sábado, 4 de junho de 2022

Pânico Satânico - A histeria e caça às bruxas ao D&D nos anos 80


Em uma cena da quarta temporada da popular série Stranger Things, um dos personagens lê na Revista Newsweek uma reportagem à respeito da suposta ligação do RPG, mais especificamente do principal RPG da época, o Dungeons & Dragons, com ocultismo, bruxaria e satanismo.

Hoje em dia, numa era de grande preocupação com pornografia na internet, cyberbullying e drogas, é difícil imaginar que um jogo de mesa possa ser considerado responsável por tamanha controvérsia. Entretanto, apesar (e por conta) do exagero e sensacionalismo implícito nas reportagens, há cerca de 30 anos, o RPG foi alvo de um pânico arrebatador. 

Foi a época do Medo Satânico, quando uma parte considerável da população dos Estados Unidos foi levada a acreditar pela mídia que cultos satânicos estavam agindo nas sombras. Estes cultos supostamente promoviam missas negras, sacrifícios de inocentes e outras atividades diabólicas secretas. A questão ganhou enorme repercussão e se espalhou com uma velocidade alarmante, contaminando a sociedade que reagiu prontamente. Em meio a um frenesi de boatos e rumores, dedos acusadores foram apontados para todas as direções - praticamente tudo parecia ter sido infiltrado por grupos de satanistas.

Um dos alvos principais dessas cabalas de bruxos seriam as crianças. Acreditava-se que cultos estavam tentando trazer mais e mais crianças para suas fileiras, fazendo com que elas se tornassem familiares com o ocultismo, interessadas no conhecimento diabólico e que, quando estivessem prontas se juntariam a eles. Filmes de terror, quadrinhos violentos, música do gênero Heavy Metal eram tratados por grupos religiosos como veículos para a ampliação dos cultos. 

E em algum momento, a histeria atingiu com força o RPG.    

A TSR teve de rever as capas de vários de seus livros
 
Surgido em 1974, Dungeons and Dragons (D&D) por algum tempo foi sinônimo de RPG. Não exatamente o primeiro jogo de interpretação, mas sem dúvida, o primeiro a atingir enorme popularidade e se estabelecer como hobby. Os jogadores assumiam o manto de aventureiros de várias raças e ocupações, explorando masmorras, cavernas e florestas, enfrentando monstros e criaturas fantásticas, coletando riquezas e glória. Cada jogo possuía um Dungeon Master (DM) que atuava como árbitro e contador de histórias. Em 2004, estimava-se que o jogo fosse jogado por mais de 20 milhões, numa época em que video games se resumiam a um pixel andando na tela.

Qualquer jogador veterano, além é claro de educadores, pedagogos e psicólogos, podem elencar os muitos atributos positivos do RPG. Para começar, ele é baseado inteiramente na imaginação. É uma ferramenta social por excelência, estimula a criatividade, a visão espacial, a interação e resolução de problemas. Além disso, como atividade intelectual, promove a leitura e a curiosidade. Nenhuma tela de televisão ou computador era necessária, o jogo roda inteiramente na mente dos jogadores.

Mas apesar de todos esses benefícios reconhecidos, no início da década de 1980, o RPG começou a sofrer um ataque implacável e prolongado por parte de grupos religiosos fundamentalistas que temiam seu poder sedutor sobre as mentes jovens. Muitas vezes o ataque era tão gratuito e desproporcional que parecia algo ridículo, com acusações que não se sustentavam, mas que causaram enorme estrago ao jogo.

As capas eram consideradas diabólicas aos olhos dos detratores do jogo

Visto como propaganda demoníaca, D&D foi arrastado para os holofotes e tratado como uma grave ameaça. Mas como tudo isso começou? De onde veio a noção de que ele era algo maligno? E como tal coisa se estabeleceu na sociedade norte-americana?

É difícil estabelecer exatamente qual foi o ponto de partida para a histeria, mas muitos apontam o caso da Universidade de Michigan como o catalizador da loucura. 

Em 1979, o garoto prodígio de 16 anos, James Dallas Egbert III, desapareceu de seu quarto na Universidade e ninguém conseguia determinar o que havia acontecido. Um investigador particular chamado William Dear, foi contratado pelos pais para encontrar seu paradeiro. Apesar de aparentemente saber pouco sobre RPG, Dear acreditava que o D&D era a causa do desaparecimento de Egbert. O estudante realmente era um aficionado dos jogos, possuía um grupo regular e costumava varar a noite na companhia de amigos rolando dados e combatendo monstros. Ao revistar o quarto do rapaz, Dear se disse chocado com a quantidade de material bizarro encontrado: livros, papéis, poesias, desenhos e símbolos que ele interpretou como sendo algo claramente diabólico.

Na verdade, Egbert sofria, entre outras coisas, de depressão e dependência de drogas, e havia se escondido nos túneis de utilidade abaixo da universidade após um grave surto psicótico e episódio de automutilação. O episódio na época ficou conhecido como o Incidente do Túnel de Vapor. O caso deu origem a uma série de obras de ficção, incluindo o romance Mazes and Monsters e um filme estrelado por Tom Hanks em 1982, com o mesmo título.

"Mazes and Monsters" com Tom Hanks, filme horrível que causou dano ao D&D

Egbert morreu de um ferimento com arma de fogo auto infligido em 1980. Apesar das evidências sobre seus problemas prévios de doença mental, alguns ativistas acreditavam que o suicídio de Egbert havia sido motivado pelo jogo de D&D. Supostamente ele havia "perdido uma partida" e incapaz de suportar esse revés, foi levado a cometer suicídio. O caso ganhou certa repercussão, mas até essa altura, o D&D não recebeu qualquer acusação formal.

Mas infelizmente, isso estava prestes a mudar.

Em 1982, o estudante do ensino médio Irving Lee Pulling morreu após dar um tiro no próprio peito. Apesar de um artigo no Washington Post na época comentar que Pulling sofria com graves problemas emocionais e não conseguia se encaixar socialmente, sua mãe Patricia Pulling acreditava que o suicídio do filho havia sido motivado exclusivamente por ele jogar D&D.

Novamente, ficou claro que fatores psicológicos mais complexos eram os responsáveis por suas ações autodestrutivas. Victoria Rockecharlie, colega de classe de Irving Pulling, comentou que "ele tinha muitos problemas de qualquer maneira e que eles não estavam associados ao jogo".

No início, Patricia Pulling tentou processar o diretor do ensino médio de seu filho, alegando que a maldição colocada sobre o personagem de seu filho durante um jogo era real. Ela também processou a TSR Inc, editora do D&D, culpando-os do trágico acontecimento. Apesar do tribunal rejeitar esses processos, Pulling continuou sua campanha, eventualmente criando uma organização chamada Bothered About Dungeons and Dragons (BADD) em 1983.

Jornal de 1981 alertando pais para o perigo do D&D

Pulling descreveu D&D como "um jogo de RPG de fantasia que usa demonologia, feitiçaria, vodu, assassinato, estupro, blasfêmia, suicídio, assassinato, insanidade, perversão sexual, homossexualidade, prostituição, rituais satânicos, jogos de azar, barbárie, canibalismo, sadismo, profanação, invocação de demônios, necromântica, adivinhação e outros ensinamentos".

No início foram poucos os que deram atenção para a campanha de Pulling e da BADD, ao menos até ela se aliar a grupos de cristãos ultra conservadores que lhe garantiram acesso a programas de televisão, espaço em jornais e matérias em revistas. O "Pânico Satânico" estava no auge e adicionar o D&D à lista de proscritos foi o meio usado para a BADD ganhar voz. Em determinado momento o prestigiado programa investigativo 60 Minutes, colocou Pulling ao lado do co-criador de D&D, Gary Gygax em uma tribuna para discutir a influência dos jogos sobre crianças e jovens. Gygax conseguiu deixar seu recado, dizendo-se surpreso com a repercussão que um jogo de fantasia havia criado, mas a histeria de Pulling acabou prevalecendo.

A caça às bruxas havia começado e o D&D se tornou alvo de todo tipo de campanha difamatória. O jogo não chegou a ser proibido, mas ele não era aceito em muitas livrarias e títulos foram removidos do catálogo de bibliotecas. Pais preocupados proibiam os filhos de jogar e crianças eram questionadas sobre possíveis conexões demoníacas.

Em 1985, Jon Quigley, líder da Lakeview Full Gospel Fellowship, falou por muitos religiosos quando afirmou: "Esse jogo é uma ferramenta que prepara os jovens para influência ou possessão por demônios".

Esses medos chegaram também ao Reino Unido. O autor de fantasia KT Davies se lembra de mostrar a um vigário um livro e este reagiu comparando D&D à adoração de demônios porque havia "deuses blasfemos no jogo".

Segundo os religiosos, as magias de D&D eram usadas no mundo real.

O veterano jogador Andy Smith encontrou-se na posição incomum de ser tanto um roleplayer quanto um cristão. “Enquanto trabalhava para uma organização cristã, me disseram para remover todos livros de RPG da biblioteca da congregação, pois eram ofensivos para alguns dos outros frequentadores e continham referências à adoração de demônios”.

Em retrospectiva, é possível encontrar os tentáculos de um clássico pânico moral, e alguns elementos ligeiramente esotérico do RPG agitaram a imaginação das pessoas e causaram reações extremas.
 
"Como a fantasia normalmente apresenta ligação com magia e feitiçaria, D&D foi percebido como uma oposição direta aos preceitos bíblicos e ao pensamento estabelecido sobre feitiçaria", diz David Waldron, professor de história e antropologia na Federal University of Australia e autor de Roleplaying Games. e o Direito Cristão: Formação Comunitária em Resposta a um Pânico Moral. "Havia uma visão de que os jovens tinham uma incapacidade de distinguir entre fantasia e realidade, o que era danoso."

Enquanto as alegações mais tresloucadas sobre a natureza do D&D tendiam a emanar de grupos evangélicos, elas suscitavam suspeitas mais amplas.

"Essa campanha proliferou e, sendo publicada de forma irresponsável e sensacionalista, levou a uma ampla lista de alegações bizarras", diz Waldron. "Por exemplo, quando um personagem morria, o jogador também deveria cometer suicídio."

Mais um momento edificante de Dark Dungeons em que uma jogadora comete suicídio após perder seu personagem.

As alegações feitas sobre os jogos de RPG não foram entretanto incontestadas.

O autor Michael Stackpole era um dissidente criticando Patricia Pulling e a BADD. Stackpole publicou "The Pulling Report", no qual documentou vários erros cometidos pela BADD e acusou Pulling de deturpar suas credenciais como especialista em jogos. Também apontou que a maioria dos psicólogos apontados pela organização e que condenavam o D&D não eram profissionais reconhecidos ou simplesmente fabricaram dados para provar suas teorias.

Um estudos da Associação Americana de Prevenção ao Suicido, do Centros de Controle de Doenças dos EUA e Comissão de Saúde e Bem-Estar do Canadá, não encontraram nenhuma relação causal entre D&D e suicídio. De fato, haviam inúmeros casos de suicídio motivados por questionamento religioso, mas nenhum diretamente envolvendo RPG.

Não obstante, grupos religiosos intensificaram sua campanha, gerando episódios que poderiam ser considerados caricatos, não fosse a maneira como as pessoas os levavam às últimas consequências. Uma série de quadrinhos chamada "Dark Dungeons" (aqui mostrada em duas tirinhas) chegou a ser produzida e largamente compartilhada em Igrejas, Templos e Grupos Cristãos, para alertar os pais do risco que crianças estariam correndo ao participar de jogos no estilo RPG.

Com o tempo, o Medo Satânico começou a diminuir nos Estados Unidos, sobretudo depois que o FBI liberou um dossiê completo atestando haver um enorme exagero quanto às preocupações da população no que dizia respeito a atividade diabólica. O dossiê explicitou que não existia qualquer indício de atividade satânica organizada em território americano, quanto mais uma conspiração. Da mesma forma não haviam crimes ou condutas ilícitas para serem investigadas. Em resumo: tudo não passou de mera histeria e exagero.   


Ainda assim D&D continuou a ser alvo de muito debate nos EUA. Em 2010, o Tribunal de Apelações do Sétimo Circuito dos Estados Unidos confirmou a proibição de D&D pela Waupun Correctional Institution. O diretor da instituição, Greg Muraski, especialista em gangues testemunhou que D&D podia "promover a obsessão de um preso por escapar da vida real, ambiente correcional, promover hostilidade, violência e comportamento de fuga".

Embora a maioria dos educadores enxerguem atributos benéficos no jogo, alguns ganharam projeção apontando o inverso. D&D chegou a ser proibido em alguns lugares públicos nos anos 1990 e até o início dos anos 2000. 

Contudo a percepção do público mudou. Se as pessoas têm algum tipo de visão negativa do D&D hoje, é mais provável que essa diga respeito aos supostos tons geek de seus participantes, ao invés de temores pela sanidade dos jogadores. Os alunos que jogaram D&D na década de 1980 cresceram em carreiras respeitáveis e são cidadãos acima de qualquer suspeita. Os filhos destes jogam.

"A visão dos RPGs mudou ao longo do tempo", diz Smith, "principalmente porque as ruas inundadas com o sangue de inocentes possuídos por demônios, simplesmente nunca se materializaram."

Hoje o D&D está em sua quinta edição e com uma compreensão geral do público de que se trata apenas, e tão somente, de um hobby para todas as idades. O jogo nunca foi tão popular, sendo jogado por milhões de pessoas ao redor do mundo.

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