Recentemente publicamos aqui no Blog um artigo à respeito da coroação da Rainha Cadáver de Portugal. Mas essa não foi a única ocasião em que um corpo figurou em um papel de importância central em um acontecimento histórico.
Certa vez o cadáver de um Papa foi levado à Julgamento.
Tudo aconteceu no século IX, uma época em que diferentes grupos e facções lutavam pelo que havia restado do combalido Império Romano. Por volta do ano 800, os tempos de glória do Império estavam se apagando rapidamente, e a morte do Imperador Carlos Magno fazia com que a Europa desabasse. Uma colcha de retalhos de pequenos feudos, territórios e reinos se formava, cada qual com monarcas que tentavam se conservar no poder em meio a intrigas e lutas internas. A Península italiana era varrida por conspirações e assassinatos. Em meio a esse tornado de mudanças estava o Estado do Vaticano que também estava rachado. Na época, o Papa não era apenas o Líder Espiritual da mais importante religião do período, ele era uma figura extremamente influente e poderosa para todos os líderes que desejavam sua aliança. O Papa era tão importante que dele decorria poder de vida e morte. O lado com o qual ele se alinhava ganhava imediatamente enorme vantagem no campo da diplomacia. Os Papas, por sua vez, não eram escolhidos baseados apenas na sua compreensão teológica, mas na sua capacidade como articuladores políticos.
Foi durante esse tempo tumultuado que viveu um missionário chamado Formosus, que havia se mostrado bem sucedido o bastante para atingir o posto de Cardeal na cidade de Porto, na Itália. Durante seu mandato, Formosus estabeleceu grandes conexões e forjou alianças com poderosos grupos, como o Príncipe Bogoris da Bulgaria, com Constantinopla e, mais notoriamente, com Arnulf herdeiro da dinastia Carolíngia. Sua influência, cada vez maior não se refletia na satisfação de outras facções, como por exemplo a do Papa João VIII, que via Formosus como um rival cada vez mais poderoso. O Papa fez acusações contra Formosus chamando-o de traidor e afirmando que ele cobiçava o assento de Pedro. Dizia inclusive que ele estava conspirando para matá-lo em um complô movido na companhia do Arcebispo da Bulgária. Diante dessas graves acusações, Formosus acabou sendo excomungado e mandado para o exílio em 876.
Mas seu afastamento não iria durar muito.
Quando João VIII foi assassinado, Formosus viu a sua chance de retornar. Três Papas foram eleitos em sucessão: Marinus I, Santo Adriano III e Estevão V que se mantiveram, cada um, por pouco tempo no poder. Em 891, foi a vez de Formosus fazer valer as suas conexões e influência para assumir o posto de Sumo Pontífice. Mas sua situação não era exatamente cômoda!
Pouco antes de ser feito Papa, um novo governante havia assumido o Império, Guy III de Spoleto, em quem Formosus não confiava. Para afastar o Imperador, Formosus costurou um acordo com seu aliado de longa data, Arnulfo para que este atacasse Roma com o apoio do Vaticano e usurpasse o trono de Spoleto. Formosus prometeu que assim que vencesse, ajudaria a coroar Arnulf como legítimo Imperador de Roma. Promessa que honrou pouco antes de sua morte em 896.
O papado de Formosus foi marcado por sérias acusações de corrupção, venda de interesse e negociações espúrias, vergonhosas até para o período. O Papa trocava de aliados frequentemente e criava conchavos políticos, participando de complôs que resultavam em assassinatos dos seus desafetos. Seu mandato foi marcado por tanta intriga que os bispos evitavam viajar, por não saber se chegariam ao seu destino final ou se "desapareceriam" no meio do caminho.
Por essas e outras razões, a morte de Formosus não foi exatamente lamentada, sequer pelos seus aliados. Seu sucessor, Bonifácio VI, ficou no poder por apenas duas semanas, sendo substituído por Estevão VI, bom amigo de Lamberto, filho do despossado Imperador Spoleto. Acontece que a Família Spoleto jamais esqueceu a traição que havia sofrido nas mãos do Papa Formosus, e desejava vingança, nem que essa viesse após a morte de seu inimigo. Embora ele não pudesse mais ser atingido, sua memória poderia ser maculada e manchada para sempre.
Lamberto exigiu do novo Papa que ele excomungasse Formosus postumamente, ação que o removeria do Paraíso (se é que ele estava lá) e o enviaria espiritualmente para o Inferno. Um Sínodo foi convocado às pressas para estudar quais seriam os efeitos dessa decisão sobre a alma de Formosus e se tal medida era válida aos olhos das autoridades eclesiásticas. Foi consenso que seria necessário realizar um julgamento, mas como fazê-lo se Formosus estava morto e enterrado? Para Estevão VI a resposta para essa questão era simples: bastava exumar o cadáver e levá-lo ao banco dos réus.
Formosus foi desenterrado de sua sepultura, vestido com trajes oficiais de seu pontificado e colocado no trono para o julgamento ocorrido na Basílica San Giovanni Laterano, onde se reuniram vários cardeais, bispos e dignitários da Igreja para presenciar o macabro espetáculo. O corpo estava tão decomposto que julgaram necessário colocar sob sua face de caveira uma máscara de madeira, sobre a qual foi pintada a face retratada do papa quando vivo. Suas mãos esqueléticas, com anéis, se projetavam das mangas do traje que mal escondia sua condição cadavérica. A visão era estranha e surreal.
Uma vez que obviamente não era capaz de falar, foi nomeado um assistente para ser os olhos e ouvidos do acusado que pudesse representá-lo. Um promotor leu as acusações que incluíam conspirar para assumir o papado, legislar em causa própria, quebrar os votos canônicos e participar de intrigas que levaram a queda do Imperador. O assistente repetia as palavras do Promotor no ouvido do cadáver, já que era sabido que o cadáver tinha problemas d esurdez no fim da vida.
O ajudante fez o possível para defender Formosus, mas ele não podia fazer muito já que todo o processo era um embuste construído para incriminar o Papa cadáver e torná-lo culpado aos olhos de todos. Devia ser uma visão bizarra assistir acusações serem feitas contra um cadáver, e o promotor perguntar após cada uma se ele tinha algo a dizer. Para tornar tudo ainda mais surreal, dizem os cronistas do período que, quando o promotor perguntou ao cadáver papal, porque ele não se defendia, um súbito terremoto atingiu a região e fez a Basílica tremer. Muitos dos presentes desmaiaram e acharam que o morto estava se manifestando de além túmulo.
Para a surpresa de absolutamente ninguém, Formosus foi considerado culpado de todas acusações e sentenciado a uma severa pena, embora na condição em que se encontrava não parecesse especialmente preocupado com ela. Ele foi destituído do título de Papa, seus decretos foram imediatamente cancelados, bem como as indicações feitas a Bispos e Cardeais. Os trajes papais lhe foram removidos com estranha pompa e circunstância.
O cadáver nu, esquelético foi removido do Trono de Pedro e colocado em uma cadeira comum de madeira. Três dedos de sua mão direita foram cortados com uma tesoura afiada para que os anéis usados fossem removidos. Os dedos foram enviados para diferentes dioceses como prova do ocorrido. O cadáver foi então recolhido sem qualquer cerimônia e enterrado novamente em uma cova anônima simples.
Mesmo depois disso, Estevão VI, não se deu por satisfeito. Duas semanas depois, ordenou que o corpo fosse exumado uma segunda vez e atirado no Rio Tibre para que as águas pudessem lavar os imensos pecados que ainda pairavam sobre os ossos carcomidos. Dizem que os restos mortais vieram à superfície e foram encontrados por monges que os recolheram e enterraram.
Toda aquela celebração bizarra acabou incomodando as pessoas em Roma. Estevão VI se tornou extremamente impopular, mesmo entre seus aliados. Sua fama de sanguinário e adepto de espetáculos constrangedores o assombraram a partir de então. Meses mais tarde, um tumulto irrompeu na cidade e se espalhou pelo Vaticano. O Papa acabou sendo capturado e arrastado para uma prisão, onde acabou sendo estrangulado até a morte.
No final das contas, Formosus acabou rindo por último quando seu corpo foi trazido uma vez mais para Roma afim de ser enterrado na Catedral de Sâo Pedro com todas as honrarias. O Papa João IX, devolveria a ele seu título e tornaria ilegal toda a farsa do Julgamento que ficou conhecido como Concílio Cadavérico.
Até hoje, Formosus é reconhecido como Papa, seu nome foi limpo e seus ossos repousam em um lugar de destaque na Catedral, ao lado de outros Papas. O incidente bizarro é uma curiosidade quase esquecida, mas ele foi fartamente documentado o que o torna um acontecimento corroborado.
Eram tempos diferentes, em que trazer um cadáver para o banco dos réus era aceitável.
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