Cinema Tentacular - O Enigma do Outro Mundo

Lembro como se fosse hoje, a primeira vez que assisti "O Enigma do Outro Mundo" de John Carpenter na televisão. Foi no Supercine, da Rede Globo - que desde que o mundo é mundo é exibido sábado à noite.

Eu devia ter uns 9 anos de idade, e meu pai avisou que eu não tinha idade para ver esse tipo de filme. Mas isso não iria me impedir! Eu estava ansioso por assistir esse filme. Meu pai deu de ombros e avisou: "Não quero você se queixando depois que não consegue dormir"!

"Não vou!" prometi decidido.

Quando o filme terminou, é claro, custei para pegar no sono, estava agitado e apavorado demais. Eu tinha a impressão que "A Coisa" entraria à qualquer momento pela janela do meu quarto ou escorreria para fora da porta do armário.

Quem é fã do cinema de horror se recorda perfeitamente a ocasião em que assistiu aos seus filmes favoritos pela primeira vez. Não consigo esquecer aqueles que marcaram a minha infância com um misto de temor e fascínio: "O Iluminado", "Hellraiser" (que eu assisti entrando escondido no cinema quando era moleque!), "O Exorcista", "Poltergeist - o Fenômeno" e é claro, "O Enigma do Outro Mundo".

Com o passar do tempo quem é adepto desse gênero de filme desenvolve uma certa resistência a cenas chocantes, ficamos meio blindados e não são muitas as imagens capazes de nos impressionar. Mas quando somos crianças, ainda não temos o discernimento de relevar aquelas imagens grotescas e precisamos repetir várias vezes como um mantra as palavras "é só um filme, é só um filme!"

Sim, "Enigma do Outro Mundo" causou uma grande impressão em mim. Para ser sincero, me deixou aterrorizado.

De lá para cá, assisti esse filme inúmeras vezes, é um dos meus favoritos. Tenho ele em fita, DVD, Blu-ray. Sem exagero, acho que sou plenamente capaz de recitar os principais diálogos dos personagens sem errar uma vírgula. Sei de cor e salteado os momentos em que a Coisa vai atacar, qual a ordem de mortes e como cada personagem é despachado pelo monstro. Muita gente aponta Alien como o filme definitivo a respeito de monstros alienígenas. Na minha opinião, Alien têm seus méritos, mas come poeira quando comparado a Enigma do Outro Mundo, de longe o melhor filme de John Carpenter (um diretor com muitos altos e baixos em sua longa carreira).

"O Enigma do Outro Mundo" (The Thing) é um dos mais interessantes filmes de horror/ficção já feitos - rápido, inteligente e empolgante do início ao fim. Ele deveria servir de referência para qualquer cineasta iniciante interessado em se aventurar na difícil arte de causar medo. Lançado em 1982, ainda é imbatível quando evoca o horror causado pelo isolamento e paranóia.

Se você que está lendo essa resenha não assistiu ou nunca ouviu falar desse filme, faça um favor a si mesmo e procure por ele em alguma locadora. Ele é simplesmente um clássico que merece ser visto.

Eis aqui o um resumo que não entrega demais. O filme se passa inteiramente na Antartida e seu foco é uma Estação de Pesquisas norte-americana e seus peculiares habitantes, um grupo de cientistas, vivendo em completo isolamento. Um dia, um helicóptero pilotado por dois noruegueses aparentemente enlouquecidos sobrevoa o campo. Eles estão caçando um cão husky siberiano em fuga e dispostos a tudo para matar o animal. Os noruegueses é que acabam mortos e o cão, adotado pela colônia. É aí que as coisas ficam feias!

Não demora até ficar claro que o "cachorro" é na verdade uma forma de vida alienígena capaz de assumir com perfeição a aparência de outros organismos. Em outras palavras, ele precisa apenas se infiltrar entre suas vítimas para assimilar a forma de cada uma delas e tomar seu lugar. O grupo de cientistas, liderados pelo piloto de helicóptero R.J. Mac Ready (Kurt Russell na melhor atuação de sua carreira), precisa lutar contra essa ameaça tenebrosa e a paranóia de não saber quem é humano e quem é, na verdade, a coisa disfarçada.

Esse conflito e a interação do grupo, separa "Enigma" dos filmes de terror/ficção convencionais. A tensão é palpável e o comportamento dos personagens totalmente condizente com a desconfiança que cada um alimenta em relação aos seus colegas. A principal pergunta do filme é "em quem se pode confiar?" e a resposta mais honesta no final das contas é "ninguém".

A sensação de pesadelo nihilista permeia todo o filme, é como se o grupo tivesse sido colhido por um inferno que vai se fechando sobre cada um ameaçando devorá-los a todos. Em uma das melhores sequências do filme, os membros da estação realizam um teste de sangue capaz de descobrir quem é a criatura e quem é humano. A cena é de tirar o fôlego.

A origem do monstro não é explicada em detalhes. Tudo que se sabe é que se trata de uma entidade extraterrestre cuja nave espacial caiu em nosso planeta há milhares de anos. A Coisa tentou escapar, mas ficou presa no gelo, tendo sido encontrada congelada pelos noruegueses que a libertaram de sua prisão natural. O monstro não é um animal no sentido da palavra, mas uma forma de vida composta de milhares de indivíduos, cada célula uma criatura plena, capaz de se adaptar para sobreviver.

Com roteiro baseado no famoso conto "Who Goes There?" de John W. Campbell Jr, a estória se passava originalmente na década de 30. Ela já foi adaptada anteriormente para o cinema em 1951 por Howard Hawks em um filme preto e branco intitulado "O Monstro do Ártico" (The Thing from another World). O roteiro que deu origem a "Enigma do Outro Mundo" investe em dois elementos essenciais em relação ao conto e ao filme anterior: Paranóia e a natureza medonha do monstro.

Os efeitos especiais de Rob Bottin (um verdadeiro mestre no ofício) ainda hoje impressionam. Usando técnicas de animação stop motion e truques de cena, os efeitos conseguem a proeza de causar mais medo e surpresa que os efeitos digitais atuais. A criatura está sempre mudando de forma e alterando a sua aparência incorporando medonhas características do que parecem ser outros seres alienígenas com os quais ela teve contato. Complementando os diálogos cortantes e as cenas gélidas, a trilha sonora do genial Ennio Morricone soa fantasmagórica, realçando o isolamento e a sensação de medo constante. É impossível não ficar nervoso com a batida: "tum, tum-tum, tum, tum-tum" que se repete no início e fim do filme.

O fato de contar com um elenco inteiramente masculino (é isso aí, só cuecas!) e de ter um final provocativo (nem um pouco feliz!), são frequentemente apontados como as razões principais para o filme ter sido um fracasso retumbante de bilheteria. Na verdade, "Enigma do Outro Mundo" foge do padrão convencional, é algo que Hollywood não está acostumada a digerir. Além disso, Enigma foi lançado quase simultaneamente ao E.T de Steven Spielberg, outro filme centrado em vida alienígena. Na época, o público parecia muito mais interessado em seres espaciais que vinham em paz, de modo que resolveu ignorar solenemente a obra prima de Carpenter.

Mas apesar de seu início modesto, O Enigma do Outro Mundo, aos poucos conseguiu atingir o patamar de clássico, cultuado por uma legião de fãs que continua crescendo. Prova disso é que a passagem do tempo não conseguiu envelhecer o filme que permanece tão assustador quanto na época em que foi lançado.

Com o lançamento do novo filme "A Coisa" (um prequel que narra os acontecimentos no campo norueguês e cuja resenha está praticamente pronta), é bem provável que "O Enigma" ganhe um novo fôlego e aumente ainda mais o número de admiradores.

Muito justo, como eu disse, filmes assim merecem ser vistos.

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