quarta-feira, 26 de outubro de 2022

A Verdadeira história do lendário Clube do Inferno


Na Europa do século XVIII houve um período em que clubes de cavalheiros e grupos sociais privados abundavam. Em uma época anterior aos mais modernos tipos de entretenimento, do cinema e da televisão, muitas pessoas passavam seus momentos de lazer em tavernas ou pubs na companhia de diletos confrades.

Para a classe alta da sociedade britânica, havia um desejo cada vez mais esnobe de estabelecer associações de caráter fraterno onde os indivíduos pudessem socializar uns com os outros  membros exclusivos. Ou seja, com a plebe afastada eles podiam se divertir na companhia dos seus pares.

Naturalmente o mais famoso clube do século XVIII foi o dos maçons, que, segundo inúmeras teorias da conspiração, seriam aqueles que puxam as cordas do mundo econômico e político até os dias atuais. Mas além dos maçons, havia uma outra sociedade fraterna igualmente controversa estabelecida na Grã-Bretanha durante o século XVIII, o Hellfire Club (Clube do Inferno ou ainda, Clube do Fogo Infernal).

Há alguma disputa à respeito de onde surgiu o primeiro Hellfire Club, com diferentes interpretações sugerindo sua origem, algumas vezes na Inglaterra e em outras, na Irlanda. Uma das sugestões errôneas mais frequentes é que ele teria sido fundado por Sir Francis Dashwood, um notório libertino inglês. Membro proeminente de uma família rica, ele se tornou Chanceler do Tesouro britânico mais tarde em sua vida, contudo até os 30 anos ele era mais famoso por seu envolvimento em todo tipo de escândalos.


Dashwood de fato criou o que chamou (para citar) "uma organização de interesse cultural" privada. O Clube era uma desculpa perfeita para beber, usar todo tipo de drogas, fornicar loucamente e cometer todos os excessos possíveis e imagináveis.

Os Clubes eram um pouco parecidos com as fraternidades modernas, comuns em algumas universidades, onde há uma forte ênfase na cultura de beber pesado e festejar como se não houvesse amanhã. Entretanto, apesar de sua importância para a sociedade, Dashwood não estabeleceu o primeiro Hellfire Club. Em vez disso, a organização por ele fundada era um grupo estreitamente alinhado com o Clube do Inferno, a Sociedade Dilettanti.

Embora Dashwood tenha sido erroneamente creditado como o criador do Hellfire Club, há um consenso entre historiadores que o primeiro clube foi estabelecido por Philip, o primeiro duque de Wharton na Inglaterra, em 1719.


Assim como Dashwood, ele também era um personagem altamente controverso, um libertino dado ao consumo excessivo de álcool e à rejeição dos costumes sociais típicos. Wharton atraiu outros membros da nobreza britânica para seu estilo de vida rebelde prometendo excessos e depravação sem pudores. Ao que parece, ele cumpriu sua promessa já que em 1721, apenas dois anos após seu estabelecimento inicial na Inglaterra, o Hellfire Club foi proibido por ordem do rei George I horrorizado com os rumores sobre o que acontecia nas reuniões. Circulavam histórias de libertinagem extrema na sede social, com a presença de prostitutas de luxo, artistas boêmios e personalidades polêmicas da sociedade. Em tempos moralistas, o Clube era uma ilha de excessos bizarros: haviam disputas pelo título de maior libertino, com um comportamento que não apenas estimulava, mas incentivava a promiscuidade entre os membros. Existiam alcovas com janelas secretas para observação dos casais. Os bailes de máscaras eram especialmente decadentes, com cavalheiros trajando vestidos e maquiagem, já os banquetes eram famosos pelos animais raros (avestruz, tubarao e até leões) servidos nas mesas aos convivas. Vários tabus eram quebrados pelos membros, ou assim diziam o disse me disse na cidade.

Consequentemente, os rumores sobre o Hellfire Club criaram um inconveniente que forçou os membros a transferir suas atividades para outras paragens, no caso, a Irlanda. Como tal, as origens do Hellfire Club, que sobreviveu a proibição real, estão associadas a Ilha Esmeralda.

A Irlanda há muito era a parte mais recalcitrante do Império Britânico. A colonização inglesa da ilha vizinha teve início no final do século XII e continuou irregularmente por mais de quatro séculos,  antes que o país fosse totalmente conquistado no início do século XVII. No século seguinte, uma classe governante de protestantes etnicamente ingleses, e de ascendência protestante, passou a dominar a ilha estabelecendo um Apartheid cultural, econômico e social.

Esses governantes eram muito ricos e tinham muito tempo livre. Nesse contexto, uma filial do Hellfire Club surgiu perto da capital Dublin cerca de vinte anos após Wharton ter sido obrigado a fechar as portas do Hellfire Club de Londres.


Os membros da Sede irlandesa eram tão transgressores e depravados quanto os de sua contraparte londrina. Atrás dos muros altos, erguidos ao redor da Mansão que sediava os encontros do grupo ocorriam festas e celebrações regadas a muita bebida e drogas que frequentemente terminavam em lendários bacanais.  

Contudo, o Clube adicionou um novo e sinistro elemento ao seu repertório obsceno, um pelo qual se tornaria infame e que casaria perfeitamente com o nome escolhido pela sociedade. No início havia apenas rumores, mas estes foram se tornando cada vez mais graves. Os boatos davam conta de atividade diabólica nos porões da sede, rituais satânicos da pior natureza com direito a adoração do diabo, missas negras e até sacrifícios.

Segundo relatos de criados e empregados da casa, havia um porão secreto cujo acesso era obtido mediante senhas comunicadas apenas aos membros de alto escalão. Estes recebiam uma iniciação no estilo maçônico em que juraram lealdade e fidelidade a Seita. A quebra desse juramento ensejava, entre outras coisas, no direito dos demais buscarem vingança, arruinando o transgressor física, econômica e espiritualmente. Para tanto, um dos ritos de iniciação consistia em obter gotas de sangue de cada membro e guardá-lo para usar em feitiços e maldições.

Os Rituais no Clube eram realizados com os membros severamente intoxicados com uma bebida conhecida como scaltheen, uma mistura de uísque quente e manteiga derretida que potencializada o teor alcoólico. Misturado com corante vermelho, a bebida tinha cor e consistência de sangue.


No salão principal de reunião havia uma magnífica cadeira de espaldar alto que era deixado vazia para simbolicamente representar o assento do Diabo. Ocasionalmente, as reuniões eram realizadas em Dublin, na Eagle Tavern em Cork Hill, à sombra do Castelo de Dublin, a sede do governo britânico na Irlanda. Curiosamente, a Eagle Tavern também serviu como ponto de encontro para os maçons e outras sociedades secretas da época, como o dileto Hanover Club.

Eventualmente, o Hellfire Club fez sua base de operações em um chalé isolado no topo das Montanhas Wicklow, uma cadeia de montanhas significativa ao sul da cidade de Dublin. Chamado de Montpelier Hill, a cabana foi adquirida no início da década de 1730 para um dos chefes da filial irlandesa do Clube, William Connolly, por Lord Wharton, o fundador da Sede inglesa. A cabana devidamente renovada tornou-se um dos pontos de encontro dos membros.

No entanto, talvez o Hellfire Club mais notório a surgir no século XVIII tenha sido fundado por uma figura já mencionada. Em 1755, Sir Francis Dashwood, que havia fundado a Dilettanti Society muitos anos antes, decidiu estabelecer uma nova filial do Hellfire Club nas ruínas de um antigo mosteiro cisterciense nos arredores de Londres, às margens do rio Tâmisa. Sabendo que um novo clube atrairia olhares de reprovação, Dashwood tratou de disfarçar as atividades e oferecer apoio filantrópico a instituições de caridade como orfanatos e hospitais.

Dashwood era um homem curioso, envolvido em várias atividades sociais e acadêmicas. Dizem que ele também era um iniciado nas sociedades secretas que exploravam o oculto, com ênfase na astrologia, na divinação e finalmente na feitiçaria. Dashwood e seus associados continuaram a tradição de beber pesado e debochar da sociedade restritiva que dominava a Inglaterra. Eles se tornaram bem conhecidos entre a classe alta britânica por sua embriaguez e comportamento lascivo. Como foi o caso do grupo de Wharton e da filial irlandesa vinte anos antes, seus detratores insinuavam que a libertinagem atingia um nível extremo de sordidez e imoralidade. 
O lema do clube "Fais ce que tu voudras", algo como "Faça o que desejar", foi uma filosofia adotada mais tarde pela Ordem de Thelema de Aleister Crowley.


Mas é claro, os principais rumores sobre o Clube envolviam os alegados rituais satânicos.

Desde o início, circulava uma lenda antiga de que o mosteiro escolhido por Dashwood, em Wycombe Hill,, havia sido palco de um horrível episódio no século XIV, envolvendo monges que cometeram raptos, estupros e assassinatos. A ordem teria sido expulsa  deixando uma mácula no local. Talvez essa história de sedição tenha sido especialmente interessante para Dashwood que incorporou aos rituais secretos do Clube o uso da indumentária dos monges, mantos compridos de cor marrom e capuzes que cobriam a cabeça. 

O Clube também passou a utilizar as catacumbas que ficavam abaixo do antigo mosteiro. Em um verdadeiro labirinto de corredores e câmaras abarrotadas de ossos amarelados, o bando se reunia para suas festividades, bebedeiras e orgias. Os ritos eram inspirados por celebrações de natureza pagã, honrando Vênus e Baco. Os rumores sobre rituais profanos sempre acompanhou a mítica sobre o clube e pode decorrer do caráter pagão das festas. 

É certo que a tradição de se manter a "Cadeira do Diabo" continuou sendo observada, mas no que diz respeito a outras celebrações, não há como saber ao certo. Algumas testemunhas afirmavam que era comum haver missas negras em uma das câmaras subterrâneas, nela uma mulher nua servia de altar para uma caricatura de celebração cristã. O bando se reunia para invocar o nome de demônios e realizar o sacrifício de cordeiros cujo sangue era misturado a álcool e consumido. Os mais crédulo afirmavam que o próprio Satã respondia a essas missas blasfemas para desfrutar das prostitutas de luxo chamadas de "freiras da ordem", além da bebida e das drogas.


Em dado momento as autoridades religiosas tentaram instar a realeza a censurar as atividades do Clube, mas nada foi feito nesse sentido. Supostamente a maioria das pessoas não levavam a sério os rumores sobre os escândalos no velho mosteiro. Alguns creditam isso ao fato de vários nobres influentes serem membros da sociedade secreta, e que eles teriam impedido investigações mais profundas. Não há contudo, como saber ao certo...

É possível que Dashwood e seus colegas se divertiam criando rumores sobre o que acontecia nas criptas. Existe a possibilidade de rituais terem sido conduzidos, mas a maioria das testemunhas que estiveram presentes a festas organizadas pelo Clube alegavam que a maioria desses ditos rituais eram teatro para impressionar os membros mais novos e demais convidados.

Seja como for, o Clube foi uma fonte se escândalos ao longo de toda sua existência.

O Hellfire Club sobreviveu muito além das primeiras encarnações estabelecidas por Wharton na década de 1710, Connolly e outros na Irlanda na década de 1720, e Dashwood perto de Londres na década de 1750. Em 1781, o sobrinho de Dashwood, Joseph Anderson, fundou a Phoenix Society em Oxford, que era efetivamente uma nova versão do Hellfire Club com um nome diferente.


Ele continuaria a fazer parte da vida universitária em Oxford mais de 240 anos depois. Da mesma forma, o Hellfire Club ainda existe na Irlanda e tem associações íntimas com o Trinity College e o University College, em Dublin. Foram essas sociedades que deram origem às fraternidades colegiais que ocupam um lugar importante nos campus universitários, sobretudo nos Estados Unidos.

De sua origem libidinosa, passando pelos boatos de cerimônias satânicas, o Hellfire estabeleceu seu nome entre os clubes de cavalheiros mais notórios da história.

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