segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

O Antiquário - O Homem que desenterrou o passado de Londres


Era uma pequena loja em uma das partes menos elegantes de Londres, mas ela possuía a mais peculiar das clientelas. De segunda a sexta o lugar ficava fechado, e seus únicos visitantes eram estudantes que vinham espiar através da vitrine as maravilhas em exposição. Aos sábados a loja abria as suas portas e as pessoas vinham admirar o que estava à venda. O proprietário - descrito por um conhecido como um "genial batráquio", era baixo, com uma barriga proeminente, cabelos grisalhos rareando e olhar curioso. Ele tinha o hábito de fumar seu cachimbo com um tabaco de odor pronunciado. Sentava-se atrás do balcão, esperando pacientemente pelas pessoas despejarem ali seus tesouros. Ele ficou lá por muitos anos - de 1895 até sua morte em 1939, e nesse período acumulou artefatos valiosos, muitos dos quais posteriormente adquiridos pelos principais Museus de Londres.

O jornalista H.V. Morton escreveu para seus leitores em 1928 as seguintes palavras no Sunday Times:

"Talvez seja a mais estranha e incomum loja de Londres. A tabuleta sobre a porta de entrada mostra o símbolo de egípcio do Deus Ra, não uma simples placa, mas um artefato removido de uma tumba ancestral no Vale dos Reis. As prateleiras e armários estão sempre tomados por centenas de objetos. Os períodos históricos dispostos lado a lado. Vasos chineses e ânforas gregas ao lado de espadas japonesas, broches elizabetanos, cabeças de flecha saxãs, moedas romanas, estatuetas celtas...

Há pedaços de tecido usado para envolver múmias, fragmentos de vidro colorido, uma sandália romana em perfeito estado, encontrada abaixo do pavimento de Londres, um pequeno objeto encolhido e ressecado que é uma mão humana mumificada... todos objetos genuínos, podendo ser adquiridos por alguns shillings".

Essa valiosa coleção de tesouros ou simples tranqueira dependendo de seu ponto de vista era coletada por George Fabian Lawrence, um antiquário nascido na área de Barbican, em Londres no ano de 1861. A maior parte do estoque havia sido reunida clandestinamente, e mais de uma vez museus da região visitaram o lugar para reaver alguma peça surrupiada de uma exposição pelos dedos leves de um visitante. A loja não perguntava a procedência dos itens negociados, comprava e pagava em dinheiro... sem fazer perguntas.


Por praticamente meio-século, instituições augustas, do célebre Museu Britânico até os pequenos museus itinerantes de curiosidades, faziam visitas regulares ao Antiquário localizado em West Hill. Ele supria acervos com coisas vindas de todos os cantos do mundo. Entre as mais valiosas peças obtidas por Lawrence estava a cabeça de uma estátua representando um Deus Marinho grego, peça que foi comprada pelo Museu de Londres e até os dias atuais é uma de suas principais atrações. O Museu Britânico adquiriu no Antiquário uma tábua etrusca com maldições que desde então consta em seu acervo. Foi dali que veio também o Tesouro Cheapside, uma inestimável coleção de jóias com mais de 500 itens incluindo gemas, broches, anéis, pulseiras e colares encontrados em um porão pouco depois da Grande Guerra. Foi um verdadeiro triunfo para a carreira de Lawrence ser ele o intermediário nessa barganha, já que ela compõe a maior e mais completa coleção de jóias do período Elizabeth e Stuart até hoje. Isso sem mencionar os broches egípcios, os instrumentos musicais celtas, os artefatos da Babilônia, os tesouros israelitas, as peças romanas e todo o resto.

O método de negociação de Lawrence era simples e engenhoso. Por muitas décadas ele vagava pelos bairros periféricos de Londres sempre nos horários de almoço e folga dos trabalhadores que lá viviam. Pagava bebidas e perguntava se aquelas pessoas estariam dispostas a vender coisas que tivessem encontrado ou que estivessem em suas famílias há gerações. Lawrence sabia que os antepassados daquelas pessoas haviam viajado pelo mundo, conhecido terras exóticas e visitado lugares distantes. O Império Britânico havia espalhado sua influência até os limites da Terra e seus súditos tinham uma sede inesgotável de novidades e curiosidades. Quando retornavam para suas casas, traziam consigo pequenas lembranças que ficavam na família passando de pai para filho. 

Também eram essas pessoas que escavavam, procuravam e desenterravam fragmentos da longa história de Londres. A velha Londres que havia visto tantas gerações que a chamaram de lar. Nos porões e subterrâneos encontravam peças da antiguidade, quando a cidade ainda era jovem mas já fervilhava com vibrante comércio e incontáveis visitantes. O antiquário sabia que eram os trabalhadores e operários da cidade quem tinham maior chance de encontrar tais objetos, já que eles eram os responsáveis por demolir os velhos prédios e erguer os novos. Eles tinham um contato mais íntimo com o mundo antigo que a maioria dos estudiosos jamais teria.


Lawrence era um intermediário que pagava em dinheiro pelos tesouros que lhe eram oferecidos. Logo se tornou conhecido: as pessoas passaram a procurá-lo com mercadorias retiradas das profundezas do Tâmisa, das margens lodosas de rios, de ruínas escavadas e de fundações abandonadas há séculos. Tudo que podia ter valor histórico acabava passando pelas suas mãos. 

De acordo com Morton, que visitou o Antiquário em West Hill ainda jovem em meados de 1912, Lawrence era tão conhecido entre a população simples de Londres que muitos o consideravam um colega de trabalho. Alguns o chamavam de "Stoney Jack", um sujeito disposto a pagar shillings por pedras e lixo aparentemente sem valor. O antiquário explicava aos interessados o que estava buscando: qualquer coisa antiga, estranha, peculiar e incomum. Ainda que não parecesse ter valor, ele estava interessado em ver o que era oferecido e dar seu veredito. Disseminou dessa maneira um "rudimentar treinamento arqueológico" para quem quisesse aprender. Permitia que pobres, destituídos e vagabundos visitassem sua loja para ter uma noção do que ele desejava. Voltavam dias mais tarde carregando peças embaladas em sacos de aniagem e caixotes velhos de madeira. Assim chegavam às suas mãos ávidas aquelas cabeças de múmias, punhais romanos, capacetes normandos e outros tesouros.

Lawrence fazia a maioria de suas negociações cara a cara, sem a necessidade de agentes. Ele mantinha os bolsos cheios de meia-coroas, shillings e sixpence usados para recompensar contatos e informantes que lhe traziam dicas de onde encontrar as peças. Algumas de suas negociações ocorriam em pubs e tavernas, com contrabandistas, ladrões de sepultura e viciados em ópio despejando sobre uma mesa suja algum fragmento vivo da história. O antiquário avaliava ali mesmo, pegava, pesava, ponderava e depois disso enfiava a mão no bolso removendo algumas moedas.


Suas maiores descobertas, contudo foram feitas em suas peregrinações por Wandsworth. As peças dessa região portuária e movimentada eram trazidas de longe pelos homens do mar da orgulhosa Marinha de Sua Majestade e por marujos estrangeiros que vinham de toda parte. Eram objetos que viajavam no porão de navios cargueiros, negociados diretamente, trocados por alguma quinquilharia ou arrancados dos dedos de algum nativo recalcitrante. Não demorou para que os próprios marinheiros, cientes da fama de Lawrence, trouxessem itens que podiam lhe interessar. Quando um navio chegava do Cairo, dos Mares do Sul, do Oriente Distante ou de outras paragens, lá estava o Antiquário para recepcioná-lo, com seus bolsos cheios de moedas.

"Lawrence compreendia que aquelas pessoas eram simples e não tinham noção do que estavam oferecendo por alguma ninharia. Ainda assim, ele não considerava que estava ludibriando seus parceiros, a maioria daquelas coisas seriam descartadas ou jogadas no lixo se não fosse por ele. Muitas das pessoas que os traziam, achavam que elas estavam sendo espertas e que Lawrence era o idiota".

Os informantes e negociantes que procuravam o Antiquário se espalhavam pela cidade, mas seu alcance era ainda maior, chegando a Bristol, York, Birminghan, Oxford... em tempos em que a informação era transmitida face a face, Lawrence conseguia criar uma rede de informantes como um King Fagin.      

Dois outros toques de genialidade garantiam que o velho Stoney Jack permanecesse como um favorito da classe operária. Primeiro, ele era justo! Se um objeto trazido até ele fosse negociado por um valor muito superior com alguma instituição, ele rastreava quem havia trazido originalmente e oferecia uma recompensa. Além disso, Lawrence jamais deixava de oferecer uma recompensa aos que traziam algo para ele. Ele dava alguma gorjeta como forma de cativar seus fornecedores. Mesmo as descobertas mais modestas recebiam um agrado, nem que esta tomasse a forma de uma caneca de cerveja ou prato de ensopado. A atitude de Lawrence cativava as pessoas, era ele, afinal de contas um estudioso, homem letrado e distinto, mas disposto a tratar as pessoas de modo gentil. Sua atitude lhe valeu outro apelido entre os pobres, "Old six-pence", um testamento a sua generosidade.


Lawrence viveu num tempo em que a arqueologia estava emergindo como uma disciplina acadêmica, mas embora tivesse uma carreira profissional como oficial de construção da cidade, e ganhasse um bom salário, ele se considerava acima de tudo, um antiquário. A pequena loja em West Hill poderia ser apenas um hobby, mas aquilo era de fato, o que ele mais gostava de fazer.

Filho de um penhorista, ele teve contato com objetos antigos desde criança. Lawrence abandonou os estudos e com entusiasmo abraçou o ofício que era de seu pai, tornando-se um auto-didata. Sabia que o pai perdia dinheiro vendendo objetos de valor por ninharia, sem conhecer a origem das peças. Para não cair no mesmo erro vasculhava os livros da Biblioteca do Museu Britânico em busca de informações em livros e catálogos, tentando descobrir a história dos itens que passavam pelas suas mãos. Ali descobriu que uma moeda romana podia valer cem vezes o valor da compra. Soube como diferenciar metal amarelado de ouro, como reconhecer peças originais e como separar bijuterias de jóias. Logo ele substituiu o pai no comando da loja de penhores, mas esse emprego não duraria já que ele queria algo mais íntimo. Ele desejava ter acesso às peças, manipular, ver, estudar...

Para Lawrence, o passado parecia mais real e infinitamente mais fabuloso do que o presente. Ele dizia ser capaz de sentir quem havia sido o dono daquelas peças, quem as havia usado e em algum momento, amado. Ele podia segurar uma sandália de couro usada na Londinium no século I e inventar toda uma narrativa de como ela teria sido perdida indo parar num túnel antigo até ser encontrado por acaso séculos mais tarde. Stoney Jack oferecia uma história colorida de diferentes períodos de Londres. Uma época que ele jamais conheceu, mas da qual falava com discernimento. Não existia ninguém mais aficionado pelo passado do que ele. 

Controverso em suas aquisições e métodos, Lawrence era o homem certo no lugar correto para conservar a herança histórica de Londres. Não é exagero dizer que ele foi essencial para que muitos daqueles tesouros inestimáveis fossem salvos de um triste destino. Entre 1890 e 1930 a cidade passou por uma reforma urbanística comparável apenas a reconstrução por conta do Grande Incêndio de 1666. Prédios antigos eram demolidos e substituídos por novas construções, prédios mais altos e com fundações mais profundas. O subsolo de Londres era constantemente remexido, fazendo aflorar dele tesouros ocultos há gerações. Nos anos que antecederam a moderna engenharia civil, operários eram vitais para escavar e colocar abaixo as construções georgianas que substituíram em ordem cronológica prédios elizabetanos, medievais, saxônicos e romanos. O estrato de eras passadas vinha à superfície expondo a vida dos seus antigos moradores.   


Foi a era de ouro das escavações, com trabalho feito com pás e picaretas, lenta porém gradualmente. Só isso tornou possível preservar tantos tesouros que seriam destruídos por bate-estacas e perfuradoras modernas. Ainda assim, não existia um sistema para identificar antiguidades ou artefatos e muito deve ter se perdido. É lamentável imaginar quantos tesouros foram descartados em pilhas de entulho já que seus descobridores desconheciam do que se tratava. Lawrence ajudou a diminuir essa perda.

Sua intervenção salvou pelo menos 12 mil objetos que foram negociados diretamente com o Museu de Londres e mais 3 mil que foram parar nas estantes do Museu Britânico. Isso sem falar de outros tantos. Do lodo do rio ou do pó das ruínas, as peças precisavam de alguém com os olhos aguçados do antiquário de West Hill para reconhecê-las.   

Quando George Fabian Lawrence morreu aos 79 anos, ele não era um homem rico ou reconhecido. Sua fortuna totalizava cerca de mil libras (aproximadamente 87 mil em valores corrigidos) e sua pequena loja acumulava dívidas.

Para aqueles que o conheceram, o antiquário foi um exemplo, o jornalista H.V. Morton escreveu na ocasião de sua morte que "ao encorajar operários a encontrar tesouros do solo e lutar para que eles fossem reconhecidos como tal" Lawrence fez mais do que um "exército de acadêmicos".

Talvez as palavras mais importantes sejam de Sir Mortimer Wheeler, um dos diretores responsáveis pelo Museu de Londres, e negociante habitual da pequena loja. Na ocasião do funeral ele disse com propriedade:

"A história tem um débito para com o senhor Lawrence e seu incansável trabalho como antiquário. Graças a ele e seus esforços em conscientizar as pessoas da importância desses artefatos, evitou-se que uma parte importante da história da cidade, do país e do mundo caíssem no esquecimento. Graças a ele podemos olhar para quem fomos e pensar em quem aspiramos um dia vir a ser".

Nada mal para um homem que andava com os bolsos cheios de trocados. 

3 comentários:

  1. Ótima Matéria! Extraordinária a descrição para quem quiser utilizar o arquétipo de Antiquário!

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  2. Porreta, não sei como vocês conseguem ter tantas ideias boas, toda vez que vejo um post destes eu penso: "Sempre quis ver essa postagem".

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