quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Nos confins do Império - Explorando o passado na Muralha de Adriano


Em maio de 2019, tive a incrível oportunidade de viajar para o Norte da Inglaterra onde pude visitar a Muralha de Adriano. Foi algo surreal estar lá e explorar aquele lugar impressionante, carregado de significado histórico.

Durante toda viagem mantive um diário com anotações para cada lugar que visitei e fiz alguns comentários baseado no que ouvia e no que encontrava de informações. Algumas anotações foram feitas no próprio local para aproveitar a emoção que sentia.

Como estamos falando especificamente a respeito da Muralha de Adriano, quis compartilhar isso aqui no blog junto com algumas fotos que tirei no local. São alguns parágrafos soltos - não se trata de um texto corrente, mas trechos com apontamentos.

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17/05/2019

Ponto alto da Excursão Fronteira Histórica - Visita às ruínas da Muralha erguida pelo Imperador romano Adriano.

Curiosamente a muralha não foi erguida apenas para manter os bárbaros afastados, mas com o intuito de estabelecer limites e constituir uma fronteira protegida para o Império. Ela também era uma maneira de consolidar os interesses dos romanos na região. 

Os romanos viam essa Província (Britânia/Caledônia) com grande interesse e desejavam consumar seu domínio, mas não dispunham do contingente necessário homens e nem de recursos financeiros para tanto. Os pictos, as tribos que habitavam a Caledônia (Escócia), ofereciam grande resistência. Atacavam os postos avançados, pilhavam as cidades, matavam os colonos e incendiavam as fazendas. Eram considerados como bárbaros aos olhos dos romanos e dos britânicos já romanizados que foram enviados para colonizar a área.

A construção da Muralha se iniciou em 128 d.C por sugestão do próprio Imperador que via a necessidade de manter os bárbaros do lado de fora e salvaguardar suas fronteiras. Ele também desejava consolidar a posse das terras conquistadas. Considerava que ali seria o limite do Império, a "Fronteira da Civilização" - tudo que estivesse além daquele muro deveria ser considerado como "bárbaro" e "primitivo".

Trecho da Muralha
Restos de uma casa exterior colada ao muro
A construção da Muralha demandou pelo menos 12 anos. Os romanos não tinham como contratar operários ou pedreiros, escravos também eram muito caros para serem usados em uma tarefa como aquela. Decidiram utilizar como força braçal num primeiro momento prisioneiros de guerra, principalmente para o trasporte dos blocos. Posteriormente empregaram os próprios soldados na tarefa de cortar as pedras no formato desejado e edificá-las. 

Os soldados trazidos para o trabalho vinham de todos os cantos do Império: Gália, Grécia, Norte da África, Galícia, Pérsia, Egito... em geral eram soldados em final de carreira (25-30 anos) e com experiência como pedreiros e trabalhadores braçais. Os soldados que se juntavam à empreitada ganhavam um abono no momento em que aceitavam a incumbência. No final de 5 anos de serviço na Muralha recebiam pequenas propriedades na região onde poderiam se instalar e aproveitar sua aposentadoria. Era uma maneira de incentivar a colonização na região.

Segundo a guia, exames de DNA feitos na população local, realizados em 2013, apontaram que as famílias que hoje habitam a região possuem diversos traços raciais distintos. Herança do Leste Europeu, Oriente Médio e Norte da África. Muitas destas pessoas possuem antepassados que provavelmente foram trazidos de outros cantos do Império para trabalhar na construção da Muralha.

Parede do Portão de Entrada para o Forte de Vindolanda
Trecho do muro e contorno de uma construção externa provavelmente um posto de vigilância

O trabalho principal dos soldados durante a construção era o transporte das pedras e assentamento das mesmas para a construção da muralha. Era um trabalho repetitivo e pesado que envolvia trazer pedras usando carroças puxadas por mulas. As pedreiras ficavam há pelo menos 20 quilômetros de distância. O regime de trabalho era bem organizado, com horários bem definidos e turnos estabelecidos para descanso e rotatividade de funções.

A Muralha começou a ser erguida no sentido Leste-Oeste de costa a costa, começando e terminando no mar. 

Postos de Guarda foram dispostos a cada 500 metros, com pontos de observação para as sentinelas. Cada ponto tinha um contingente permanente de 8-10 soldados que permaneciam na vigília. Eles forneciam suporte uns aos outros e proteção no caso de uma invasão, a regra é que os homens deviam ficar a uma distância em que um grito pudesse ser ouvido.

As fortificações eram erguidas em pontos estratégicos que forneciam uma vantagem de observação. O objetivo era que os guardas pudessem enxergar os arredores e perceber a aproximação de invasores. O terreno baixo e plano da Escócia ajudava nesse sentido para que uma sentinela pudesse ver pelo menos 1 quilômetro adiante. Do posto de guarda que visitei era possível ver em todas as direções, o que sem dúvida oferecia uma excelente vantagem estratégica para as sentinelas incumbidas de vigiar os arredores.


Trecho do Muro
Posição defensiva e visão da muralha exterior do Forte

Cada forte funcionava de maneira autônoma e podia hospedar pelo menos uma guarnição de soldados - uma centúria (100 homens). Os fortes ofereciam alojamento para os soldados, refeitório e contavam com depósitos para estocar suprimentos. Os maiores fortes contavam com forja, curtume, pelaria, casa de banho, taverna e bordéis. Um muro adjacente a Muralha circulava os fortes e garantia a proteção. Colado ao muro era normal surgirem casas de civis que escolhiam viver perto do forte que concediam proteção. Muitas dessas famílias eram compostas por esposas, filhos, pais ou familiares de soldados ou ex-soldados que serviam naquela guarnição.

Os soldados podiam levar suas famílias, em especial esposas e filhos para dentro dos fortes em caso de ataque inimigo. Apenas os comandantes podiam trazer suas famílias para viver dentro do forte permanentemente.

Segundo o guia muitos dos soldados trazidos para trabalhar na construção da Muralha acabaram casando com mulheres da região  e com o tempo também acabaram se tornando nativos, aprendendo idioma, tradições e costumes dos povos escoceses.

Subindo até o topo do monte na direção do Forte com o muro aos fundos
O Imperador esperava que os bárbaros acabassem "assimilados" pelos romanos, mas no fim das contas os costumes de romanos e dos nativos acabaram se misturando. Aos poucos algumas tradições romanas foram abandonadas em nome de costumes locais. Os soldados se ressentiam da distância  e muitas vezes acabavam incorporando costumes locais que vinham de sua interação com os "bárbaros".

O Imperador Adriano jamais visitou a Muralha depois de sua conclusão. Ele jamais teria colocado os pés na Fronteira mais ao norte da Britânia por considerar uma região muito perigosa. Ele teria dito que a Muralha marcava o "Fim da Civilização", o que existia além daquele ponto era a barbárie em estado puro. A antítese do poder civilizatório de Roma.

O local parecia carregado de um profundo significado histórico. As ruínas em si não mostravam muito, estavam realmente muito deterioradas pelo tempo, ainda que as paredes se conservassem íntegras como se tivessem sido erguidas ontem e não 1800 anos atrás. Havia uma emoção no ar, a certeza de estar entrando num lugar de importância histórica, igualmente estranho e fascinante.

A trilha que margeava a encosta era ingrime e aberta aos elementos. Ao menos não estava chovendo apesar do céu estar bastante escuro e coberto de nuvens. Estava frio e úmido, com um vento gelado que cortava através dos três casacos que eu usava. Do local onde a van da excursão nos deixou, no sopé do monte até o forte no alto deste, seria uma caminhada de 30 minutos. O problema é que se tratava de uma subida bem aguda, então o esforço foi considerável. A trilha era coberta de cascalho que ao menos estava firme. 

Posição defensiva no forte
Visão do Forte em ruínas e de construções defensivas


Ovelhas pastavam ao redor e o cheiro de esterco era tão forte que chegava a arder no nariz. Havia bolas de lã presas na vegetação baixa de um verde quase cinzento. As ovelhas escocesas tem o corpo forte e parecem enormes bolas andantes de lã cinzenta. O rosto delas é de um preto muito escuro, assim como as patas. Quando elas fazem barulho o som é longo e arrastado.... Béééééééééééé. E quando uma começa a balir todas outras acompanham. Felizmente elas pareciam estar acostumadas com visitantes e simplesmente se afastavam a medida que eu passava por elas.

Um sol tímido me saudou quando atingi a metade do monte. A vista era incrível! Dali era possível ver as ruínas que se encontravam a mais uns 100 metros através de uma outra trilha. Depois de um esforço como esse, o suor pela atividade física era um problema. Escorria por dentro do casaco e através das mangas em tanta quantidade que pensei estar molhado de sereno. Eu nem cogitei tirar o casaco, pois o vento estava gelado.

No topo da colina, antes do forte havia uma loja de conveniência com café fresco que pareceu maravilhoso. Ali ficava ainda a bilheteria para quem quisesse entrar nas ruínas propriamente ditas. A loja apresentava alguns objetos achados nas ruínas, fotografias, maquetes e mapas. 

Mais uma subida ainda mais ingrime, com um trecho final escorregadio. Mas chegamos ao forte (Castrum) de Vindolanda.  

No entorno das ruínas foi colocado um muro de ferro com cancela que estava aberta.

A latrina
Ruínas da Latrina e Casa de Banho romana
Os visitantes tinham liberdade para passear pelas ruínas na ordem que bem entendessem, o que acaba sendo um pouco frustrante já que não há uma indicação por onde começar. Eu tentei traçar um caminho que me levasse a todas as construções antes de retornar. As únicas referências visuais são pequenas placas que identificam os prédios (ou o que resta deles). Há ainda placas maiores com representação de como deveriam ser os prédios no auge da ocupação e uma breve explicação de sua função.

As placas ajudam a imaginar como deveria ser o assentamento e como era a vida das pessoas que lá viviam.  Coisas simples como onde ficavam os guardas, onde eram os alojamentos, onde as armas ficavam guardadas, como os soldados dormiam, onde era a cozinha, onde ficava o refeitório e a latrina.

O forte era uma construção bem maior do que eu pensava. Estima-se que ele oferecia alojamento para até 5 centúrias de soldados, ou seja 500 homens, mas raramente contou com esse contingente. O mais provável é que ele fosse o lar de uma centena de homens. Isso sem contar as famílias que viviam coladas ao muro primeiro em acampamentos e depois casinhas simples de alvenaria. 
Posto de Observação dos soldados - repare na visão que eles tinham
Prédio externo - estábulo e galpão

Essas construções externas contavam com uma pensão, galpão, depósito usado para estocar grãos e estábulos. A maioria dos prédios do lado de fora do muro eram temporários e portanto feitos de madeira, por isso pouco restou deles.  


Do lado de dentro do forte, o alojamento e a latrina eram os prédios em melhores condições. Era possível reconhecer perfeitamente a latrina que tinha espaço individual para receber até 30 pessoas ao mesmo tempo. Sim, as pessoas simplesmente sentavam umas ao lado das outras quando precisavam usar a latrina sem nenhum senso de privacidade.

O prédio do alojamento era largo, com 30 metros de lado a lado e espaço para até 100 homens segundo estimativa do guia. Ele possuía duas lareiras com chaminés para garantir o aquecimento. O prédio ao lado servia como refeitório onde a comida era servida aos soldados e mais a frente ficava a cozinha e o depósito para estocar alimentos.

As lareiras eram essenciais para manter o conforto dos homens, os prédios não tinham janelas, mas possuíam dutos de ventilação no teto que podiam ser abertos ou fechados dependendo da estação do ano. Eles ajudavam a escoar a fumaça e permitiam a ventilação. No inverno a temperatura nessa região pode chegar a -20 graus, com neve, geada e vento forte. Durante o resto do ano a temperatura média é de 10 a 20 graus, com períodos de muita chuva.

Ruínas do Alojamento de soldados
As fundações de um prédio do Forte
Infelizmente a casa do Comandante da Guarnição desapareceu por completo, restando apenas duas paredes e o piso no chão. Todos os pisos por sinal são idênticos com pedra lisa unida por concreto. Há escadas e rampas que permitem o acesso às diferentes áreas da ruína. Não restou nenhuma construção com telhado inteiro e não existem também janelas nos prédios. O máximo de ventilação é proporcionado por frestas.

Já nos muros existem espaço para observação, que poderiam ser interpretados como brechas ou frestas através das quais os sentinelas podiam fazer a vigília. Eu tentei me colocar no lugar das sentinelas observando o horizonte cinzento e contemplando atentamente pelas frestas algum movimento suspeito. Dali era possível ver o entorno da fortificação e antecipar qualquer avanço inimigo.

À noite deveria ser frio, escuro e absurdamente assustador ficar olhando o vazio enquanto se esperava por um possível ataque. Os soldados ficavam nesse pequeno posto de vigilância, batendo os pés para afastar o frio da madrugada, esfregando as mãos para se aquecer minimamente. Nas noites mais frias eles podiam usar um manto comprido de lã que concedia alguma proteção contra o clima gelado, mas para pessoas vindas de regiões quentes do mediterrâneo, aquilo devia ser horrível.


Casa do Comandante Pretoriano
Caserna de guarda com a fresta para vigília
Fico imaginando o que pensavam e por onde seus pensamentos viajavam enquanto esperavam ali pelo amanhecer. Talvez pensassem a respeito do lugar onde nasceram, sobre suas famílias e sobre as dificuldades do dia a dia. Quais seriam suas expectativas, medos e esperanças? O que será que pensavam ao mirar o horizonte, tentando conciliar seus pensamentos com a  tarefa de vigilância. 

Quantos soldados ao longo de séculos não se enfiaram naquela mesma caserna apertada de vigília e se debruçaram para observar melhor o exterior enevoado? O que sentiam ao ver as planícies verdes, as trilhas ingrimes e as nuvens baixas? Será que temiam os povos locais, será que eram felizes ou estavam simplesmente aterrorizados de viver nesse lugar ermo? 

É difícil dizer, provável que a maioria deles eventualmente acabasse se acostumando à vida nos limites do Império. A maioria deles casava, tinha filhos e iniciavam suas famílias naquelas terras estranhas. Imagino que devia ser extremamente difícil para os soldados recém chegados. Devia ser inquietante especialmente à noite. Esses homens não tinham ninguém a quem recorrer exceto seus companheiros de armas.

Ao lado da estátua do Imperador Adriano
Busto do Imperador
Não é de se estranhar que os soldados criavam laços com os habitantes locais. Naquele lugar distante de tudo, os vínculos tinham de ser estabelecidos até por uma questão de sanidade. O isolamento era incrível! Não havia ninguém por perto. Viver ali devia ser uma provação. Era realmente uma fronteira e é impossível invejar a vida dura que essas pessoas levavam.

Quando enfim o Império Romano começou a desmoronar, os homens que habitavam esses fortes distribuídos ao longo da Muralha de Adriano  começaram a se sentir abandonados. Eles tinham cada vez menos notícias de Roma e havia cada vez menos legados e visitantes imperiais. Em dado momento devem ter se sentido desobrigados de continuar a vigília. A essa altura, a maioria já havia se misturado aos locais. 

Aos poucos os homens foram deixando as muralhas e a vigília. Sem olhar para trás juntaram seus poucos pertences, suas famílias e partiram para algum vilarejo. Se tornaram "bárbaros", como aqueles que deviam vigiar.

Poucos séculos depois, a Muralha de Adriano abandonada pelos seus soldados e com a manutenção sonegada regrediu a um estado de ruína. O forte foi sendo tomado pelo mato e ninguém o usou por muitos séculos. Durante a Idade Média ela era apenas uma curiosidade deixada pelos romanos um testamento de uma época em que um grande povo tentou traçar os limites entre civilização e barbárie.


Hoje a Muralha de Adriano continua lá e provavelmente continuará muito depois que eu (e todos que estão lendo isso) tiver partido. Foi nisso que pensei ao me me afastar do lugar e olhar uma última vez por cima do ombro enquanto descia pela trilha. 

Juro que ao me voltar para o posto de vigília onde havia estado poucos momentos antes, senti como se um sentinela romano estivesse ali. E foi impossível não levantar a mão em uma despedida solitária para algum soldado fantasma que observava. 

7 comentários:

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