domingo, 4 de outubro de 2020

A Rainha Cadáver - A macabra Coroação de Inês de Castro


Até onde vai o sentimento humano? Até onde chega o luto e a tristeza? Até que ponto vai a devoção de um marido por sua esposa falecida?

Não faltam histórias românticas a respeito de pessoas que se comprometem até o fim da vida por um amor que se foi. Mas em alguns momentos tal coisa pode tomar um caminho estranho e francamente bizarro.

Tomemos por exemplo o estranho amor entre o Rei Pedro I de Portugal por sua Rainha Inês de Castro, cuja devoção não foi apagada nem mesmo pela morte.

De acordo com a lenda, em meio ao século XIV o Rei Pedro de coração quebrado pela morte de sua amada ordenou que o corpo desta fosse exumado da cripta onde descansava para receber sua coroa. Os escândalos românticos das Famílias reais da Europa poderiam encher uma biblioteca inteira, o que torna difícil encontrar uma história de ligação tórrida que se destaque em meio às demais. Mas a bizarra história da coroação póstuma de Inês de Castro, a Rainha Cadáver de Portugal é difícil de esquecer.

Inês de Castro nasceu em meados de 1325 em uma nobre família de ascendência castilhana pertencente ao ramo ligado ao Reino da Galícia, localizada na parte norte da Península Ibérica. Em 1340, quando ela tinha apenas 15 anos de idade, Inês foi enviada para a corte do Príncipe Pedro I de Portugal para se tornar a Dama de Companhia de Constanza de Castile, a esposa do Rei. A relação do Rei com a esposa não era das melhores e rumores de que o casamento passava por problemas eram sussurrados pelos cortesãos. Na época, esse tipo de indiscrição podia ser preocupante, uma vez que o Rei e a Rainha tinham de ser capazes de produzir herdeiros. O que é especialmente difícil quando os dois não se suportavam e de fato, tinham uma relação tão azeda que nem conseguiam compartilhar do mesmo quarto.


Quando Pedro I viu a jovem Dama de Companhia da esposa, imediatamente se apaixonou na melhor tradição dos contos de fada. O romance foi correspondido e os dois deram início a um tórrido caso amoroso que não era segredo para ninguém. Diziam as más línguas que o Rei esquentava a cama da jovem Inês e que corria para o quarto de sua Rainha ainda lembrando da amante para assim tentar ter um herdeiro.

Constanza morreu cinco anos mais tarde, em 1345, pouco depois de conseguir dar à luz a Ferdinando I, que se tornaria o futuro Rei de Portugal. Após a morte de Constanza, Pedro pediu ao seu pai, o Rei Afonso IV que lhe desse permissão para casar com sua amante. Afonso esperava fazer uma união mais vantajosa para seu filho e exigiu que o romance terminasse imediatamente.  Dessa forma, além de negar o pedido de seu filho, Afonso ordenou que ele nunca mais procurasse Inês. 

De nada adiantou! Pedro I estava perdidamente apaixonado e continuou buscando a jovem Inês, então com 20 anos. As fofocas dos cortesãos chegaram aos ouvidos do Rei e este ficou furioso, ordenou que Ines fosse banida. Nem isso foi o suficiente para terminar com a relação.

Pedro comprou uma villa inteira em Coimbra onde mandou instalar Inês, um lugar dramaticamente batizado de Vila das Lágrimas. Ela viveu lá entre 1346 e 1354, tendo nesse período quatro filhos, sendo que apenas três sobreviveram.  


Enquanto isso, o Rei Afonso IV e seus conselheiros começaram a  ficar cada vez mais preocupados com a relação entre o Príncipe e a amante. Eles temiam que Pedro acabasse cedendo aos interesses de rivais, já que a família de Inês tinha forte ligação com a Família Real de Espanha. Havia a possibilidade de Pedro I, suceder seu pai e se tornar um joguete nas mãos da Corte espanhola. Então, o Rei decidiu atender os conselheiros e tomou uma decisão drástica: ele despachou três assassinos para Coimbra no ano de 1355 com a missão de colocar um fim ao romance ilícito. 

Quando os assassinos chegaram à Vila, eles encontraram Inês e seus três filhos sentados próximos de uma fonte. Segundo algumas fontes históricas, um dos homens se aproximou dela fazendo-se passar por um pedinte. Inês que tinha bom coração, mandou uma aia apanhar sua bolsa e quando estendeu as moedas, o homem saltou sobre ela com uma faca em riste. Ela teria recebido um ferimento fatal na garganta, esvaindo-se em sangue em poucos minutos. Uma versão muito mais medonha e sanguinolenta atesta que os assassinos agiram ao mesmo tempo, a cercando e derrubando no chão, desferindo facada atrás de facada até que ela parasse de se mover. E então, para terminar a atrocidade, um deles ainda sacou um machado que usou para decapitá-la diante dos próprios filhos. Em ambas as versões, a fonte erguida por Pedro em honra da amada ficou tingida de vermelho.

O corpo de Inês foi recolhido e enterrado no Monastério de Santa Clara, em Coimbra. A população da cidade ficou tão consternada pela violência do crime que o funeral atraiu milhares de pessoas que se reuniram para prantear a bela dama. 
 
A história não registra qual teria sido a reação imediata de Pedro I ao saber da tragédia, mas há boatos de que ele teria se encerrado em um quarto por meses, sem falar e sem chorar, comendo apenas o suficiente para não morrer de inanição. Ele permaneceu lá até o Rei Afonso morrer pouco depois, em 1357. Pedro foi chamado do exílio que ele mesmo se impôs para suceder o pai no trono de Portugal. Sua primeira medida foi obter vingança contra os que conspiraram pela morte de sua amada. Primeiro contra os conselheiros. Pedro os prendeu na masmorra e ordenou que fossem torturados, a seguir, prometeu que o primeiro deles que entregasse os nomes dos assassinos seria poupado. Um deles acreditou na promessa, mas Pedro não o libertou. Ao menos ele foi um pouco mais piedoso permitindo que este morresse rapidamente enquanto os demais sofriam nas mãos de torturadores. Dois dos três assassinos foram encontrados e trazidos à sua presença para que ele pudesse assistir o coração de cada um ser arrancado do peito e queimado.

Depois disso, a corte acreditava que a fúria do Rei diminuiria e que ele governaria com parcimônia e sem maiores atos intempestivos. Não foi bem o que aconteceu: Pedro declarou que havia se casado em segredo com Inês de Castro e que ela era por direito a legítima Rainha de Portugal. Em uma atitude chocante ele ordenou então que o cadáver da mulher que amava fosse exumado afim de receber a coroa na cerimônia de sagração. 


Ainda que gesto tenha demonstrado seu amor, ainda que de forma bizarra, ele era bastante significativo já que demonstrava que Pedro estava disposto a tornar legítimos seus filhos com a amante (tornando-os aptos a participar da linha sucessória). 

O corpo já em avançado estado de decomposição de Inês foi removido de sua sepultura, vestido com trajes reais da mais fina seda e acomodado num trono. Seus dedos ossudos receberam anéis e um cetro foi posicionado na sua mão. Para disfarçar a situação, um véu foi colocado sobre seu rosto, mas aqueles que dela se aproximavam podiam ver a face já transformada numa caveira oculta. A Coroa Real de Portugal foi então colocada sobre sua cabeça. O Rei fez ainda que os nobres formassem uma fila para beijar a mão da Rainha cadavérica e jurar à ela lealdade.

A cerimônia foi descrita da seguinte forma:

"Pedro, na ocasião de sua coroação, na Catedral de Coimbra, fez com que o corpo de Inês de Castro, fosse removido do lugar onde descansava desde 1355, vestido em regalia e posicionado ao seu lado. Ele publicamente jurou que havia desposado a mulher em Bragança e que ela seria portanto a Rainha. Ele então obrigou os nobres a fazer uma longa fila para beijar o anel real, cuidadosamente observando qualquer sinal de repulsa destes para com sua amada".


Após a cerimônia, o corpo de Inês foi movido para o Monastério de Alcobaça e depositado em uma tumba com sua efígie esculpida em mármore. É claro que apesar disso surgiram rumores maldosos de que o Rei não teria devolvido sua amada à tumba imediatamente, mas que a teria mantido em seus aposentos privados por algum tempo, chegando a dormir e se relacionar com o cadáver que ao seu lado.

Seja como for, a tumba de Inês está voltada para a que viria a ser usada por Pedro I, que fez questão de ser sepultado no mesmo local para que pudessem juntos se erguer no Dia do Juízo Final. 

Muitas pessoas acreditam que a coroação da Rainha Cadáver de Portugal não passa de uma lenda e que jamais aconteceu. Isso em parte porque a simples noção de desenterrar um corpo para que ele participasse de uma Cerimônia soaria absurda para qualquer um. Mas alguns historiadores afirmam que a história possui documentação suficiente para ser corroborada como verídica. De fato, a Coroa de Rainha de Portugal foi refeita pois as Rainhas que vieram depois não desejavam usar a mesma peça que um dia ornamentou o crânio carcomido de um cadáver, real ou não.

No início do artigo eu perguntei até que ponto podia chegar a devoção e o amor.

Bem, parece claro, conforme o exemplo, que em alguns casos ele pode transcender a morte e ir além. 

Muito além.


3 comentários:

  1. Estive em Coimbra, onde se ergue o Convento. Mas não o visitei. Dizem por lá que a história do beija mão de Inês de Castro é, sim, verídica.

    ResponderExcluir
  2. Uma história incrível que ficou perpetuada na expressão popular: "-Agora, Inês é morta!".

    ResponderExcluir