios que se viram forçados a bater em retirada abateram suas próprias mulheres e crianças temendo a represália dos inimigos. A maioria deles escapou para as Terras Altas no Norte da Ilha.

Parecia então questão de tempo até que os romanos conseguissem estabelecer controle total sobre as disputadas terra do norte. Contudo, não foi isso que aconteceu. Embora tenham conquistado uma vitória decisiva, ela não se mostrou definitiva já que os pictos restantes não estavam dispostos a ceder seu território sem luta.


Sabendo que não poderiam fazer frente aos romanos no campo de batalha, os Caledônios adotaram outra estratégia para enfrentar os invasores. Passaram a atacar os povoados e fortes estabelecidos pelos romanos, usando para isso bem elaboradas táticas de guerrilha. Os ataques aconteciam à noite e logo que os romanos se organizavam para o contra-ataque, os pictos escapavam para algum território pantanoso que conheciam bem e no qual podiam se refugiar para se defender melhor. Os romanos perderam muitos homens nesses ataques e nas perseguições que se seguiam. Isso afetava enormemente o moral das tropas que passaram a temer os pictos e reputar a eles rumores apavorantes. Diziam que os guerreiros eram mais feras que homens e que seus feiticeiros podiam se transformar em serpentes venenosas.

Os pictos por sua vez se mostravam cada vez mais ousados nas suas incursões. Os primeiros assentamentos romanos sofreram pesadas perdas nas mãos de saqueadores que roubavam gado, incendiavam fazendas e espalhavam o terror entre os colonos. Deixavam após sua passagem um rastro de morte e destruição ao longo de toda fronteira. A Caledônia logo passou a ser considerada uma das regiões mais perigosas do Império e o risco de se estabelecer nesse lugar selvagem afugentava a maioria dos colonos. Os constantes ataques de clãs pictos se tornaram um incômodo para Roma que precisava realizar campanhas regulares que consumiam fortunas em recursos e homens. Eles podiam ter conquistado as terras, mas os pictos continuavam sendo uma incômoda pedra em sua sandália.

Entra em cena então o Imperador Adriano.


Adriano havia reformado os exércitos, equipou as tropas e ganhou enorme respeito entre os militares ao adotar para si a vida de um soldado comum, marchando e carregando equipamento como qualquer outro legionário à serviço do Império. Mas embora contasse com o amor e devoção de seus exércitos, Adriano ainda tinha inimigos políticos - e temia ser assassinado em Roma. Decidido a manter distância desses rivais, ele deu início a uma série de visitas às Províncias do Império. Até então, aquilo era uma novidade, já que o Imperador raramente deixava Roma. Durante essas viagens ele arbitrava disputas, pacificava querelas e espalhava sua boa vontade, assumindo o papel de grande conciliador. Adriano defendia que Roma deveria estabelecer limites para o Império e refrear seu ímpeto de conquistas em favor de consolidar as terras que já possuía.

Um dos lugares visitados pelo Imperador Adriano foi a problemática Província da Britânia que constituía um exemplo perfeito para sua visão anti-expansionista. Do seu ponto de vista, de nada adiantava anexar novos territórios, se aqueles já governados estavam sujeitos a levantes e rebeliões. Adriano queria assegurar a posição de Roma sobre a Britânia e garantir que as terras fossem consolidadas de uma vez por todas.

O ideal seria manter os revoltosos à distância e impedir que eles cruzassem a fronteira para realizar ataques aos fortes e povoados já existentes. Tendo esse objetivo em mente, os romanos planejaram erguer um muro, protegido por sentinelas e fortificações. Dizem as lendas que o conceito do muro partiu do próprio Adriano que fez o desenho da muralha. Com esta criavam uma zona de exclusão capaz de manter os inimigos à distância, o que garantia a segurança e desenvolvimento dos assentamentos estabelecidos. Traçando esse limite, mostrariam que os romanos estavam ali para ficar. 


As obras para a construção da colossal muralha se iniciaram no ano 122 dC, à mando do Imperador Adriano em pessoa. O muro de pedras se estendia por mais de 120 quilômetros, atravessando planícies como uma linha divisória. Sua extensão cobria de costa a costa a região em que o território britânico se estreitava como um gargalo. Para acompanhar a construção do muro, os romanos despacharam tropas incumbidas de fazer a segurança dos operários. Pontuaram essa fronteira com nada menos do que 260 fortificações responsáveis por suprir os trabalhadores vindos de todos os cantos do império. Em meio à construção, mudaram o foco e os próprios soldados começaram a se ocupar do trabalho de erguer o muro.

A maior parte da matéria prima, pedra e turfa, foram obtidas no local, ainda que o transporte de um canto para o outro tenha sido um desafio considerável. Os operários talhavam as pedras, enquanto escravos as transportavam até o local desejado para sua colocação. Madeira e metais foram trazidos de longe ou negociados com líderes britânicos locais que se tornaram aliados dos romanos da noite para o dia. A edificação do muro ironicamente ajudou a pacificar rivais de longa data que se viram atraídos pela possibilidade de enriquecer com o enorme empreendimento.   

Os romanos fizeram de tudo para economizar onde podiam na obra, mas apesar disso, a qualidade da construção impressionava. O muro demorou quase 6 anos para ser construído e contou com pelo menos 15 mil operários. No final das contas, era uma obra sólida e extremamente resistente que cumpria a sua função de imediato. Com uma altura média de 4,5 metros por 2,5 metros de largura o muro fornecia uma defesa eficiente contra invasores. O seu topo era percorrido por uma estrada de 1 metro de largura, por onde transitavam as sentinelas. Os quartéis espalhados ao longo do muro, com torres de observação ofereciam abrigos de onde era possível ver os arredores e se precaver da aproximação de inimigos. Mais do que isso, os soldados podiam dormir, descansar e cozinhar sem abandonar o posto.


A Muralha de Adriano não foi erguida apenas por questões de segurança. Ela servia a outra importante função - gerar renda para o Império. Historiadores acreditam que a barreira possuía postos que cobravam taxas sobre circulação de mercadorias e pedágio para a passagem de pessoas. A muralha também ajudou a atrair um fluxo de colonos que se sentiam protegidos por ela. Não por acaso, povoados começaram a nascer junto da muralha ou próximo a ela permitindo a colonização da Província. Curiosamente, alguns povoados de caledônios também começaram a se instalar perto da muralha por indivíduos interessados no comércio que se desenvolveu gradualmente.

Mas os planos de Adriano de desenhar os limites do Império Romano e consolidar as terras esbarraram na ambição de seus sucessores. Em 138 dC, o Imperador Antonino ordenou uma nova invasão da Caledônia, reascendendo as disputas com os Pictos. As tropas romanas avançaram de forma significativa em território escocês, a ponto de construírem uma segunda muralha dedicada a Antonino, 160 km ao norte da de Adriano e já bem mais próximo das Terras Altas.

A Muralha de Antonino era menor, com 63 km de extensão, e erguida com barro em vez das pedras como a fortificação original. A construção só resistiu por 12 anos, até 154. As linhas romanas retrocederam para a Muralha de Adriano que se firmou como o ponto defensivo mais ao norte. O império faria mais quatro grandes invasões, incluindo uma, em 209, com 40 mil homens. Em 211, chegou-se a um acordo de paz com os clãs locais, já bastante romanizados tendo adotado tradições, religião e até mesmo o idioma.


Com a decadência do Império Romano nos séculos que se seguiram, a Muralha de Adriano, que ficava longe demais da sede do Império começou a perder homens e teve sua manutenção negligenciada. No século IV, os caledônios lançaram uma ofensiva que a muralha não foi capaz de conter. Às voltas com as invasões bárbaras em Roma, mais e mais tropas foram deslocadas das ilhas britânicas, até que em 410 teve fim a administração romana. Os povos locais passaram a controlar a Muralha que foi então gradualmente abandonada.

Os romanos, no entanto, haviam deixado um legado indelével tanto na paisagem quanto na história local. Britânicos e também os caledônios haviam assimilado muito de sua cultura. Roma também incentivou o surgimento de cidades o que ajudou a desenvolver a região antes isolada e perigosa. O comércio se estabeleceu e a adoção de leis diminuiu os riscos para os que viajavam. Estradas ligavam pela primeira vez os centros urbanos, assim como canais para abastecimento de água e técnicas de cultivo e colheita nos campos.

A Muralha de Adriano existe até hoje, é uma construção magnífica, verdadeiro testemunho da genialidade dos romanos e de sua capacidade de mobilização nos tempos antigos. Milhares de turistas a visitam anualmente e se impressionam com sua grandiosidade.

10 comentários:

  1. LUCIANO, EU TENHO UMA AVENTURA QUE ESTOU CRIANDO PARA CTHULHU INVICTUS, EXATAMENTE BASEADO NA MURALHA DE ADRIANO E NO SUMIÇO DA LEGIO NONA HISPANICA. MUITO BOM SEU POST!!!! ABRAÇOS

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    1. Ei, cara! Poderia compartilhar essa aventura? Valeu!

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    2. Daniel, ainda não acabei! Mas se quiser, passo o plot pra vc!

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    3. Boa ideia usar a hispânica! Compartilha ai que destino você deu pra ela na história =D

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    4. A Hispana teve um destino sombrio...

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    1. Pense assim...Algo aconteceu com a Legio Hispana...Algo tão devastador que ela simplesmente sumiu inclusive dos censos de legiões da época...E ai +/- 15 anos após a investigação estar completa, o Imperador Adriano manda erguer a muralha. Menos para proteger as fronteiras do territorio romano, e talvez mais para evitar que novos contingentes se expusessem ao horror inominavel na Caledonia...A muralha de Adriano era uma especie barreira alfandegaria...mas seria mais uma barreira "sanitaria"...
      Lembrar que as pesquisas mais recentes afirmam que a Legio Hispana foi enviada para Nijmegen, na Holanda...Isolada num forte...esquecida....

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  3. Quando falou nos pictos, só lembrei de "Beyond the black river" de Robert E. Howard, amigo de Lovecraft. Conheci esse conto na adaptação que Roy Thomas fez para a Marvel, lançada aqui no Brasil na "Espada Selvagem de Conan", intitulada "A fronteira do fim do mundo". Tudo se encaixa no contexto! Uma história maravilhosa mostrando a vida na fronteira da civilização! Uma das melhores de Conan!

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    1. Sim, também conheci primeiro os Pictos da Era Hiboriana e só depois descobri que eles eram inspirados nos habitantes da Caledônia, no extremo das Ilhas Britânicas.

      Howard era um entusiasta da história e conhecia bem o assunto. Ele usou os pictos reais como referência direta das tribos selvagens que habitavam o mundo hiboriano e que colocaram a civilização dos reinos civilizados de joelhos.

      Essa história que você citou é realmente incrível.

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