terça-feira, 12 de março de 2024

As Leis da Necrofagia - Os Rituais Profanos do Culto de Mordiggian

Além do desejo de sobreviver e expandir suas atividades nefastas, o Culto de Mordiggian tem em mente um objetivo a longo prazo: subverter a sociedade a tal ponto que certas coisas consideradas tabu se tornem práticas aceitas. A seita tem como parte de seus rituais mais sagrados práticas consideradas abomináveis pela maioria das sociedades humanas. Canibalismo, necrofilia e a adoração de entidades não-humanas constituem o tripé no qual o Culto se equilibra, princípios difíceis de tolerar. 

Embora tentem promover essas práticas perversas, o Culto jamais foi capaz de superar o senso de estranheza e horror das pessoas diante de tais atitudes. Historicamente eles fizeram poucos avanços exceto entre indivíduos naturalmente degenerados. Mesmo assim, a atuação dos cultistas invariavelmente acabou chamando a atenção das autoridades forçando a evacuação da seita no momento em que ela é descoberta. O Culto acredita que certas práticas, em especial o canibalismo, podem ser impostas aos humanos, sobretudo em tempos de grande perturbação no tecido social. Durante guerras e revoluções, as privações podem forçar as pessoas a atitudes extremas que normalmente elas sequer iriam cogitar. Os Carniçais ligados ao culto observam com interesse quando a fome faz com que tabus consagrados sejam testados até seus limites. Eles observaram com grande atenção os eventos transcorridos nas Guerras Napoleônicas, na Grande Guerra, na Revolução Soviética e na Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, a Guerra em Ruanda e na Bósnia fizeram os carniçais ansiar pela implantação de seu modo de vida.  

A crença deles é que, se uma quantidade suficiente de humanos se voltar para essas práticas, isso irá pavimentar o caminho para o Despertar de Mordiggian. Embora reconheçam que essa tarefa é excepcionalmente difícil, os adeptos se consolam sabendo que a população mundial está em crescimento constante e que tal coisa pode levar a uma crise global de alimentos. Eles teorizam que se a raça humana continuar crescendo irá eventualmente atingir uma massa crítica de densidade populacional que forçará alguns governos a reavaliar dramaticamente seu posicionamento quanto a antropofagia.

De muitas maneiras, a visão do Culto é bastante fatalista. 

Eles sabem que Mordiggian em algum momento deve despertar, mas divergem quanto ao melhor momento para isso acontecer. Tal coisa se dá porque os próprios cultistas não sabem ao certo o que acontecerá quando seu Deus for liberado no mundo. Alguns acreditam que a humanidade eventualmente acabará cedendo aos princípios de sua crença, se não por convicção, ao menos para continuar sobrevivendo. Nesse panorama niilista, os membros da seita esperam se tornar uma casta superior visto que já serviam ao Deus antes dele ascender. Contudo, há aqueles temerosos de que uma vez libertado, Mordiggian se dedique a decretar o fim de toda a vida e transformar o planeta em um enorme cemitério.

Existe também uma profecia antiga muito disseminada entre os membros da seita, de que o Despertar de Mordiggian permitirá aos Carniçais reclamar o mundo da Superfície como seu. Com a humanidade derrotada e colocada de joelhos, os carniçais poderão deixar seus covis e esconderijos para demandar o mundo. Referida como "A Grande Ceia", essa Profecia é aguardada por muitos carniçais que veem nela a derradeira recompensa por servir Mordiggian.   

Morte e necrofagia desempenham papel fundamental nos rituais voltados a Mordiggian. 

Os cultistas acreditam que todo cadáver retém o saber e parte de sua vivência e que este pode ser obtido quando a carne é consumida cerimonialmente. Quanto mais antigo o cadáver, mais profundos os segredos acumulados por ele, algo que os carniçais chamam de "erudição" contida na Carne. Por essa razão, os restos mais antigos ou que pertenceram a indivíduos com reconhecido saber místico são especialmente desejados. 

Os adeptos de Mordiggian não veem a si mesmos como canibais degenerados, mas indivíduos que buscam acumular segredos insondáveis e também comungar espiritualmente com seu Deus. Ao se alimentar de um cadáver devidamente preparado eles acreditam estar partilhando a carne diretamente com Mordiggian e concedendo ao seu Deus uma pequena parcela de segredos que de outra forma se perderiam.

O Ritual de Preparação tem início com a escolha dos cadáveres que serão consumidos pela assembleia. Alguns sacerdotes desenvolvem um faro sensível que supostamente lhes permite identificar os restos humanos mais valiosos pela antiguidade deles. É interessante notar que nenhum corpo "fresco" é consumido, sendo escolhidos apenas cadáveres em que já se iniciou o processo de decomposição. Um cadáver de duas ou três semanas é o ideal, mas outros, muito mais deteriorados, também podem ser selecionados. Sob os templos de Mordiggian há sempre um lugar em que restos humanos são estocados com o intuito de apodrecer corretamente, deixando-os nas condições desejadas. Esses lugares possuem fileiras e mais fileiras de corpos humanos dispostos em racks ou pendurados em ganchos. 

É uma concepção errônea que os carniçais ligados ao Culto devorem seus inimigos assim que são mortos; o mais provável é que eles reclamem os corpos e os levem para seus covis para um período de maturação. Só depois deste é que eles serão devorados.

A preparação dos cadáveres segue com o trabalho de acólitos escolhidos especificamente para essa importante função. Roupas e pertences são removidos, o cadáver é lavado cuidadosamente e os cabelos aparados com tesouras e navalhas. Em seguida ele recebe a aplicação de símbolos arcanos com tinta na pele que o identificam como Sacrifícios à Mordiggian. Esse tratamento costuma ser dado aos restos de indivíduos que os sacerdotes consideram depositários de segredos valiosos. Outras pessoas, em especial cadáveres de jovens ou crianças, são preparados com menos cerimônia podendo ser seccionados em postas e fatiados como aperitivos para a ceia principal. 

Nas celebrações os cadáveres são dispostos em altares de pedra cinzenta como granito ou ardósia e apresentados diante da congregação. O templo é geralmente uma câmara subterrânea parcialmente iluminada por velas feitas de gordura humana e pavio de cabelos. O Sacerdote veste uma espécie de avental cerimonial feito de pele humana curtida e um diadema de ossos. Os participantes geralmente se apresentam despidos, mas em alguns casos importantes vestem ornamentos feitos de osso, tendão e pele ressecada.

Depois dos cadáveres serem cerimonialmente encomendados a Mordiggian, o Sacerdote que preside a cerimônia convida os participantes a tomar parte no momento mais importante - a Comunhão. As oferendas são devoradas por inteiro, por isso o ritual demanda um número mínimo de participantes. Os carniçais tem a primazia, em seguida aqueles que estão em processo de transformação e finalmente os humanos, todos obedecendo um chamamento do sacerdote. 

Não é permitido o uso de talheres e utensílios, "a carne só é tocada pelas mãos e bocas". O ideal é que no fim toda carne seja consumida: músculos, órgãos, fluidos e cartilagem. Isso pode demorar algumas horas dependendo da quantidade de sacrifícios e de fiéis presentes. O crânio e alguns ossos maiores, uma vez limpos são recolhidos e usados como adorno nas paredes, altares e colunas do templo formando mosaicos intrincados. 

Não há palavras capazes de descrever o horror que é testemunhar os rituais aviltantes do Culto de Mordiggian. Os comensais descem vorazmente sobre os restos promovendo um espetáculo dantesco de horror antropófago. Garras rasgam a carne tenra e quebram os ossos, presas despedaçam os músculos enquanto bocas ávidas sorvem ruidosamente o tutano. Logo, nada resta do que um dia foram pessoas.     

Além desse ritual sagrado, há uma infinidade de outras cerimônias igualmente repulsivas que invariavelmente culminam em necrofagia. Antes os cadáveres podem ser sujeitos a outras formas de depredação incluindo, mas não se limitando, a mutilação, esfolamento e necrofilia. Ironicamente, embora sejam sujeitos a esses horrores, os cadáveres são considerados instrumentos pelo qual se dá a comunhão com Mordiggian, são, portanto, manipulados com imenso respeito, quase reverência.

Em datas propícias um avatar de Mordiggian pode ser invocado para presidir rituais especialmente significativos. Nestas ocasiões, a congregação se reúne em peso, atraindo cultistas de outras localidades que viajam para participar da cerimônia. Um banquete é preparado com esmero e fausto, por vezes esgotando os dispensários de carne humana, reduzindo as reservas, deixando-as perigosamente baixas. Isso no entanto, não preocupa aos cultistas que veem nesses rituais especiais a oportunidade de vislumbrar, ainda que brevemente um aspecto de seu Deus. Quando o avatar se manifesta é tradicional oferecer ao menos um dos membros da congregação como sacrifício, uma grande honra para o escolhido.

Quando um aspecto de Mordiggian se faz presente ocorre uma grande reação emocional; os cultistas se veem diante de seu Deus afinal de contas. Choro, gritos e histeria dominam a todos. O Deus come primeiro, se alimentando de todos os corpos que desejar antes de partir. Tudo aquilo que restou é considerado abençoado pela congregação, uma demonstração de generosidade para com o seu rebanho.  A conclusão apoteótica dessa festividade é marcada por cantoria, dança e um violento bacanal entre os presentes.

Os cultistas de Mordiggian possuem vasta compreensão do funcionamento do Mundo dos Sonhos e sabem como navegar através dele. Com carniçais ensinando as nuances do sonhar, não é estranho que muitos humanos desenvolvam familiaridade com o saber onírico e explorem essa dimensão. Não é estranho que cultistas empreendam peregrinações até a cidadela de Zul-Bha-Sair no obscuro Continente de Zothique. Muitos deles passam anos imersos em seus sonhos vivendo na cidade e conhecendo os meandros da adoração a Mordiggian, não é estranho também que alguns optem por  viver no Mundo dos Sonhos para sempre.

A essa altura, talvez seja bom falar sobre Mordiggian e seus avatares. Eles será o foco da terceira e última parte dessa série.    

2 comentários:

  1. Cara acabei de traduzir o Conto de Asthon Smith, The Charnel God, que faz parte de suas histórias de Zothique, que fala exatamente de Mordiggian. Zothique é o último continente da Terra em um futuro muito distante quando a magia e as criaturas malignas retornaram ao mundo.

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    1. Opa legal!

      João, existe uma dupla interpretação de onde fica Zothique.

      O Ashton Smith a posicionou num futuro distante e está é a versão mais correta, já a Pagan Press que usou o mito como pano de fundo de uma campanha de RPG, Zothique e Zul-bha-Sair ficariam na Terra do Sonho, as Dreamlands.

      Eu preferi usar essa interpretação como referência, visto que o artigo é voltado mais para quem quer usar essas informações para RPG.

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