quinta-feira, 7 de março de 2024

O Culto do Deus Cadáver - A Blasfema Seita devotada a Mordiggian


Há uma relação íntima entre cultos ancestrais e a morte.

A razão óbvia é que a morte constitui para nós o derradeiro mistério, o fim de um ciclo e o início de uma jornada espiritual para algo além da realidade material. A compreensão da morte e de seus muitos segredos sempre fascinou a humanidade e fez com que o homem levantasse questionamentos imaginando o que o aguardava além do véu. Inúmeras crenças e filosofias tentaram explicar esse dilema, oferecendo as mais diferentes respostas: do simbolismo karmico à reencarnação da alma, do julgamento final, das recompensas do Paraíso aos tormentos do Inferno, todas as crenças oferecem seu ponto de vista.

Nenhuma fé, no entanto, conseguiu provar que está certa e que sua posição prevalece sobre todas as demais. A verdade nos ilude, talvez ela só possa ser conhecida no momento em que cada um for tocado pela morte. 

No caótico Universo do Mythos, ironicamente, são poucas as divindades que se inclinam sobre os aspectos fundamentais da morte. Talvez isso se explique pelo fato de que tais entidades de poder inimaginável, todas elas imortais, não se interessam em tentar compreender as nuances de algo tão transitório quanto a existência dos mortais. Se tais entes não contemplam a hipótese de seu próprio fim por que deveriam se importar com o fim de seres menores?

A grande exceção talvez seja o Grande Antigo Mordiggian, o Deus Cadáver, o Amante dos Mortos e Habitante dos Sepulcros. Para muitos, ele é a representação corpórea das vicissitudes do corpo, da corrupção da carne e da deterioração definitiva. Ele é um Deus profano que trilha um caminho de podridão, almeja a dissolução de todas as coisas e viceja com a inevitável corrupção da carne. 


O Culto de Mordiggian é incrivelmente antigo, mas ele encontrou aceitação entre os humanos somente em dois momentos: no passado remoto e na Terra dos Sonhos. Para alguns teóricos do Mythos, o continente de Zothique onde Mordiggian é o Deus principal, reside num futuro muito distante e não na Terra dos Sonhos. Lá a cidadela de Zul-Bha-Sair constitui o centro de poder do Culto e onde o Deus hiberna nas profundezas. As teorias são muitas e inconclusivas.

Num primeiro momento, o Culto de Mordiggian foi bem conhecido durante a lendária Era Hiboriana, um período marcado pela barbárie que antecedeu a história corrente. Os templos de ardósia cinzenta dedicados a Mordiggian estavam presente nos reinos centrais, sobretudo na ancestral nação de Koth, em sua vizinha Ophir e na obscura Zamora, terra de muitos deuses. Foi em Shadizar, a obscena capital da Zamora, que o Culto alcançou seu apogeu formando uma seita organizada. Este foi o único momento em que a Igreja de Mordiggian atuou abertamente. 

Os fiéis viam Mordiggian como uma espécie de juiz diante do qual, as almas dos mortais eram julgadas. Cabia a Ele determinar quais almas estavam aptas a gozar das benesses do além vida e quais seriam aprisionadas num labirinto escuro onde dor e sofrimento aguardavam. Para chegar a esse decisão, Mordiggian reclamava para si os cadáveres de seus fiéis. Os restos mortais, acreditavam os cultistas, conservavam os sinais das transgressões terrenas. Através de elaborados rituais fúnebres, o Deus era capaz de divisar qual seria o destino final de cada espírito. Entretanto, a maioria dos seguidores desconhecia no que consistiam esses rituais ou a natureza blasfema da congregação. 

Era segredo que a medonha raça dos Carniçais comandava o Culto e estabelecia as ligações com Mordiggian. Os Carniçais sempre veneraram o Deus Cadáver e cumpriam a função como sacerdotes principais, oficializando ritos e celebrações. Eles vestiam longos mantos de cor púrpura e máscaras prateadas que ocultaram suas feições bestiais. Os carniçais raramente deixavam os Templos exceto para coletar os cadáveres dos devotos que lhes eram entregues de bom grado. Estes eram então carregados para os túneis subterrâneos abaixo dos templos afim de serem preparados para o "julgamento". Isto envolvia um ritual blasfemo no qual os cadáveres eram consumidos num festival nauseante de canibalismo. Tanto Mordiggian quanto os carniçais que o serviam eram insaciáveis e cobiçavam os corpos de todos que morriam. 

Rumores a respeito dos misteriosos rituais e da identidade dos acólitos eram sussurrados pela população, mas ninguém sabia o quão abomináveis eram estes. Supõe-se que em algum momento a verdade veio à tona o que deflagrou uma revolta generalizada. Os templos foram destruídos pelos fiéis e os sacerdotes passados pelo fio da espada.


Mas o Culto de Mordiggian não desapareceu por completo. Quando a Era Hiboriana foi devastada por um Cataclismo de largas proporções, coube aos carniçais preservar a memória de seu Deus e preparar o seu retorno.

O Culto de Mordiggian emergiu em algum momento na Ásia Meridional, no atual subcontinente indiano por volta do século quinto antes de Cristo. É provável que os carniçais tenham sido responsáveis por reintroduzir o Deus aos humanos que o viam como Senhor dos Mortos. Contudo as tradições védicas que moldaram a Civilização do Vale do Indo declararam a crença em Mordiggian uma blasfêmia e proibiram sua adoração. Para sobreviver, os devotos tiveram de manter suas atividades em segredo, realizando suas práticas clandestinamente. Embora o Culto jamais tenha desaparecido por completo na Índia, ele se ramificou através do Sudeste asiático entre os Tcho-Tcho e marchou para o oeste estabelecendo-se no Paquistão, Afeganistão e dali para o Oriente Médio. Os romanos conheceram o Culto quando ocupavam a Judeia e coube a mercadores levá-lo para os confins do Império, ainda que seus seguidores jamais tenham sido numerosos. O Culto emergiu e desapareceu inúmeras vezes em incontáveis lugares. 

É possível precisar quando o Culto de Mordiggian ressurgiu mais expressivamente, graças a ladrões de sepulturas e necromantes na França pelos idos do século XVI. Esse grupo de degenerados aparentemente entrou em contato com os carniçais que habitavam os subterrâneos de Paris e firmaram com eles algum tipo de acordo. Os carniçais introduziram aos humanos os princípios da adoração à Mordiggian e os grupos se complementavam: os humanos supriam os carniçais com informações e tarefas que eles não podiam realizar na superfície, enquanto os carniçais ofereciam os segredos dos sonhos e o dúbio benefício do canibalismo. O renascer do Culto foi bem documentado por François Honore-Balfor, Comte d´Erlett no raro tomo Cultes des Goules, publicado no início do século XVIII.

Pouco depois do lançamento do livro de Balfor, a seita se viu perseguida pelas autoridades. Denúncias levaram os gendarmes a esconderijos e covis onde os membros rendiam homenagem a Mordiggian. As prisões se traduziram em escândalo já que entre os envolvidos com o Culto encontravam-se personalidades na sociedade parisiense interessadas em testar limites e romper com tabus. Apesar de muitos terem sido capturados, outros encontraram refúgio nos subterrâneo da cidade com seus aliados necrófagos.

Os cultistas humanos que deixaram Paris continuaram em constante movimento, escapando e ludibriando as autoridades nos lugares onde escolhiam se instalar. As colônias francesas ao redor do mundo receberam membros da congregação: na América do Norte eles se estabeleceram no Haiti, na Louisiana e partes do Canadá, na África encontraram guarita no Sudão, Argélia e Senegal, enquanto que na Ásia se fixaram na Indochina. Algumas destas células tiveram sucesso, sobretudo aquelas que se beneficiaram da presença de carniçais com quem buscaram firmar aliança. 


Em algum momento os cultistas receberam uma visão, supostamente enviada por Mordiggian apontando uma "Terra Prometida" onde eles poderiam fincar raízes e estabelecer uma fortaleza para professar suas crenças. O local apontado ficava em uma das colônias mais isoladas e remotas do Império Colonial Francês: A Guiana Francesa, na América do Sul. O lugar havia sido ocupado originalmente por dissidentes que escaparam das perseguições em Paris em 1805. Este grupo teve sucesso em se estabelecer nessa região que era tão afastada que permitia a eles se dar ao luxo de atuar quase livremente. As mortes causadas por doenças tropicais eram elevadas e apenas os mais fortes sobreviviam. Nesse ambiente insalubre, a Seita conseguiu prosperar contando com o apoio de membros que empreenderam a transformação definitiva em carniçais. Sendo uma espécie mais resistente do que os humanos, os carniçais podiam lidar mais satisfatoriamente com os inúmeros desafios da colônia.

Por volta de 1865, cultistas vindos de várias partes do mundo começaram a desembarcar na Guiana Francesa após longa e perigosa jornada. Esses peregrinos eram bem recebidos pelo Culto residente que os aceitava entre suas fileiras. Com os recursos do Culto aumentando, os líderes decidiram expandir o que eram meras cabanas e estruturas de madeira em algo mais condizente com o desejo de seu Deus. Eles ambicionavam acima de tudo, construir um Templo para sua divindade, um lugar de acordo com as profecias de que a entidade um dia comandaria milhões. O Culto se inspirou nas visões da Cidadela de Zul-Bha-Sair, na Terra dos Sonhos, para erguer uma estrutura piramidal condizente com suas aspirações estéticas. Eles levaram décadas para construir a estrutura, uma impressionante realização considerando a localidade. No entorno da praça central, surgiram prédios feitos de madeira e pedra onde os cultistas passaram a viver e galerias subterrâneas onde os carniçais habitam em segurança.

Em 1920, a Fortaleza de Mordiggian - nome pelo qual ficou conhecida a cidadela entre os cultistas, estava praticamente concluída. As obras finais se concentravam apenas em melhorar as estruturas habitacionais e capacidade de armazenar suprimentos. Uma das características chave da Fortaleza era um Portal de Oneirologia, criado com um feitiço incrivelmente raro que permitia o trânsito entre o Mundo Desperto e a Terra dos Sonhos. Qualquer pessoa atravessando esse portal emergia na cidadela de Zul-Bha-Sair. O Culto utilizava o portal para viajar facilmente entre dois mundos, garantindo uma fonte de comida e suprimentos que sustentava o Templo em meio às selvas da Guiana Francesa.


Por volta de 1940, aproveitando a situação de grande instabilidade no mundo, o Culto de Mordiggian deu início a um ambicioso plano para expandir o Portal de Oneirologia. O objetivo era realizar uma grande transição, trazendo a Zul-Bha-Sair onírica para o Mundo Desperto e com ela o local onde Mordiggian jazia aprisionado. Com a presença física da entidade no Mundo Desperto, os cultistas esperavam dar o primeiro passo para ganhar poder e influência sobre um mundo mergulhado no Caos da Guerra. A conspiração se baseava em profecias que mencionavam a Segunda Guerra como um tempo de grande perturbação, propício para seus estratagemas frutificarem. Ela teria dado resultado não fosse a intromissão de um grupo de investigadores que conseguiram frustrar os planos. O Portal na Guiana Francesa acabou sendo explodido com dinamite e o Culto se viu seriamente desarticulado depois que seus líderes morreram ou escaparam para a Terra dos Sonhos.

Com a Fortaleza de Mordiggian destruída, os sobreviventes tiveram de buscar outros lugares onde pudessem se esconder, contudo, o Culto jamais se recuperou desse revés. Pequenas células se fixaram no México, Colômbia, Venezuela e Brasil, já que estes lugares atraíram um fluxo de imigrantes no pós-guerra. A França também assistiu o retorno de descendentes dos cultistas que haviam deixado Paris séculos antes. Na década de 1960, aproveitando os Movimentos de contracultura e revoltas ao redor do mundo o Culto de Mordiggian encontrou um solo fértil no Sudeste Asiático. Há boatos não confirmados de que ele se tornou influente no Camboja, com membros da seita ocupando cargos proeminentes no Governo Revolucionário. O Delta Green investigou essas atividades em meados de 1968, acreditando que havia envolvimento de cultistas no Kmer Vermelho. Considerando o genocídio perpetrado naquele país, é possível que os rumores, ao menos em parte, sejam reais.

Nesse novo século, os seguidores de Mordiggian se perguntam o que seu Deus deseja deles e que papel eles irão desempenhar. Há muitas profecias e crenças que compõem sua mórbida doutrina, mas mesmo para eles o futuro parece envolto em mistérios insondáveis.

A seguir, nossa exploração do Culto de Mordiggian prossegue com as medonhas Leis da Necrofilia.              

Nenhum comentário:

Postar um comentário