domingo, 4 de setembro de 2022

O pior de todos os anos - O trágico ano de 536



Pode ser uma pergunta estranha, mas qual teria sido o pior dos anos?

O pior mesmo, aquele que deixou uma marca clara na história como um ano especialmente ruim para a humanidade.

Se você perguntar ao historiador medieval Michael McCormick qual foi o pior ano para se estar vivo, ele terá uma resposta rápida e sem rodeios: "536 d.C". 

Ele não dirá 1349, quando a Peste Negra varreu metade da Europa matando milhares e devastando cidades inteiras sob os auspícios da doença. Tampouco dirá 1918, quando a Gripe Espanhola matou algo entre 50 e 100 milhões de pessoas, principalmente adultos jovens. 

Ele dirá 536, e será categórico em sua opinião. Mas o que esse ano em particular teve de tão terrível? Com certeza, a maioria das pessoas não saberia dizer.

A explicação é simples. 

Na Europa, "foi o início de um dos piores períodos para se estar vivo, se não o pior ano de que se tem notícia desde o início da história humana registrada", explica McCormick, um historiador e arqueólogo que preside a Iniciativa da Universidade de Harvard para a Ciência do Passado Humano.

O ano de 536 teve início com um nevoeiro misterioso que mergulhou a Europa, o Oriente Médio e partes consideráveis da Ásia numa escuridão terrível. Dia virou noite e esse estranho fenômeno durou nada menos do que 18 meses. 


"O sol mostrou sua luz sem brilho, tênue como a lua, durante todo o ano", escreveu o historiador bizantino Procópio um dos muitos que registraram esse estranho incidente ao redor do mundo. As temperaturas no verão de 536 caíram de 1,5°C a 2,5°C, iniciando a década mais fria dos últimos 2300 anos. Neve caiu em pleno verão na China; as colheitas foram devastadas; pessoas passaram fome. As crônicas irlandesas registram "uma falta de pão e víveres que lançou milhares na carestia. A fome era tamanha e tão terrível que pessoas morriam de inanição nas ruas. Forçadas ao limite de suas forças, há relatos de um desespero que levou as pessoas a comer cavalos, cães e gatos. Em algumas partes da Europa, em especial no Leste, a fome era tamanha que o canibalismo foi praticado largamente. Com a crise de alimentos, cidades esvaziaram, portos pararam, o comércio deteriorou e as moedas perderam o valor.

Então, na esteira desses acontecimentos, a peste bubônica atingiu o importante porto romano de Pelusium, no Egito. Dali a praga encontrou lugar nos navios que navegavam pelo Mediterrâneo, sendo disseminada pelos ratos que habitavam os porões. A Peste foi tão impiedosa que devastou os poucos lugares que ainda resistiam à fome. A epidemia de ratos era tamanha que os animais proliferaram livremente. Em vários cantos da Europa eles se tornaram um problema de verdade, com ratazanas devorando os mortos e atacando os vivos.

"Aquilo que veio a ser chamado de Praga de Justiniano se espalhou rapidamente, eliminando de um terço a metade da população do Império Romano Oriental, acelerando seu colapso", diz McCormick.

Os historiadores sabem há muito tempo que a primeira metade do século VI foi um tempo especialmente sombrio no que costumava ser chamado de Idade das Trevas, mas a fonte das nuvens misteriosas que submergiram o mundo em uma escuridão até então era um enigma. Agora, uma análise ultra precisa do gelo extraído de uma geleira suíça por uma equipe liderada pelo glaciologista Paul Mayewski, do Instituto de Mudança Climática da Universidade do Maine, apontou aquilo que pode ser o culpado. 

Num workshop em Harvard, a equipe relatou que uma erupção vulcânica cataclísmica ocorrida na Islândia expeliu cinzas no Hemisfério Norte no início de 536. Duas outras erupções maciças se seguiram, em 540 e 547. Os golpes repetidos, seguidos de peste, mergulharam a Europa em estagnação econômica que durou até 640, quando outro sinal no gelo – um pico de chumbo no ar – marcou um ressurgimento da mineração de prata, e retorno a certo grau de normalidade.


Para Kyle Harper, reitor e historiador medieval e romano, o registro detalhado de desastres naturais e poluição humana congelados no gelo "nos dá um novo tipo de registro para entender quais as causas naturais que levaram à queda do Império Romano - e os primeiros movimentos da nova economia medieval."

Desde que estudos de anéis de árvores na década de 1990 sugeriram que os verões por volta do ano 540 eram excepcionalmente frios, os pesquisadores procuravam a causa. Três anos atrás, núcleos de gelo polar da Groenlândia e da Antártida forneceram a pista. Quando um vulcão entra em erupção, ele expele enxofre, bismuto e outras substâncias na atmosfera, onde formam um véu que reflete a luz do sol de volta ao espaço, resfriando o planeta. Ao comparar o registro de gelo desses traços químicos com os registros climáticos de anéis de árvores, uma equipe descobriu que quase todo verão excepcionalmente frio nos últimos 2.500 anos foi precedido por uma erupção vulcânica. Uma erupção maciça se destacou no final de 535 ou início de 536; outra se seguiu em 540. A equipe de Sigl concluiu que o golpe duplo explicava a escuridão e o frio prolongados.

A equipe decidiu procurar as mesmas erupções em um núcleo de gelo perfurado em 2013 na geleira Colle Gnifetti, nos Alpes. O núcleo de 72 metros de comprimento sepulta mais de 2.000 anos de precipitação de vulcões, tempestades de poeira do Saara e atividades humanas bem no centro da Europa. A equipe decifrou esse registro usando um novo método de resolução no qual um laser esculpe lascas de gelo de 120 mícrons. A abordagem permitiu que a equipe identificasse tempestades, erupções vulcânicas e levasse a identificar a poluição nos últimos dois mil anos.

No gelo da primavera de 536, foram encontradas partículas microscópicas de vidro vulcânico. Ao bombardear os fragmentos com raios-x para determinar sua impressão digital química, a equipe descobriu um núcleo de gelo semelhante ao da Islândia. As semelhanças químicas convencem os geocientistas que as partículas no gelo provavelmente vieram do vulcão islandês. 


De qualquer forma, os ventos e os sistemas climáticos em 536 devem ter sido mortalmente perfeitos guiando as nuvens de erupção para o sudeste, através da Europa e, mais tarde, para a Ásia, lançando uma mortalha fria à medida que a névoa vulcânica dominava a paisagem. O horror das pessoas diante dessa nuvem que encobria os céus, deve ter sido inenarrável. A cobertura devia resplandecer com cristais de vidro concedendo uma coloração avermelhada ao firmamento. Algo que permaneceu igual por meses.

Um século depois, em 640 a prata voltou a ser fundida com minério de chumbo, sinal de que o metal precioso estava em demanda em uma economia se recuperando do golpe de um século antes. Um segundo pico de chumbo, em 660, marca uma grande infusão de prata na economia medieval emergente e uma mudança cada vez maior no panorama. Os sinais de chumbo viriam a desaparecer novamente durante a Peste Negra de 1349 a 1353, revelando uma economia que novamente se achava estagnada.

Quem poderia imaginar que a análise de extratos de gelo poderia revelar tantos detalhes sobre a nossa história, inclusive os mais obscuros.

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