domingo, 23 de outubro de 2022

Cercado por Canibais - Os perigos mortais da Ilha de Fiji


Existem inúmeras narrativas de exploração em fronteiras selvagens ao longo da história. Todos adoramos essas histórias trazidas por almas intrépidas corajosas o suficiente para viajar por esse horizonte e encontrar novas pessoas e terras com as quais a maioria de nós nunca sequer sonhou. Um conto especialmente sombrio de aventura, exploração e terror tem como pano de fundo as Ilhas de Fiji. Foi lá que, no século XIX, um missionário incrivelmente corajoso escreveu seu nome na história ao se tornar o único explorador europeu conhecido na sua época a ser capturado, morto e devorado por uma tribo de selvagens canibais.

Nascido em Playden, Sussex, em 6 de fevereiro de 1832, Thomas Baker tornou-se um missionário metodista que ansiava por levar sua fé para os rincões mais distantes do mundo. Ele chegou ao que era então a distante e exótica Ilha de Fiji em 1859, sendo nomeado "Missionário do Interior". Este título envolvia realizar trabalho missionário em aldeias nas remotas regiões montanhosas da ilha de Viti Levu, um território inexplorado e extremamente perigoso. Lá os nativos não apenas não haviam tido contato com o cristianismo, mas muitas vezes sequer sabiam da existência de homens brancos. 

Na época, as terras que compunham o arquipélago de Fiji ainda eram consideradas um lugar indomável e inexplorado, cheio de nativos primitivos e aterrorizantes histórias de canibalismo. De fato, as ilhas eram genericamente conhecidas pelos marinheiros como "Ilhas de Canibais". Explorar tais lugares era extremamente arriscado, quanto mais para um missionário que atuava desarmado confiando apenas na sua fé e na boa vontade dos povos. 

A tarefa de Baker se tornava ainda mais perigosa porque não só as tribos eram cautelosas com estranhos e resistentes aos ensinamentos cristãos, mas por conta de um senhor da guerra da ilha vizinha de Bau, chamado Cakobau. Este havia se convertido ao cristianismo e imediatamente se autoproclamado Rei de Fiji. Tal coisa era veementemente contestada pelas demais tribos, incluindo o povo que habitava Viti Levu, que se tornaram hostis aos forasteiros e suas doutrinas. Desde que Cakobau se tornou um aliado próximo dos missionários ocidentais na região, o trabalho destes começou a ser visto como uma espécie de campanha de propaganda para colocar as outras ilhas sob seu domínio. Dessa forma, os missionários estrangeiros passaram a ser rotulados de espiões. À medida que a guerra se intensificava entre diferentes facções, as tribos que se opunham ao autoproclamado Chefe Cakobau, recorriam cada vez mais a brutalidade. Atos de violência extrema envolviam mutilações, decapitação e é claro, canibalismo. Os guerreiros não poderiam esperar tratamento decente, por isso muitos deles carregavam pequenas doses de veneno que poderiam matá-los em caso de captura e tornar sua carne intragável.  


Foi em grande parte por esta razão que quando o Rev. Baker organizou uma excursão ao interior da ilha em julho de 1867, muitos de seus colegas o desaconselharam fortemente. Era muito perigoso, eles avisaram, e além disso, Baker estava prestes a tirar um ano de folga do trabalho missionário para passar mais tempo com sua esposa e suas três filhas. Parecia imprudente arriscar uma jornada para aquele interior inexplorado e inóspito com seu terreno traiçoeiro e lutas tribais acontecendo. Contudo, Baker insistiu em fazer a viagem para estabelecer contato com aldeias isoladas do outro lado da ilha, uma área inexplorada até então. Ele sentiu um chamado para fazê-lo, relatou, e não pôde ser persuadido a desistir de sua cruzada pelo interior da ilha. 

Quando partiu à caminho daquela selva densa rumo ao desconhecido, ele o fez com um grupo de sete seguidores fijianos, um ministro fijiano chamado Setareki Seileka, e muito pouco para se proteger se enfrentassem perigo. Baker sempre confiou em Deus para liderar o caminho, adotava o pacifismo e, portanto, seu grupo nem estava armado. 

O pastor não achava no uso de armas:

"Sinto confiança em andar entre os pagãos, mas sempre me esforço para manter meus olhos e ouvidos abertos, e considero cada evento que encontro único em suas possibilidades... e confio em Deus para defesa. Acredito que estarei seguro se andar nas graças dele."


Mas é claro, o progresso pela selva não foi fácil. A mata era a mais densa e brutal que Baker já encontrara e as aldeias pelas quais passavam não se mostraram nada acolhedoras, francamente, bem o inverso, sendo ameaçadoras na maioria das vezes. Sempre havia a ameaça de canibalismo, que é claro todos os presentes sabiam ser um risco real. Em uma ocasião, em uma vila chamada Vunibua, Baker foi pego pela chuva e precisou trocar de roupa, e ao fazer isso, comentou em seu diário como os moradores olhavam para ele com intenção malévola, possivelmente canibal. Ele escreveu nas suas anotações pessoais:

"Eu tive que mudar para a minha pele diante de um bando de pagãos que se banqueteavam comigo com os olhos para meu desconforto. Senti-me realmente temoroso naquele momento, achando que uma lança mortal me atingiria à qualquer momento." 

Felizmente, o grupo pode descontrair um pouco quando chegou à aldeia de Nabutatau, nas Terras Altas de Navosa, no oeste de Viti Levu. O lugar já havia sido visitado pelo cônsul britânico, que havia falado ter sido calorosamente recebido pelo povo de lá. O grupo levou presentes e esperava o mesmo tratamento dos nativos. No entanto, quando alcançaram o lugar a esperada acolhida foi tudo menos amistosa. A guerra tribal havia engolido a ilha e os missionários eram vistos como aliados do inimigo. O chefe da aldeia, que outrora recebera o cônsul britânico de braços abertos e até o acompanhava em parte de sua viagem, não queria mais estranhos ali, principalmente missionários. Embora a expedição não tenha enfrentado violência no início, eles não receberam comida e nenhum abrigo. Embora Baker tenha conseguido convencê-los a deixá-los ficar, as coisas estavam tensas e, sem o conhecimento do grupo, um chefe hostil de uma região vizinha que desconfiava profundamente de estrangeiros enviou uma ordem às aldeias para matar os missionários se eles avançassem território adentro. 

A ordem foi passada adiante com a promessa de uma recompensa para quem a executasse, de preferência com uma demonstração de que os missionários não eram bem vindos. Mesmo recebendo informes sobre a situação, Baker decidiu continuar em sua jornada, acreditando que conseguiria passar pelos percalços graças à sua convicção divina. Ele descobriria estar errado.


Adolf Brewester, um administrador britânico de Fiji e comissário do governador para as províncias de Colo, escreveria sobre o que aconteceu:

"Quando o Sr. Baker chegou a Nabutatau, os nativos ainda não tinham a intenção de matá-lo. Ele selou seu próprio destino, no entanto, com o que seu anfitrião considerou uma violação grosseira de boas maneiras. O jovem chefe da tribo educado na Escola Provincial de Nandarivatu, deu sua versão do caso. Ele disse que, quando o Sr. Baker chegou à aldeia foi recebido com hospitalidade e passou a noite lá. De manhã, ele pegou um pente e o usou no banheiro, depois o colocou sobre os tapetes. Seu anfitrião, o chefe principal, pegou-o e prendeu-o em seus próprios cachos felpudos. Ele o fez de maneira bastante inocente, pois a propriedade era de uso comunal, e as classes altas certamente podiam tomar qualquer coisa que quisessem. Os pentes também eram usados ​​presos no cabelo de seus donos sendo constantemente requisitados para coçar. O conhecimento disso provavelmente ofendeu o senso de limpeza e decência do Sr. Baker e ele o arrancou da cabeça do chefe. Ele não poderia ter cometido um crime mais mortal."

A cabeça é a parte mais sagrada do corpo para os fijianos, nela reside todo o mana ou poder misterioso de um homem. Mais especialmente no caso de um grande chefe. A cabeça é o santuário do deus ancestral e, como tal divina, tão reverenciada que ninguém, exceto os sacerdotes hereditários, pode tocá-la. Isso explica porque a decapitação era tão importante para esses povos: separar a cabeça do corpo era o supremo ato de humilhação.

Foi considerado portanto uma ofensa imperdoável o que ele fez, e que isso tenha levado ao fim da expedição. Quando o grupo de Baker deixou a aldeia, eles foram seguidos por alguns dos nativos, e em um local designado esses homens atacaram matando Baker e cinco de seus carregadores com pedras e um machado. Dois outros conseguiram escapar fugindo para a selva. Os corpos de Baker e dos outros mortos da expedição foram levados até a vila e mostrados ao Chefe que pessoalmente cortou a cabeça de cada um deles e as colocou sobre uma mesa para que cerimonialmente pudessem assistir o que viria em seguida. O que se seguiu foi um macabro espetáculo de canibalismo: os cadáveres foram desmembrados, cortados em uma grande pedra, cozidos em caldeirões e devorados pela tribo. O que restou foi jogado a 150 metros abaixo de uma ravina no rio Sigatoka sem um enterro adequado. 


Quando os dois sobreviventes conseguiram chegar à civilização e se espalhou a notícia de que o missionário havia sido morto por canibais no interior da ilha, houve indignação entre os britânicos, que exigiram que os fijianos levassem os assassinos à justiça. 

Infelizmente, isso levaria a ainda mais derramamento de sangue, e Brewester escreveria:

"O Chefe Cakobau, que naquela época era o Rei titular de Fiji, foi induzido a enviar expedições armadas para se vingar dos assassinatos. Seus agentes partiram de várias tribos, mas atuavam independentemente uns dos outros, sem disciplina ou coesão, e como resultado acabaram mortos antes de chegar perto do objetivo.  Como todas essas expedições punitivas falharam, nenhuma vingança imediata caiu sobre o povo de Vatusila. Isso encorajou a tribo a atacar outros homens brancos, os plantadores de algodão no Mba e alguns poucos colonos estabelecidos na costa norte de Viti Levu. Foram dias sangrentos e assustadores para quem vivia naquela região".

Eventualmente uma milícia armada se formou para proteger os assentamentos e fazendas. Num ataque, o chefe de Nabutautau acabou sendo capturado, mas os outros responsáveis ​​pelos assassinatos nunca foram presos. Estes continuariam a liderar uma resistência feroz e sangrenta contra as forças coloniais britânicas mesmo depois que a maioria dos outros chefes cedeu Fiji à Grã-Bretanha em 1874. Sempre desafiadores, a tribo Nabutautau só foi forçada a rendição em 1876 por força de uma tropa de 500 soldados que chegaram a Fiji para "impor a ordem". 

Nos anos seguintes, espalhou-se o boato de que o massacre do grupo de Baker trouxe uma maldição sobre a aldeia, pois suas colheitas falharam e outras calamidades os atingiram, fazendo com que muitos abandonassem o lugar para sempre. Foi essa crença em uma maldição que levou os aldeões a erguer um memorial em memória da morte de Baker em 1905. Muitas cerimônias foram realizadas diante dele. Mais recentemente, em 2003, os descendentes dos aldeões que mataram Baker finalmente ofereceram um pedido formal de desculpas pelos assassinatos em uma tradicional cerimônia de reconciliação chamada matanigasau.


Hoje, a aldeia ainda está de pé, e lá se encontra o memorial em homenagem aos mortos no massacre. A mesma pedra usada para cortar Baker e seus homens foi colocada ali como marco. Ao longo dos anos, houve algum debate sobre por que exatamente Baker teria sido morto. Alguns historiadores acreditam que a história do pente provavelmente foi exagerada ou fabricada, pois Baker morava em Fiji há oito anos, tempo suficiente para estar ciente dos costumes e tabus tribais. Talvez seja mais provável que ele estivesse no lugar errado na hora errada e tenha sido morto e comido simplesmente porque era um missionário. Lance Martin, arquivista da Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres, disse sobre isso:

"A história sobre o pente parece ser um mito. O mais provável é que Baker tenha sido pego em algum tipo de disputa intertribal relacionada ao seu direito de viajar pela ilha. Eles foram emboscados quando estavam saindo de uma aldeia de manhã. Ele foi cortado em uma rocha plana na base de uma ravina. Seu corpo foi ungido e depois comido."

Considerando que apenas o chefe da aldeia contou a história sobre o pente e ninguém mais havia testemunhado isso, pode ter sido uma espécie de desculpa usada para esconder o verdadeiro motivo pelo qual foram mortos. Provavelmente nunca saberemos com certeza. O que sabemos é que Baker foi o primeiro e único missionário europeu conhecido a ser morto e comido por canibais em Fiji, marcando-o como um caso único numa terra exótica e perigosa.

Um comentário:

  1. Ah, ocidentais, principalmente os cristãos... arrogantes a dizer chega.

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