sábado, 16 de julho de 2022

O Glutão de Paris - Tarrare, o homem que podia comer qualquer coisa


“Deixe uma pessoa imaginar tudo o que os animais domésticos ou selvagens, os 
mais imundos e vorazes, são capazes de devorar, e eles podem formar alguma 
ideia do apetite, bem como das necessidades de Tarrare.” 

— Dr. Pierre-François Percy, Mémoire sur la polyphagie.

A manifestação viva de um dos sete pecados capitais - A GULA, rondou as ruas da Paris no século XVIII, buscando saciar uma fome interminável. Ele tinha nome, atendia por Tarrare e os detalhes de sua vida ainda causam choque em todos que o ouvem. 

No início da vida as necessidades alimentares de Tarrare eram incomuns, mas nada que causasse estranheza. No entanto, as coisas logo tomariam um curso sinistro na direção do bizarro. De acordo com relatos e registros médicos existentes, o apetite insaciável de Tarrare continuou crescendo até o ponto que ele se empanturrava com todo tipo de coisa que chegasse ao alcance de suas mãos. Comenta-se que ele era capaz de ingerir alimentos insalubres, devorar animais vivos e até mesmo cadáveres, chegando a ser suspeito de sequestrar e devorar uma criança.

Mas qual seria o possível explicação para essa fome incontrolável? Será que Tarrare, o Glutão de Paris, realmente existiu ou tudo isso não passa de uma lenda? Para compreender a história desse lendário canibal e sua estranha existência, vamos ter que investigar quem era ele e como esse francês entrou para a história pelos seus hábitos alimentares incomuns. Esteja avisado que essa narrativa não é para os fracos - se você acha que pode aguentar, siga conosco!

PARIS, 1772


Com uma boca grande esticada além da normalidade, lábios finos e dentes manchados, o glutão passava seus dias comendo compulsivamente. Roía rolhas, mastigava madeira, devorava cestas inteiras de maçãs – uma de cada vez em rápida sucessão – e consumia até animais vivos (em especial cobras) para a mórbida diversão de espectadores ao mesmo tempo surpresos e nauseados.

Como a maioria dos comedores compulsivos modernos, Tarrare era de estatura diminuta, não pesando mais de quarenta e cinco quilos - ao menos, antes de comer. Apesar de toda a sua ingestão diária, ele nunca parecia manter o peso. Quando vazio, seu estômago ficava frouxamente distendido a ponto de poder envolvê-lo na cintura como se fosse um cinto feito da sua própria carne. Quando estava cheio, era inflado como um balão – não muito diferente de uma mulher grávida em seu último trimestre. Seu cabelo era claro e macio, enquanto suas bochechas, quando não estavam ocupadas em sua capacidade – supostamente podendo conter até uma dúzia de ovos – eram enrugadas e penduradas como papadas flácidas.

Antes da vida de artista itinerante, o indivíduo conhecido apenas por seu nome artístico, Tarrare, sobrevivia em meio à miséria, seguindo uma caravana itinerante de desajustados criminosos. Nascido na zona rural da rica cidade de Lyon, por volta de 1772, o apetite voraz de Tarrare se tornou aparente quando ele completou seis anos de idade. O menino sentia uma fome que não parava nunca e o único alívio que ele tinha vinha quando preenchia esse vazio. Tarrare, segundo alguns, podia comer seu próprio peso corporal em carne num período de 24 horas. Infelizmente, esse desejo sem limites o forçou a sair da casa de sua família quando adolescente, pois eles não conseguiam mais alimentá-lo.

Vagando pelo campo, sua vida se limitava a uma procura constante de sustento. Ele descobriu que era capaz de comer qualquer coisa que as pessoas lhe oferecessem e passou a fazer demonstrações públicas de seu nauseante dom. Após vários anos como vagabundo itinerante, Tarrare chegou à Paris. Lá ele esperava iniciar uma carreira solo de sucesso como aberração. Seu ato era simples: ele sentava em uma praça ou mercado e desafiava as pessoas a sugerir qualquer coisa para que ele comesse. Não raramente, Tarrare chocava a todos os presentes, consumindo o que quer que lhe fosse oferecido, de comida podre, a animais vivos, objetos grandes e pequenos, coisas intragáveis... o glutão não se furtava a devorar o que lhe dessem. No fim, ganhava algumas moedas e as usava para comprar comida um pouco melhor que a que devorava.

Com o sucesso, veio o risco. Tarrare uma vez desmaiou no meio da apresentação caisada pelo que mais tarde foi descoberto ser uma obstrução intestinal, e sendo levado para o hospital Hôtel-Dieu. Depois de ser tratado com laxantes, Tarrare agradecido se ofereceu para demonstrar seus talentos comendo o relógio de bolso do cirurgião. O cirurgião concordou, mas apenas sob a condição de que ele pudesse abrir Tarrare para recuperá-lo. Sabiamente, o glutão recusou.


Foi durante a Guerra da Primeira Coalizão Francesa que o respeitado cirurgião militar Dr. Pierre-François Percy conheceu o inexplicável talento de Tarrare, agora alistado como soldado do Exército Revolucionário. Com apenas vinte anos, o rapaz aparentemente sem nenhum atrativo provou ser extraordinário. Incapaz de subsistir apenas com rações militares, Tarrare era conhecido por fazer apresentações para outros soldados em troca de suas rações. Mesmo assim, ele ainda sentia fome e vagava pelos estábulos e chiqueiros comendo o que os animais deixavam para trás. Eventualmente Tarrare foi internado em um hospital militar ficando sob os cuidados do Dr. Percy.

O médico ficou curioso à respeito da condição de Tarrare e testou seus limites oferecendo quatro vezes as rações diárias de um soldado, mas nem isso foi capaz de saciar sua fome. Tarrare seguia comendo lixo, roubando outros pacientes e comendo até o estoque de curativos do hospital. Testes psicológicos descobriram que o glutão era apático, mas de resto, mentalmente são.

O relatório de Percy descrevia o soldado como um homem pequeno, com olhos vermelhos e pele macilenta. A temperatura de seu corpo era sempre elevada e ele suava em profusão. Seu suor aliás carregava um acentuado odor, tão rançoso que podia ser percebido a seis metros de distância. O fedor piorava depois dele comer e era tão pronunciado que mesmo para os precários padrões de higiene da época, muitos consideravam impossível ficar perto dele. Percy descreveu o fedor como sendo atroz a ponto de haver uma aura nauseante ao seu redor.

Certa vez, o médico mandou preparar uma refeição que deveria ser suficiente para quinze com o intuito de testar os limites de Tarrare. Mas contradizendo tudo oq ue se poderia imaginar, ele comeu tudo. Percy prosseguir em seu experimento alimentando Tarrare com animais vivos: um gato - do qual ele bebeu o sangue e depois de consumir, como uma coruja,  regurgitou sua pele. Ele conseguiu consumir em outras ocasiões lagartos, cobras e até uma enguia inteira.


Meses de experimentação se passaram antes que os militares descobrissem uma maneira de usar a habilidade única do glutão. Tarrare foi contratado como espião para servir ao Exército Francês no Vale do Reno. Sua missão era levar secretamente um documento através das linhas inimigas em um lugar que não poderia ser facilmente detectado caso fosse capturado: seu trato digestivo. Depois de consumir dez quilos de vísceras cruas de touro - que ele comeu diante dos generais - Tarrare engoliu uma caixa de madeira contendo um documento que poderia passar por seu sistema completamente intacto e ser entregue a um prisioneiro de guerra do alto escalão francês na Prússia.

Como se pode imaginar, um sujeito que exalava um fedor medonho e comia do lixo, não era exatamente o melhor e nem mais discreto dos espiões. Além disso, ele não falava alemão e foi rapidamente descoberto, capturado e mandado para uma prisão por suspeita de espionagem. Tarrare ficou preso por algumas semanas até expelir a caixa e contar aos surpresos prussianos o plano. Uma vez que a caixa continha um documento em branco, os inimigos assumiram que o sujeito deveria ser louco e resolveram mandá-lo de volta à França. No fim das contas, todo o plano não passou de uma farsa para testar a lealdade de Tarrare e saber se ele era de confiança. 

De volta à França, ele ficou novamente sob os cuidados do Dr. Percy que lhe deu baixa do serviço militar. Desesperado para encontrar uma cura para sua condição ele concordou em ficar sob os cuidados do médico na busca por alguma cura. Vários tratamentos foram testados: Opiáceos de láudano, vinagre de vinho, pílulas de tabaco e uma dieta de ovos cozidos, contudo, nada funcionou. Tarrare ainda vagava à noite pelas ruas desertas lutando contra cães vadios por refugos de matadouro e bebendo sangue de pacientes que estavam sendo tratados com sangrias. Ele até foi pego em mais de uma ocasião comendo cadáveres do necrotério local. Eventualmente, uma criança que estava sendo tratada no hospital desapareceu e Tarrare foi considerado como o principal suspeito. Temendo pelo que poderia acontecer, ele fugiu e voltou a viver como vagabundo fazendo apresentações em que comia todo tipo de porcaria.

Anos mais tarde, o Dr. Percy foi contatado por um médico do hospital de Versalhes a pedido de um paciente em seu leito de morte. Era Tarrare, que dizia estar à beira da morte depois de ter engolido um  garfo que havia se alojado em algum lugar de seu trato digestivo. Fazia quatro anos desde que Percy tinha visto Tarrare pela última vez. Ele esperava poder salvar sua vida removendo o garfo que causava a severa obstrução. Infelizmente não era o garfo que o estava matando mas a tuberculose em estágio terminal. 


Ele faleceu poucos dias depois.

Uma vez morto, um colega do Dr. Percy pediu para inspecionar o cadáver de Tarrare. De fato, vários médicos e cirurgiões desejavam participar da autópsia e concorriam para assistir o procedimento, o que atrasou sua realização. Enquanto isso, o corpo apodrecia rapidamente e a autópsia foi prejudicada pelas condições gerais. Os resultados revelaram que Tarrare possuía um esôfago chocantemente largo que permitia a passagem de porções enormes de alimento. Seu estômago era insondavelmente grande e cheio de úlceras que o tornavam elástico. Seu corpo estava cheio de pus, seu fígado e vesícula biliar anormalmente grandes, e o garfo, apesar de procurado, jamais foi recuperado.

Os médicos nunca descobriram o que provocava aquela estranha condição no pobre sujeito. Qual era a causa da fome insaciável de Tarrare? O que tornava possível aquele homem comer e jamais se sentir completo? Provavelmente jamais saberemos ao certo.

Algumas teorias foram sugeridas ao longo dos anos baseadas sobretudo nas anotações feitas pelo Dr. Percy que escreveu um livro sobre o caso. Muitos consideravam o material exagerado ou pouco preciso, contudo Percy era muitíssimo respeitado, tratado como um dos médicos pioneiros da cirurgia militar e inventor de importantes implementos. Sendo assim, à princípio podemos dar a ele o benefício da dúvida.
 
Até onde se sabe, Tarrare não sofria de psicose, estava completamente consciente e cognitivo. É possível que ele sofresse de hiperatividade hormonal e disfunção de componentes do cérebro. O sensor que nos permite saber que estamos satisfeitos não funcionava para ele. Se fosse submetido a um estudo cerebral, provavelmente essa condição seria identificada por um hipotálamo aumentado.


O hipotálamo regula a temperatura do corpo e é responsável por despertar a sensação de fome. Dado que Tarrare estava constantemente superaquecido numa busca desesperada por comida, isso parece se encaixar. Pesquisadores também suspeitam de um possível caso de pica, uma condição que leva o indivíduo a ingerir objetos não comestíveis.

Quanto ao motivo pelo qual Tarrare nunca pesava de 45 quilos, ele provavelmente também sofria com a presença de parasitas. O fato dele ter tamanho normal pode significar que outra coisa estivesse se nutrindo do alimento ingerido, talvez um organismo secundário. Um parasita como o ancilostomídeo ou lombriga, poderia explicar as coisas.

Existem teorias igualmente plausíveis: hipertireoidismo, que pode causar excesso de apetite e sudorese, além de cabelos finos; Síndrome de Prader-Willi, uma condição que causa fome constante, mesmo por itens não comestíveis; deficiência extrema de ferro, que causa desejos pelo mesmo; uma amígdala danificada é uma possibilidade, pois pode causar polifagia, termo médico para comer demais. De fato, poderia ser um caso raro de várias condições simultâneas.

Curiosamente, um caso semelhante – embora menos extremo ao de Tarrare foi relatado exatamente na mesma época e exatamente na mesma área, o de Charles Domery, o que pode apontar para uma causa ambiental determinante. Dado que tudo isso ocorreu concomitantemente com a Revolução Francesa, uma época de grandes privações, uma deficiência nutricional  pode ser responsável pelo ocorrido. Uma combinação de diferentes condições pode ser o que levou Tarrare a se tornar um canibal ou, em outras palavras, induziu suas tendências antropofágicas. Nunca saberemos com certeza.

A história inteira soa mais como algo escrito por Stephen King do que como um mistério não resolvido da história médica. Seja qual for a causa, pode ser fácil ridicularizar Tarrare e rotulá-lo de monstro, mas seria mais correto categorizar seu caso como uma tragédia. Tarrare não pediu para ter seu metabolismo e não há como dizer como ele se sentia praticando as ações grotescas que lhe foram atribuídas. Imagine uma fome tão agonizante que poderia levar alguém a comer qualquer coisa para saciá-la. Era isso que ele enfrentou, e foi isso que o matou.  

5 comentários:

  1. Muito bom o post, o youtube estava recomendando um vídeo sobre esse caso do Tarrare, mas como eu sou da época dos blogs e fóruns não assisti e só li aqui no MT, parabéns!

    ResponderExcluir
  2. Até que enfim li alguma coisa sobre o Tarrare por aqui! Estava demorando para você fazer um post sobre a "Magali da Deep web"! kkkkk
    Eita personagem bizarro da história do mundo....


    https://bardodanevoa.blogspot.com/

    ResponderExcluir
  3. As explicações são válidas, mas acho que não explica como ele conseguia comer qualquer desgraça, e aparentemente isso não lhe fazer mal. Por que né, vamo combinar que se ele comia animais vivos, coisas podres e até objetos, era pra ele ter morrido bem mais cedo não? De qualquer forma, pobre homem, certamente só na morte encontrou alívio.

    ResponderExcluir