quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Cemitério dos Ossos Cruzados - Uma necrópole fantasmagórica em Londres


A área originalmente ao sul de Londres, onde ficava o famoso Teatro Globo gerenciado por Shakespeare sempre teve uma aura de sordidez e perversidade.

A região ficava próxima ao Embarcadouro, uma área de atividade portuária, marcada pelo constante vai e vem de mercadorias de todo tipo. Contrabando era tão comum ali que as pessoas chamavam o cais mal engendrado de "Counterfeit Row". Lá se negociava de tudo, de mercadoria roubada a carga pilhada por piratas, de substâncias entorpecentes trazidas do Oriente distante a escravas brancas.

No século XVII, a área era tão barra pesada que as autoridades londrinas evitavam enviar homens até lá. Os agentes da lei aceitaram relutantemente designar uma autoridade local para manter, dentro do possível, a ordem na área. Uma espécie de junta formada pelos próprios criminosos era responsável por impor a lei. E esta era rápida e implacável.

Até meados do século XIX, a área continuou sendo infame pela atividade criminosa e violência, com um número elevado de assassinatos no entorno. O cais era especialmente perigoso e não raramente cadáveres surgiam flutuando nas águas barrentas. Apenas no final da Era Vitoriana a área foi renovada à medida que os limites da metrópole eram estendidos. Londres não podia continuar a ter um distrito tão insalubre.


Antes disso, entretanto, o Embarcadouro era famoso por outra razão nada lisonjeira. A calçada de fronte para o Rio Tamisa noite e dia fervilhava com a atividade de tavernas e bordéis da pior qualidade. Prostituição era uma atividade tão corriqueira a ponto de negociações serem feitas sem qualquer pudor. Becos e vielas serviam aos propósitos escusos com clientes usando os muros como apoio para consumação do sexo, praticado de forma rápida, de pé. Terminado o ato, o cliente largava umas moedas no chão e saia sem olhar para trás. 

As prostitutas locais eram conhecidas como "Gansos de Winchester", por conta do hábito de exibirem os seios empoados de branco para atrair os transeuntes. A expressão "bicado por um Ganso de Winchester" se referia a ser contaminado por uma doença venérea, algo muito comum. As moças eram também famosas pelas mãos rápidas que subtraiam carteiras e objetos de valor enquanto os clientes estavam entretidos com outras coisas.

Uma das razões por esse lugar ser tão procurado pelas mulheres é que lá, os cafetões, não conseguiam operar. Isso no entanto estava longe de significar que as mulheres conseguiam manter seus ganhos. Entre o século XI e XV, os bordéis e casas de tolerância eram dirigidos por ninguém menos que a Diocese de Winchester que tinha direito de licenciar e taxar as atividades da zona de meretricio.

Pode parecer absurdo, mas esse direito exclusivo havia sido concedido graças a um hospital que a igreja operava na área. Em troca de tratamento gratuito para os habitantes, uma parcela dos lucros com prostituiçao pertencia à paróquia - uma parcela considerável, quase metade do arrecadado ia para o Clero. A Diocese de Winchester era extremamente ciosa de sua fatia dos lucros, chegando a empregar contadores e funcionários que mantinham os negócios em constante funcionamento. A atividade era rentável e qualquer concorrência, imediatamente repelida. Se um proxeneta tentasse se estabelecer poderia não viver para ver o dia seguinte, já as moças dispostas a operar independentemente podiam sofrer acidentes que as faziam mudar de ideia. Muitos criminosos perigosos eram incumbidos de zelar pelos interesses da Diocese e estes não toleravam intromissões ou subterfúgios. 


Os bordéis conhecidos pelo apelido de "caldeirão de cozido" (stews pots), eram verdadeiros antros que prosperaram sob um rígido código de conduta. As prostitutas tinham que se registrar, não trabalhavam em dias santos e não podiam dormir com ninguém que não as pagasse. Clérigos especialmente designados para cuidar desse rentável negócio recebiam o apelido de "Vigários" e eram identificados por um chapéu vermelho de aba larga ou pelos cacetetes truculentos que usavam para disciplinar suas funcionárias.

Embora o Bispo de Winchester estivesse satisfeito em taxar as moças trabalhadoras, ele não estava disposto a deixá-las serem enterradas em solo consagrado. Prostituição era tratada como atividade pecaminosa e embora amplamente tolerada, havia uma questão moral que fazia as pessoas torcer o nariz a respeito de serem enterradas ao lado de quem vivia (ou morrera) nesse meio.

O bom povo da comunidade decidiu então comprar um pedaço de terra, uma gleba onde pudesse enterrar as mulheres que morriam no Embarcadouro. Batizado oficialmente de Pátio da Mulher Solteira, o espaço não consagrado era mais conhecido como Cemitério dos Ossos Cruzados, uma vez que uma placa de madeira com dois fêmures pregados em x era mantido sobre o portão de entrada.

O solo lamacento do Ossos Cruzados recebeu cadáveres depositados em suas covas rasas ao longo de quase 300 anos. Os mortos muitas vezes não tinham a dignidade de descansar em caixões e eram enterrados enrolafos em lençóis simples. As constantes inundações faziam com que ossos e restos fossem levados pela maré. Ratos, peste e insetos proliferaram e em mais de uma ocasião o local foi foco de epidemias.


Não é de se estranhar que o Cemitério tenha ganhado fama de assombrado nas décadas seguintes à sua criação. Tristeza e desolação eram uma constante em seus arredores e de noite as pessoas evitavam transitar pelo trilha de terra batida que levava até ele. Havia rumores, e não eram poucos...

Mencionavam sombras e silhuetas espectrais flutuando sobre o descampado de terra mexida. Marcas de pegadas eram vistas na lama e por vezes covas pareciam escavadas de dentro para fora. O pior, no entanto, eram os sons lamurientos que se levantavam na gleba e que podiam ser ouvidos mesmo na distância. Eram ruídos de xingamentos, murmúrios indefinidos e gritos de gelar o sangue. Por vezes também havia uma repetição indecorosa de palavras desconexas e risadas esganiçadas. Vozes femininas. Sempre mulheres!

Mais de uma testemunha mencionou experiências assustadoras nos limites do Cemitério dos Ossos Cruzados. Em um famoso incidente pelos idos de 1480, dois coveiros foram enterrar uma moça e voltaram aterrorizados gaguejando histórias sobre um espírito enegrecido que os perseguiu. Um deles tinha os cabelos, antes escuros, agora totalmente grisalhos.

Além das mulheres, o Cemitério se tornou notório por receber os restos de bebês não batizados e de fetos abortados, outra prática quase epidêmica nas cercanias. Relatos de bebês chorando e de pequenos globos de luz pálida com a forma esquálida de recém nascidos também eram relativamente comuns. 

O solo do Cemitério dos Ossos Cruzados continuou sendo semeado fartamente ao longo dos séculos até que em 1600 a Igreja perdeu seu monopólio sobre a prostituição no Embarcadouro e o cemitério foi convertido para receber miseráveis que não tinham meios de pagar o enterro. Ele foi muito usado quando o cólera e a meningite se disseminaram, trazidos pelos marinheiros vindos de longe. Na ausência de lugar melhor, covas comunitárias foram escavadas e corpos lançados ali sem cerimônia.

Como indignidade final, restos humanos foram subtraídos do Cemitério para alimentar o tráfico de cadáveres que abastecia as aulas de anatomia nas Universidades de Medicina londrinas. 


O Cemitério oficialmente encerrou suas atividades em 1920, havendo planos para remoção dos restos e relocação em outro trecho menos sujeitos a inundações. Isso nunca aconteceu e os ossos continuaram no mesmo lugar ainda que obras de contenção tenham mitigado as enxurradas.

A fama de assombrado, essa perdura apesar da passagem dos séculos. Um fantasma recorrente, visto por aquelas bandas pertence a uma mulher jovem e magra apelidada de "Polly Gritadeira". Ela supostamente surge nas noites escuras, desfiando um rosário de xingamentos ofensivos sobre quem tem o azar de topar com ela. Outros espíritos inquietos também compõem o panorama fantasmagórico, entre os quais Black Annis, uma suposta alma penada que seduz homens, os atrai com promessas de sexo e então os mata.

Em 1992, o Museu se Londres conduziu uma escavação no Cemitério de Ossos Cruzados. Eles encontraram restos enfiados em sepulturas rasas e covas comunais em que esqueletos repousavam empilhados uns sobre os outros. Chamava a atenção também o grande número de ossadas de crianças com menos de seis anos. Uma análise forense demonstrou que muitas dessas haviam morrido de causas não naturais, vitimadas pela violência premente.

Assim como ocorria no passado, a área persiste atormentada por macabros relatos de assombrações. 

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