quarta-feira, 22 de julho de 2020

A Jornada Final - A conclusão da vida de Abdul al-Hazred


Seguimos para  conclusão da longa jornada do feiticeiro, sábio, viajante, mago e ocultista Abdullah ibn Jabir al-Hazraj al-Ansari que viria a ser conhecido posteriormente pelo nome de Abdul al-Hazred, o autor do blasfemo Al Azif que por sua vez, ganharia fama como Necronomicon.

11. Em Damasco e Novos aprendizados 

De volta à Arábia através da Pérsia, al-Hazred seguiu para Basra, onde conheceu Saddam ibn Shahab, um místico árabe que havia recentemente retornado das terras ocupadas pelo Califado visigodo (a região que hoje pertence ao sul de Portugal). Ibn-Shahab assim como, al-Hazred se tornou um viajante cujas jornadas foram motivadas por visões obtidas através de sonhos. Mas diferente de al-Hazred ele tentou negar essas revelações adotando o dogma Islâmico. Ibn-Shahab era também muito mais jovem e não tinha um compreendimento completo das suas visões que o aterrorizavam.

Ainda assim, suas obras impressionaram al-Hazred, sobretudo a coleção de escritos conhecidos como "Sonhos do Vale de Pnakot". Tentando compreender como controlar suas visões, Ibn-Shahab intuitivamente encontrou um método de explorar seus sonhos de forma consciente. Por algum tempo, apesar de bem mais jovem, se tornou professor de al-Hazred guiando-o através das sendas oníricas e da exótica Terra dos Sonhos. Juntos os dois avançaram através do Labirinto de Zin, as Câmaras de Vaultoor e os recessos de Throk, além é claro de conhecer os mistérios do Vale de Pnakot. Saddam também aproveitou o encontro para absorver as narrativas sobre os Antigos e aprender as práticas de meditação usadas para estabelecer comunicação com os "deuses que sonham".   

Depois de se separar de ibn-Shahab, o peregrino decidiu retornar para a Síria. A essa altura da vida, ele já beirava os 70 anos, mas aqueles que o viam dificilmente dariam a ele mais do que 50 anos. Sua energia e vivacidade pareciam inesgotáveis e ela era frequente tema de rumores que afirmavam ser impossível um homem de sua alegada idade conservar o viço e frescor daquela forma. Ninguém entretanto levantava questionamentos, ao menos não diante dele.

Ao chegar a Damasco, vindo de Palmira, al-Hazred decidiu que passaria os anos vindouros naquela grande cidade, colocando à prova seu conhecimento em experimentos práticos. Para tanto ao chegar à majestosa cidade comprou um verdadeiro Palácio só rivalizado em tamanho e suntuosidade pela residência real. Lá reuniu material para construir um laboratório de magia, repleto de ingredientes trazidos de todos os cantos do mundo conhecido. Caravanas vinham até ele, oferecendo tesouros valiosos ou itens raros para abrilhantar sua coleção. Ele os pagava em ouro e todos o tinham como um rico sábio de gostos peculiares, alguém beirando a excentricidade.


Em seu santuário al-Hazred testou os limites de suas habilidades mística, desencadeando feitiços de enorme poder e inquestionável imoralidade. Realizou o milagre da transmutação, sondou os segredos da invisibilidade, da magia negra que permite a troca de mentes, exercitou sentidos obscuros e é claro, testou as fórmulas que permitem trazer os mortos de volta à vida por intermédio dos sais perfeitos. Seu covil macabro era conhecido entre os mais desprezíveis mercadores de escravos que ofereciam espécimes para seus experimentos. Para hospedar essas vítimas, uma masmorra foi construída sob seu palacete e lá ficavam confinados aqueles que seriam submetidos a todo tipo de provação com o intuito de ampliar o já considerável rol de habilidades arcanas do feiticeiro. Gritos e lamentos irrompiam dessa escura masmorra maldita, onde os prisioneiros nem sempre eram humanos ou mesmo, estavam vivos.

A busca incessante por esse saber profano ocupava todo tempo de al-Hazred e ele se alienou de assuntos mundanos e mesmo do que se passava na cidade onde ele havia se radicado. Por volta de 722, al-Hazred soube com raiva e indignação que Yazid II, que havia ascendido ao trono, instituiu um édito ordenando a destruição de todas as imagens em seu Califado. De acordo com fontes bizantinas no período, ele chegou a essa decisão instigado por um cabalista judeu que previu um longo reinado para o Califa se ele tomasse para si a missão divina de destruir todos ícones nos seus domínios. Evidências arqueológicas confirmam que igrejas cristãs sofreram muto durante esse período e que incontáveis templos foram invadidos, tendo suas estátuas transformadas em pó.

Al-Hazred foi tomado pela ira e consternado se dirigiu até a residência do Califa exigindo o imediato cancelamento do édito e que dentro do possível fossem feitas compensações para os danos causados. O Califa reagiu de forma ainda mais furiosa às ordens daquele insolente que só poderia estar louco. Yazid chegou perto de ordenar a execução de al-Hazred, mas foi dissuadido de fazê-lo por conselheiros que conheciam a fama do feiticeiro. Ao invés disso, ofereceu um cargo na Corte como Pesquisador de Ciências já que muitas das maravilhas propostas por al-Hazred se encontravam no campo da natureza e não da magia negra. Para convencê-lo a aceitar o cargo, o Califa eximiu o mago de livrar de sua coleção de estatuário.

Entretanto, al-Hazred não ficaria muito tempo nessa importante função. Yazid II morreu em 724, no auge de sua vida (de causas desconhecidas, mas com menos de 30 anos). Seu sucessor, Hisham ibn Abd al-Malik, forçou ainda mais o édito e mandou confiscar e destruir estátuas e multar pesadamente aqueles que as detivessem. O palacete de al-Hazred foi invadido e várias de suas valiosas estátuas, inclusive representações milenares dos Antigos, foram confiscadas e destruídas quando ele estava fora. Ao retornar, sua fúria foi visceral!

Pouco depois do ocorrido, al-Malik caiu doente, afetado por uma moléstia desconhecida que consumia sua vida à olhos vistos. Nenhum médico ou filósofo foi capaz de determinar que mal o afligia e parecia ser questão de tempo até o Califa expirar em terrível agonia. Desesperados para achar uma cura, chamaram al-Hazred para examinar o nobre. Com presteza ele despachou um agente até seu laboratório e mandou que lhe trouxesse ingredientes selecionados com os quais preparou um unguento milagroso que afastaria os espíritos invisíveis que dizia, estavam drenando a vida do Califa. Com efeito, ele se curou em poucas semanas e passou de desenganado a plenamente refeito de seu infortúnio. Muitos consideraram o evento um milagre, outros temiam que tipo de cura o feiticeiro havia promovido. No fim, a salvação de al-Malik veio com um documento assinado pelo próprio Califa no qual garantia benefícios exclusivos a al-Hazred de que nem ele, nem a sua preciosa coleção de estátuas seriam novamente perturbados.   

12. O Kitab al-Azif

Ainda em Damasco, Abdul al-Hazred começou a se comportar de uma maneira estranha para um homem de sua expressiva fortuna e notável posição social. Ele se ocupava cada vez mais frequentemente em ler seus poemas nas esquinas do Grande Bazar, fazendo estranhos e quase incompreensíveis sermões para os transeuntes. Muitas pessoas que passavam ignoravam aquele homem de barba longa e face coberta de cicatrizes. Mas os que se colocavam aos seus pés eram recompensados por belas poesias e histórias de vida.


Por volta de 722, com 80 anos de idade (e ainda parecendo não ter mais do que 50), ele deu início a um dos mais ambiciosos projetos de sua tumultuada existência e que escreveria seu nome nos anais da história. Ele decidiu que a integralidade de seu trabalho precisava ser de alguma forma preservado e seu conhecimento transmitido para as gerações futuras. Para alguns, colocar em papel todos os pensamentos que povoavam sua mente febril era uma necessidade para lidar com a insanidade que o acometia, mas outros supõem que a concatenação daquele tratado esotérico se deu com o intuito de aplacar um antigo pacto firmado com Nyarlathotep. Conhecendo a natureza de tal divindade, é realmente possível que o sardônico Caos Rastejante tenha exigido o cumprimento desse pormenor como forma de saudar um débito antigo.

Parte livro, parte registro, de certa forma um Testamento, o tratado recebeu o título Kitab al-Azif (O Livro de Al-Azif). Infelizmente, não existem informações confiáveis do que significaria esse nome, embora suponha-se que possa ser uma forma respeitosa de tratamento, usada para se referir aos Antigos. Algumas fontes árabes atestam que essa palavra se refere ao som que as cigarras e outros insetos produzem e que segundo o folclore árabe simboliza o ruído da conversa entre os jinns e demônios do deserto. Um defensor dessa teoria afirma que tal forma de conversação é conhecida como "Versos de Shaitan" (demoníacos ou satânicos).

O historiador do Islã al-Nihaya aponta para uma versão similar do termo: "Aziful Jinn" que seria a voz dos jinn, o povo místico do deserto que uiva com o vento. Há outra hipótese incomum para o título que poderia ser traduzido como "O Livro da Cura". O conceituado dicionário russo-árabe Baranov, editado no século VII traduz "azif" como "momento de cura promovido após a provação, geralmente uma calamidade". Nesse contexto, seria cabível ainda uma tradução próximo como "Livro das Tragédias" ou "Livro das Calamidades".

Várias fontes indicam que o texto original redigido pela mão de al-Hazred teria sido escrito em pele humana. No entanto, tal presunção parece ser pouco confiável, uma vez que residindo em Damasco ele teria poucas oportunidades de extrair e processar tamanha quantidade de material. Ainda que tenha contado com um círculo de mercadores de escravos por décadas, não parece factual que ele pudesse se prestar a tal atividade que ocuparia boa parte de seu tempo. Entretanto, um exame de um volume traduzido do al-Azif pelo grego Theodorus Philletas, atestava que uma das primeiras edições havia sido encapada com a pele de bebês cristãos como um tributo ao al-Azif original encadernado com a pele de mil escravos. Por algum tempo, o rumor sobre as edições do al-Azif encadernadas com pele humana circulou, dando vazão aos rumores de que o texto supostamente "precisava ser confinado em tal material" para que conservasse suas propriedades arcanas. Tal pensamento provavelmente é mera superstição e não possui qualquer base ou comprovação.

Segundo os biógrafos de al-Hazred ele teria demorado 3 anos e sete meses para concluir o al-Azif, tarefa que demandou sua atenção completa em um regime extremamente disciplinado de escrita. Philletas mencionava na introdução que o autor teria transcrito trechos inteiros da obra durante incursões na Terra dos Sonhos, extraindo da realidade onírica mais de um capítulo da obra. O que isso realmente significa fica aberto a interpretação do leitor.


O resultado final do Tratado, uma vez concluído, é nada menos do que monumental. O esforço hercúleo de descrever as experiências esotéricas e metafísicas de uma longa existência devotada a desvendar os segredos dos Antigos só pode ser igualado a obras do calibre da Bíblia, Torah ou o próprio Corão. Sozinho, al-Hazred escreveu de modo febril, dia e noite sobre tudo que sabia e acumulou de conhecimento dos celebrados Mythos de Cthulhu. O resultado era algo impensado e de teor indescritível; nada menos que o maior Compêndio sobre os Mythos jamais escrito.

A despeito de estar repleto de toda sorte de superstição, preconceito e sincretismo mitológico que é característico nos tratados medievais, o livro parece estar muito à frente de seu tempo. Por vezes é difícil compreender o que o texto expressa, o que seria simplesmente alegórico ou metafórico, meramente poético ou surreal. Ler o al-Azif (ou mesmo suas traduções posteriores) é um exercício complexo, intrincado e que traz mais dúvidas do que certezas. Não constitui de modo algum leitura para os não iniciados, e mesmo o mais calejado ocultista se verá acossado por conceitos e noções difíceis de assimilar ou decifrar o teor desejado pelo autor. Há de se lembrar que Abdul al-Hazred não por acaso era chamado "árabe louco" e como tal, seu trabalho refletia um estado mental de alguém acometido por um saber devastador, capaz de pulverizar a razão, aniquilar a sensatez.

Não obstante, há detalhes impressionante que denotam o quanto seu conhecimento do universo e das coisas que o constituem se destacava em meio aos sábios do período. Por exemplo, quando descreve os planetas, o autor usa o termo "esfera", ao invés de "disco", como faziam muitos contemporâneos medievos. Além disso, a noção de um universo vasto que se estende muito além da Terra - uma parte irrisória do cosmo, constitui uma noção incomum, diversa do que acreditavam os astrônomos de sua época.

No sutra "De Yidhra, Aquele que promove os sonhos", al-Hazred demonstra noções compatíveis com a célebre teoria da Evolução das Espécies de Darwin (que só seria proposta formalmente no século XVIII e XIX). Ele escreve de modo bastante claro: "E a matéria da vida em estado puro se tornou um verme, e o verme uma serpente, e a serpente se tornou um lagarto, e este, desenvolvendo pernas andou, nadadeiras, nadou e asas, voou (...) e ao longo dos milênios, esse ser se tornou o homem".

O autor também indica conhecer a multidimensionalidade do espaço, e que a parte visível do universo é meramente uma projeção de um todo. Ele estuda os conceitos dos Deuses Exteriores e os correlaciona com fenômenos da natureza observável em nossa realidade, projetando que colossos como Yog-Sothoth e Azathoth representam a incorporação de elementos cósmicos, no caso, o tempo/espaço e a entropia. Al-Hazred lança dessa forma bases para um pensamento filosófico que encontra conformidade nas teorias da Física Quântica moderna.       

Capaz de mudar paradigmas da história, alterar percepções e surpreender com uma notável modernidade oculta, o al-Azif  constitui um mistério quase insondável. Ele era tão incompreensível para a maioria dos homens que o leram na Idade das Trevas, quanto ainda o é hoje, exceto para os mais iluminados partidários da metafísica.            


É curioso notar que o al-Azif parece ser uma obra não terminada, um trabalho que não foi concluído uma vez que o autor morreu (ou desapareceu) antes de deitar a pena. As traduções dos estudioso que tiveram acesso a ele deixam claro que alguns capítulos não apresentavam conclusão e que certas ideias são simplesmente abandonadas em meio a exposição. Propositalmente ou não, quem pode saber? É conveniente tentar explicar a ausência de trechos e a censura de alguns parágrafos, como falha dos tradutores gregos latinos ou ingleses que se debruçaram sobre o material original, mas Theodorus Philletas, Ollaus Wormius e John Dee, defendem que a tarefa de traduzir o texto, foi cumprida da maneira mais fiel possível, com direito a todas as incoerências e fragmentos quebrados contidos na versão original.

É possível supor que se al-Hazred tivesse vivido um pouco mais, ele teria revisado o manuscrito até atingir a perfeição literária e filosófica, corrigindo os trechos em que prevalece uma disposição confusa e caótica, que grosso modo permeia todo o trabalho. Seria então o al-Azif mais acessível, menos intrincado ou parcialmente legível? Novamente, quem pode saber...

Ao terminar suas anotações, Abdul al-Hazred deve ter contemplado seu vasto trabalho, tocado o velino cru com os dedos manchados de tinta e se conscientizado do monumental trabalho ali reunido. Teria ele ponderado sobre o perigo que aquilo representava? Teria imaginado em algum momento que tantas vidas seriam consumidas pelas palavras que cobriam aquele tecido? Outros acadêmicos que tomaram para si o trabalho de decifrar o blasfemo tratado relataram ter sofrido após concluir a tarefa. Meditaram a respeito de queimar, rasgar, destruir o resultado de sua labuta... evitando assim, de alguma forma, que tal livro caísse nas mãos dos homens. Os clérigos que condenaram Ollaus Wormius por ter traduzido o Necronomicon do grego para  Latim o amaldiçoaram e o condenaram aos tormentos do Inferno pelo seu intento, e ele era mero tradutor... que dizer de al-Hazred que escreveu de sua própria lavra o tratado? Teria ele se arrependido e desejado jamais tê-lo feito?

Isso jamais saberemos, pois ele preferiu não discorrer a respeito.

13. A Derradeira Jornada

Finalmente chegamos ao capítulo final da longa vida de Abdullah al-Hazraj, a história de sua morte. Muitos historiadores usaram o destino traumático do "Árabe Louco" como metáfora para alertar as pessoas quanto aos perigos da busca obsessiva por conhecimento proibido. Também falaram de sua morte como forma de prevenir aqueles que cortejam o favor dos Deuses Ancestrais ou neles buscam aliança. Mas a pergunta que se faz é: mesmo que soubesse de seu fim, será que um homem como al-Hazred teria mudado algo em sua existência terrena? Teria ele se arrependido e buscado redenção em outros caminhos menos tortuosos? Conhecendo a inquietude que marcou sua vida e a rebeldia que ele abraçou desde jovem, parece pouco provável que ele se arrependesse de qualquer coisa.

Mas não há como ter certeza, e portanto, ao invés de falar sobre o que se assume, falemos a respeito do que temos como fato.


Naquela altura de sua vida, já bastante idoso, o mago soube que sua morte era iminente e convencido de que havia uma última tarefa a cumprir decidiu empreender uma derradeira Peregrinação. Antes de partir, ele doou suas posses em favor da construção do grande Mosteiro de Damasco que ganharia notável fama entre os filósofos e cientistas árabe-muçulmanos. Poucas décadas mais tarde, ele se tornaria a primeira universidade de Damasco.

Outra providência tomada foi entregar a um dos seus discípulos de confiança, supostamente um jovem de nome Umar bin-Tuffalah, o manuscrito original do al-Azif. Este recebeu instruções criteriosas para guardar o documento e levá-lo até Basra onde ele deveria ser colocado aos cuidados de um outro antigo discípulo que tinha contatos com copistas que poderiam disseminar o trabalho. Dessa forma, ele não ficaria restrito a um único leitor, a uma coleção ou uma biblioteca. Desde o início al-Hazred parecia preocupado em espalhar sua palavra e fazer com que ela chegasse ao maior número possível de interessados. E não é exatamente isso que fazem os Profetas ungidos com o saber? Seja como for, sabe-se que ele entregou junto com o pacote contendo o documento original uma soma considerável de moedas para que fossem feitas cópias da sua obra prima. E tudo indica que essa vontade foi cumprida pois ao menos três cópias do manuscrito vieram à tona nos anos seguintes, em Basra, Alexandria e Damasco e a partir destas a palavra foi lançada na Terra. Ibn Khalikan, o famoso acadêmico árabe foi um dos contemplados com uma dessas cópias e esta supostamente teria viajado para o ocidente, ensejando na tradução que impingiu no mundo o celebrado Necronomicon.

Quanto a al-Hazred, ele se juntou a uma caravana que seguia para o sul, almejando visitar uma última vez a mítica Irem, a Cidade dos Pilares. Talvez ele desejasse morrer exatamente onde sua vida sofreu uma guinada e onde ele ganhou compreensão de seu propósito maior: ser o Profeta dos Antigos e porta voz do seu conhecimento. Outros acreditam que ele estava tentando escapar das Divindades ou dos seus emissários que o perseguiam tanto nos sonhos quanto na realidade. Nos meses finais passados em Damasco, ele não conseguia dormir, não se alimentava e não encontrava paz de mente ou espírito. Seus servos de confiança assistiam ele definhar a cada noite, com os olhos cada vez mais fundos, palidez cadavérica e uma fraqueza devastadora. De fato, a única coisa que o salvou de morrer ali mesmo era a perspectiva de empreender sua última jornada, ainda que dificultada enormemente pela idade avançada. A energia e jovialidade que lhe eram características e que causava espanto naqueles que tomavam conhecimento de sua verdadeira idade parecia enfim ter se esvaído.

Desde que havia dado por terminado seu envolvimento na redação do al-Azif ele parecia ter envelhecido horrivelmente. Como se a conclusão da colossal tarefa tivesse decretado que seus dias estavam contados. Há outra teoria, uma que envolve a busca pelas peças finais de um mosaico que existiria nos subterrâneos de Irem e que ele pretendia contemplar uma última vez. Este concederia um vislumbre do destino final do universo, algo que ele não ousou contemplar quando visitou o lugar décadas antes. Agora, próximo de se tornar pó, seria o momento adequado de ver tal coisa e saber que, assim como ele, a própria Criação também não seria eterna.

Seja como for, nove dias antes de sua morte (como podemos precisar de acordo com o preâmbulo contido no al-Azif) o feiticeiro soube que não chegaria ao seu destino e que jamais veria novamente as câmaras subterrâneas de Irem. Um eclipse solar estava se aproximando e várias visões confirmavam que ele morreria logo depois deste.


A ocorrência do eclipse nos permite determinar acuradamente o tempo e lugar da morte do Profeta dos Antigos. A maioria dos historiadores e biógrafos acreditavam que ele teria morrido no ano 738 na cidade de Damasco, mas a evidência astronômica não nos permite aceitar essa versão. Haviam apenas três eclipses solares ocorrendo nesse período, mas nenhum deles visível de Damasco como afirmam os biógrafos. O mais provável é que a morte tenha ocorrido na fronteira com o Rub al-Khali, em março de 732, após o meio dia, mas certamente antes do por do sol.

Segundo os rumores, o Profeta dos Antigos teria se afastado da caravana e caminhou solitariamente na direção do deserto tendo o sol sobre sua cabeça. Mais tarde, seu rastro foi seguido por alguns homens que deram pela falta do estranho ancião, mas suas pegadas simplesmente desapareciam no meio das dunas como se ele tivesse sumido. Seu desaparecimento se deu justamente no momento em que o sol foi encoberto e o dia se transformou em noite. E quando brilhou novamente, não havia sinal de Abdul al-Hazred nesse mundo.

14. A Ascensão de Al-Hazred

Existem muitos rumores sinistros e contraditórios a respeito desse desaparecimento e morte. Sobre o que teria acontecido com o ancião e como ele teria simplesmente sumido no deserto. Os homens da caravana realizaram uma busca, mas logo concluíram que ela seria inútil. Temiam que os jinn tivessem carregado aquele velho estranho, e ninguém pretendia se arriscar e desafiar os espíritos que habitavam o Rub al-Khali.

Seja como for, meses se passaram e nesse período não se soube nada de al-Hazred. Em Damasco, a cidade que ele havia adotado como lar por longos anos, chegavam boatos de todo tipo. A fama do ancião como feiticeiro era muito grande, de modo que alguns viram seu passamento com certo grau de alívio. Nem mesmo os poucos discípulos e servos que tinham contato mais próximo lamentaram seu fim. Se resignaram de que seu mestre havia partido.

Seis meses após o ocorrido, ninguém mais esperava ver o velho novamente. O nome dele já circulava livremente nos lábios daqueles que antes se limitavam a sussurrar seu nome. Mas então ocorreu o mais estranho dos incidentes que teve lugar não numa viela escura na calada da noite, mas em pleno grande bazar à luz do dia. O evento foi visto por inúmeras pessoas, gente de todas as classes e tipos, que testemunharam o ocorrido. Sabe-se a respeito do incidente através do relato detalhado de um copista que achou importante incluir um capítulo à cerca do destino final do autor. O trecho sofreu várias interpretações posteriores e foi bastante desvirtuado, mas tudo indica que a versão mais fiel aos fatos seja a descrita a seguir.


Certo dia, um vento quente soprou sobre Damasco fazendo as areias se erguerem em uma forte tempestade. E quando enfim a fúria dos elementos diminuiu, foi a vez dos chacais uivarem enlouquecidos. Em toda cidade cães ladravam, crianças choravam e os perturbados gritavam, como se soubessem o que estava por vir. Ao mesmo tempo, entrou pelos portões da Cidade Antiga uma figura desmazelada e alquebrada, suja de terra e vestindo um manto com capuz que escondia suas feições. Mas todos que lançaram os olhos sobre aquela forma cadavérica foram unanimes em dizer que não se tratava de outro senão Abdul al-Hazred. E mais, diziam que embora andasse não se encontrava mais no mundo dos vivos, o que levou a maioria das pessoas a bater no peito e pedir a proteção do Misericordioso.

À passos trôpegos ele seguiu pelas ruas de calçamento de pedra, repelindo animais e afastando curiosos que abriam caminho para que a forma em andrajos passasse sem embargo. Assim ele seguiu lentamente, com uma pequena comitiva que tentava manter uma distância segura, sem no entanto perdê-lo de vista. A pequena procissão, seguiu pelas ruas de Damasco até chegar ao Grande Bazar. Lá, a figura teria removido o capuz revelando que de fato era o temido feiticeiro, ainda que transformado num cadáver andante.

E quando revelou suas feições desmortas, houve um novo rumor de choro e desespero que varreu a cidade. Pois a seguir, o ancião se pôs a falar, como quando recitava seus poemas incompreensíveis, mas de sua boca brotava uma surah profanas e repleta de pecado. E os que ouviam não conseguiam censurá-lo ou contê-lo, pois tremiam dos pés à cabeça, choravam e se contorciam como possessos. Pois eram as palavras apocalípticas dos Antigos que falavam através de seu Profeta mor.

E quando o horrível sermão terminou, dizem, o corpo do velho foi erguido do chão por uma força invisível que o levantou até a altura dos telhados próximos. E em um único movimento sua cabeça, braços e pernas foram arrancados de seu torso e devorados por uma horda faminta de demônios invisíveis. Seu corpo desmembrado foi inteiramente consumido daquela forma, deixando na areia apenas os respingos de seu sangue. Horrorizada a população de Damasco comentou por meses o tenebroso acontecimento, temendo que a cidade tivesse sido amaldiçoada. Para conter a onda de rumores o Califa ordenou que o Bazar fosse três vezes abençoado em nome de Ala o misericordioso para que qualquer presença espúria fosse esconjurada. 

Posteriormente, a história contada foi que al-Hazred teria morrido no grande bazar, mas o trecho descrito acima é muito mais significativo. Ele assume que o Profeta já estaria morto, teria retornado para fazer seu sermão final e então Ascender a seu modo sangrento. Não por acaso, o testemunho é tratado como "A Ascensão de al-Hazred", encontrando ecos na transição do Buda para o Paranirvana, na crença do Cristo ressurrecto sendo erguido na direção do céu e da aparição final de Maomé em Meca. Seria de se esperar menos do Profeta dos Antigos?

Com isso, encerrou-se a longa vida de Abdullah al-Hazraj aos 90 anos de idade. Posteriormente, ele ficaria conhecido pela alcunha de Abdul al-Hazred, ou então simplesmente o "Árabe Louco", autor do infame al-Azif, base para o Necronomicom.


É difícil medir a importância de al-Hazred e o quanto seu trabalho seminal contribuiu para difundir o conhecimento sobre o Mythos. É um fato conhecido que o al-Azif teve enorme influência num primeiro momento dentro de círculos devotados ao misticismo no Oriente Médio. Espalhando-se entre defensores de correntes filosóficas e religiosas proscritas, formando movimentos dissidentes que atuaram clandestinamente. Ele sem dúvida patrocinou a formação de cultos, cabalas e sociedades secretas.

A chegada do al-Azif à Europa demorou quase 300 anos pela barreira linguística, mas eventualmente o manuscrito caiu nas mãos de um monge grego que o traduziu para seu idioma em meados do ano 1000. Foi entretanto a tradução seguinte, para o latim que sedimentou o texto de Al-Hazred como o mais desejado compêndio de conhecimento místico de todos os tempos, verdadeiro manual de saber esotérico e tomo inestimável para todos que perseguem as revelações dos Mythos ancestrais.

E tudo isso se deve a um certo "árabe louco".

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