segunda-feira, 4 de julho de 2022

A Santa e os Demônios - Possessão nas Florestas do Canadá


No início do século XVII, a área então conhecida como Nova França, hoje Quebec, no Canadá, era um lugar isolado, exasperante e difícil de viver. Aquela era uma terra cheia de lugares perigosos, nativos iroqueses hostis e epidemias mortais que assolavam os colonos. Não era um lugar que alguém escolheria viver, mas em 1639 uma freira francesa da ordem das Ursulinas chamada Marie de L'Incarnation lá se estabeleceu com a intenção de espalhar sua fé entre os povos indígenas da região. Seu plano era construir uma Igreja na Nova França, convencida de que aquela era a vontade de Deus e que ele assim a ordenava. 

Também conhecida como a Hospitaleira de Quebec, Marie fundou um convento e a primeira escola para meninas, e foi crucial na disseminação do catolicismo na Nova França. Ela dedicou sua vida a espalhar sua fé entre as jovens nativas, e de fato as tribos nativas a adoravam, chamando-a de Iakonikonriiostha, que significa "aquela que embeleza a alma e torna o coração mais quente". Ela também foi o foco de algumas histórias paranormais bastante estranhas, uma delas envolvendo uma jovem atormentada por Demônios.

Antes de vir para o Novo Mundo, Marie de L'Incarnation havia tido seu quinhão de visões e experiências sobrenaturais. Desde muito jovem ela afirmava ter visões com Jesus Cristo. No Canadá as coisas não foram diferentes. Ela alegou ter experimentado a visão de um terremoto que de fato aconteceu, bem como ter outros presságios, como ataques iroqueses e desastres inesperados. Marie também mencionava ouvir vozes vindas do céu e de ver canoas em chamas voando. Ela escreveu em seu diário certa vez:

"As vozes de lamento que eu ouvi em Trois-Rivières poderiam ser o eco dos pobres cativos levados pelos iroqueses; já as canoas que pareciam estar voando no ar, todas em chamas, ao redor de Quebec, eram o presságio das canoas dos inimigos vindo para nos enfrentar. Deus enviava essas visões para avisar quais desafios teríamos de transpor".

Ela escreveu extensivamente em diários, cartas e manuscritos, de fato, seus textos constituem uma das maiores coleções de documentos pessoais dos primeiros anos da colonização francesa. Intercalados entre seus escritos vem à tona pensamentos religiosos, observações sobre o crescimento da Nova França, reflexões sobre a espiritualidade e a vida cotidiana mundana da colônia e do convento, bem como menções a inúmeros fenômenos paranormais. Ela descobriu que a feitiçaria existia na Nova França, escrevendo "há bruxaria e magos neste lugar, homens e mulheres que usam poderes obscuros para perverter o que está à sua volta. Nem todos são malignos, mas alguns parecem ser tocados por forças diabólicas como nunca imaginei ser possível". 


Um conto em particular que se destaca em seus escritos gira em torno de uma jovem de 17 anos, chamada Barbe Hallay, também conhecida como Halé. A moça chegou ao porto de Quebec com sua família em 1660 a bordo de um navio cheio de colonos franceses. Na época, ela era apenas uma garota normal em meio ao fluxo de imigrantes, mas logo, algo inesperado aconteceria com ela.

Ao chegar, Hallay foi trabalhar como empregada na mansão do rico comerciante John Maheu e na cidade de Quebec, então um pequeno assentamento com menos de 3.000 habitantes. Não demorou até que fenômenos estranhos tivessem início. Ela afirmava ouvir músicas estranhas, como flautas e tambores que pareciam vir do nada, e objetos se moviam quando Hallay estava por perto. A princípio eram itens pequenos, mas rapidamente coisas mais pesadas, como móveis também se moviam espontaneamente. Tais fenômenos se intensificaram, com objetos voando das prateleiras, quadros caindo das paredes e itens sendo arremessados de um lado para o outro. Tornou-se uma ocorrência frequente que pedras voassem como se tivessem sido arremessadas. Essas pedras colidiriam com as paredes e quebravam objetos. Um missionário jesuíta chamado Paul Ragueneau diria sobre os estranhos incidentes:

"A casa da menina estava tão infestada que pedras voavam de todos os lados, atiradas por mãos invisíveis. Era como se elas tivessem sido arremessadas propositalmente para quebrar e destruir o que estava ao redor. Algumas pessoas se assustavam, outras se feriam, atingidos pelas pedras que voavam velozmente causando horror e estranheza nos que testemunham tal fenômeno". 

Depois disso, as coisas ficariam ainda piores quando Hallay começou a ver aparições à espreita. Estes podiam assumir muitas formas, incluindo figuras sombrias, fantasmas e até monstros horríveis. Eles apareciam em todas as horas do dia e da noite. Apenas ela era capaz de vê-los, e esses seres a atormentavam constantemente. Em algum momento, foi relatado que essas entidades começaram a falar através dela, com a voz da menina ou às vezes mudando de tom e timbre, até mesmo para um homem ou um rosnado bestial. 

Ragueneau também escreveu à respeito disso: 

"Apenas a garota via aqueles demônios e estes apareciam para ela sob várias formas: de homens, mulheres, crianças, bestas e espectros infernais. O horror dela era real, impossível de ser fingido. Finalmente, os demônios falaram através de sua boca... usando uma voz desconhecida, gutural, horrível!"


A atividade paranormal se tornou tão grave que Hallay foi forçada a sair da mansão, mas os ataque a seguiram até sua nova casa. Não parecia haver maneira dela escapar de sua influência maligna. A essa altura, a situação era bem conhecida entre os colonos, que sussurravam todo tipo de coisa a respeito. Para alguns ela era uma bruxa, para outros possuída por demônios ou afligida por algum feitiço maligno, e ainda outros pensavam que ela estava em aliança com o próprio Diabo. Um exorcismo foi ordenado pelo Bispo da Nova França, mas ele não teve sucesso e, de fato, tornou os fenômenos ainda mais intensos. Foi nessa época que ela foi levada ao hospital do convento de Marie de L'Incarnation, que estava sob a liderança da Madre Catherine de Saint-Augustin. Foi Madre Catherine que imediatamente reconheceu o que a menina enfrentava como uma poderosa possessão demoníaca. Se aquilo não fosse combatido, os espíritos acabariam por matar a menina.

Os demônios, ou o que quer que fossem, não gostaram nada de se ver no convento, tornando-se mais e mais ferozes, vomitando obscenidades através da boca de Barbe, aparecendo como aparições, às vezes como anjos para enganar as freiras, e até atacando-as com tanta ferocidade. Algumas ficaram com cortes e hematomas pelo corpo. Marie de l'Incarnation chegou à conclusão de que essa aflição demoníaca havia sido provocada por um bruxo chamado Daniel Vuil, que havia feito a viagem ao Novo Mundo com Barbe e até a pediu em casamento sem sucesso. Marie supôs que Vuil menosprezado, tinha então usado sua magia negra para conjurar os demônios que estavam atormentando Barbe. Ela ficou ainda mais convencida disso quando a garota afligida alegou estar vendo uma aparição de Vuil também.

As autoridades ficaram muito felizes em prender Vuil por suspeita de bruxaria, porque ele estava causando muitos problemas na colônia e cometendo atos de blasfêmia. Vuil havia enfrentado acusações semelhantes na França, mas havia conseguido escapar das autoridades eclesiásticas mudando de nome e se juntando aos colonos que iriam para o Novo Mundo. O homem era tido como um bruxo poderoso, que realizava façanhas de necromancia: conjurava maldições, invocava espíritos e até mesmo conseguia erguer mortos vivos para proteger seu antro.  

Ele foi levado sob custódia e, aparentemente, seus vários crimes foram suficientes para obter a sentença de morte. O bruxo tentou escapar do lugar onde havia sido aprisionado, mas na fuga foi ferido por um disparo. Mortalmente ferido, foi conduzido diante de um grupo de soldados que o fuzilaram em 7 de outubro de 1661. Desafiando seus algozes, ele gargalhou dizendo que retornaria mais poderoso ainda se fosse morto.


Após sua morte, os ataques demoníacos realmente se intensificaram, forçando as freiras a realizar outras ações. Uma série de exorcismos foram realizados, mas Barbe parecia cada vez pior. Finalmente, Marie de l'Incarnation assumiu para si mesma a tarefa de exorcizar de uma vez por todas os espíritos malignos que a afligiam, inclusive o do próprio bruxo Daniel Vuil que se uniu a eles cumprindo sua ameaça. A luta contra os espíritos foi nada menos do que épica e o exorcismo consumiu boa parte das forças de Barbe e de Marie. Após dias de embate no campo espiritual e psicológico, Marie conseguiu expulsar os demônios que haviam se instalado na garota um a um, restando apenas o fantasma de Vuil. Para extirpar essa presneça nefasta, Marie ordenou que o corpo de Vuil fosse exumado e colocado diante dela, para que ela pudesse arrancar o espírito que atormentava a menina e devolvê-lo ao corpo apodrecido do bruxo. Quando ela conseguiu realizar tal coisa, o cadáver foi queimado até virar cinzas.  Com efeito, os fenômenos demoníacos cessaram e Barbe passou a viver uma vida normal até sua morte em 1696, aos 52 anos.

Marie de l'Incarnation ganharia enorme reconhecimento por ter vencido a batalha contra o bruxo. Ela viria a ser reconhecida como "Venerável" por Roma em 1874, e em séculos posteriores oficialmente beatificada pelo Papa João Paulo II em 1980, e finalmente canonizada como Santa em 2014 tornando-se a primeira santa franco-canadense. 

Ela desempenhou um papel marcante na história do Canadá e hoje é reconhecida como uma das padroeiras do país, em especial na região de Quebec que a tem como uma santa protetora. Mas o que podemos assumir à respeito das alegações misteriosas e poderes de Marie lÌncarnation? Ela realmente tinha visões paranormais ou esse é um caso de fervor religioso levado às últimas consequências? O que estava atormentando Barbe Hallay se é que havia uma presença que se apossou dela? 

Seja qual for a explicação, esse continua sendo um relato histórico bastante interessante de um incidente sobrenatural que moldou a história de um país.

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