quinta-feira, 22 de julho de 2010

Targets of Opportunity - Resenha do lançamento para Delta Green

Por José Luiz Ferreira Cardoso - Tzimisce


Targets of Opportunity é o último suplemento lançado para a clássica série Delta Green de Call of Cthulhu, ambientada em tempos modernos. Como os demais livros da linha (Countdown e Eyes Only), o livro é uma coleção de organizações, agências, seitas e facções envolvendo o Mythos em uma ambientação contemporânea (por vezes reinterpretando o papel dado a eles originalmente por Lovecraft).
Essa resenha é dividida pelos capítulos do livro. Tentei ser sucinto, mas sinto ter falhado no objetivo. É difícil falar de forma breve de livros do quilate deste (sim, é tão bom assim).

Black Cod Island

No primeiro capítulo somos apresentados a um povo nativo americano que vive em ilhas no extremo sul do Alasca, fronteira com o estado da British Columbia (Canadá). Trata-se do Black Cod People – algo como “Povo do Bacalhau Escuro” – que seriam os últimos remanescentes de nativos originários da região. Já dá para notar que temos aqui toda uma nova “Innsmouth” para os investigadores se divertirem. A diferença é que somos apresentados a uma cultura indígena diligentemente integrada e dedicada à adoração dos Deep Ones (e ao contrário de Innsmouth, bem mais sutil e inteligente em se esconder do resto do mundo). De fato, o Black Cod People é de certa forma superior aos híbridos de Innsmouth, dado os séculos de miscigenação com os horrores das profundezas.

O arquipélago local – que envolve as ilhas em torno da grande Prince of Wales Island – é totalmente descrito, com as cidades, rotas de viagens, clima, serviços e demais informações necessárias para um cenário. Tudo bem mastigado para os Keepers. A dedicação dos autores aos detalhes é ainda maior quando a saúde física dos nativos da Black Cod Island é desenvolvida (afinal, trata-se de uma colônia de Deep Ones). As mutações mais leves dos híbridos – as únicas que os nativos deixam ser vistas – são confundidas com disfunções genéticas (muito bem descritas, uma delas inclusive sendo real!).

O grande destaque do capítulo é que ganhamos finalmente o “tratamento Delta Green” dos Deep Ones (ou seja, a visão dos autores dessa lesser independent race). O resultado não decepciona e explica de forma bem interessante o motivo pelo qual os Deeps Ones podem cruzar e gerar filhos com humanos. Uma opção dos autores da linha à qual sempre considerei mais fiel ao espírito dos contos de Lovecraft (especialmente os últimos) é o tratamente de magia como “ciência hiperdimensional” (ou seja, conhecimento sobre o universo além da capacidade humana), e temos mais dele aqui. O resultado é trazer um pouco de frescor a uma das criaturas provavelmente mais batidas do Mythos.

O capítulo fecha com alguns casos que podem levar ao Black Cod People, além de novos NPCs (com direito inclusive a ilustrações do blog de um destes NPCs).

Disciples of the Worm

Esse novo culto é um exemplo arrepiante de como criar um cenário de “body horror” envolvendo os Mythos, além de lidar com a interessante (e perturbadora) questão de até onde o homem está disposto a ir para assegurar a imortalidade.

Os Disciples of the Worm (ou “Discípulos do Verme”) são uma macabra seita mencionada pela primeira vez no tomo De Vermis Mysteriis, escrito por Ludvig Prinn, que os descreve como um culto de feiticeiros sarracenos que alcançaram a imortalidade permitindo que demônios possuíssem seu corpo. A verdade é bem pior, envolvendo ritos ocultos de sodomia e a comunhão com uma raça de parasitas hiperdimensionais.

Como é tradição, os autores fornecem uma rica e detalhada história dos fundadores do culto, desde sua origem como embaixadores e mercadores muçulmanos, seu encontro com uma ordem tibetana monástica e as terríves consequências desse acontecimento. O papel da ordem ao longo da história e sua conexão com o tráfico mundial de entorpecentes (os membros da ordem precisam de grandes quantidades de drogas para controlarem as horríveis dores porque passam) também é detalhada.


O capítulo traz ganchos, propostas de cenários, novas magias e tomos, além de NPCs e criaturas. Campanhas inteiras podem ser montadas com base no culto e seus associados (dentre eles uma corporação farmacêutica) – provavelmente um dos adversários mais horripilantes e repugnantes de se enfrentar.

DeMonte Clan

Uma ótima mistura é feita aqui: ghouls e vodu. Na verdade sobre como um clã francês de ghouls exilados, com base no Haiti, que após a revolução dos escravos foge para Nova Orleans, usa o vodu como uma forma de manipulação. Outra diferença é que esses ghouls em particular se consideram uma espécie de “nobreza” da raça. Nada de catacumbas frias, buracos lamacentos e jornadas místicas para as Dreamlands – os ghouls DeMonte se vêem como aristocratas e usam de magia para se ocultarem entre humanos.

Os dois destaques do capítulo são a longa luta entre os DeMonte e a Delta Green (quem conhece a personagem Agent Nancy do livro básico do Delta Green vai lembrar), além dos detalhes envolvendo o furacão Katrina em Nova Orleans. O material serve como um primoroso exemplo de como usar um evento real para criar cenários. O nível de detalhe envolvendo a tempestade é incrível (tem até uma timeline!).

O capítulo traz o usual: novos tomos, magias e artefatos. Há também fichas dos principais membros do Clã DeMonte, além da ficha de alguns agentes da Delta Green que se envolveram com os ghouls.

M-EPIC

Aqui somos apresentados aos “irmãos” canadenses da Delta Green. Apesar de não possuir qualquer relação com a conspiração norte-americana, essa divisão secreta do governo canadense (que se esconde sob o código de “departamento M” da “Environmental Policy Impact Comission” – ou M-EPIC) possui o mesmo foco: investigações e caça a eventos e ameaças sobrenaturais. Na verdade, a M-EPIC está em campo há mais tempo que qualquer outras das agências de inteligência sobrenatural da atualidade.

O capítulo fornece mais uma forma de se unir um grupo de investigadores, com uma base operacional, recursos e uma justificativa para peitar o Mythos. De fato, toda a M-EPIC serve como um bom exemplo de como construir sua agência de caça ao sobrentural. Apesar de nem longe ser tão interessante quanto a Delta Green, a M-EPIC cumpre bem esse objetivo. Dada sua localização, boa parte da história da agência tem sido na luta contra os cultos de Ithaqua, em suas várias formas. Todavia, o capítulo traz interessantes seções onde, sem dar todas as cartas, são mencionados diversos outros casos sobrenaturais. Isso torna a leitura bem divertida para quem gosta de ir identificando criaturas e fatos do Cthulhu Mythos.

Como é tradição, há uma extensa e detalhada descrição da hierarquia, procedimentos e modus operandi da M-EPIC. Temos a relação da agência com as demais conspirações do universo Delta Green (com direito a um gancho envolvendo a agência britânica PISCES e os Insetos de Shaggai). Há também novos NPCs, com ricos backgrounds – como um serial-killer que viaja no tempo – e referências a Mythos pouco vistos (pelo menos por mim) em livros de RPG, como Tsathogga e a alquimia necromântica do romance O Caso de Charles Dexter Ward. O capítulo fecha com a ficha esquemática da agência, contendo as perícias ocupacionais típicas e um exemplo de agente pronto para se jogar.

The Cult of Transcedence

Finalmente chegamos ao grande destaque de Targets of Opportunity – o famoso Cult of Transcendence, uma seita de proporções mundiais dedicada a Nyarlathotep, cujos membros usam o poder do medo, ódio, ganância e luxúria para alimentar e acelerar a própria autodestruição da humanidade.

Prometido desde o lançamento do primeiro livro da linha, havia uma grande expectativa sobre esse material. E não é por menos, pois o Cult foi desenvolvido por Greg Stolze (autor de RPGs como Unknown Armies e Reign), enquanto que o capítulo do Targets conta com a participação de Adam Scott Glancy (da linha Delta Green) e daquele que é considerado o mestre de “todas as coisas Lovecraft” – o renomado Kenneth Hite (Rastro de Cthulhu e Day After Ragnarok).

Qual é o resultado deste gestalt criativo?

A princípio, pode-se dizer que o Cult of Transcendence é encontro entre Call of Cthulhu e os Illuminati. Todas as figurinhas marcadas estão aí: Cruzadas, Cavaleiros Templários, Maçons, Rosacruzes, aliens e abduções (aos que conhecem Delta Green: nada a ver com os Mi-Go), conspirações dentre conspirações etc.

O início da grande seita se dá com a descoberta por cruzados no Egito do famigerado P’Dwahr M’Ankanon Nyarlatathotep – um tomo que já era antigo quando “descoberto” pela primeira vez pelos magi da Hiperbórea. A história do Cult é praticamente a história das manipulações, derrotas e “iluminações” sofridas pelos seus mestres nas mãos deste macabro artefato (que, por sua vez, é nada mais do que mais uma das máscaras do Crawling Chaos). E é nesse ponto que os autores inserem o twist que torna o Cult of Transcendence tão interessante e diferente das demais seita de dominação mundial descritas por aí: os membros do Cult são tão vítimas de Nyarlathotep quanto os pobres mortais que caem em suas redes de influência. Fundado originalmente com objetivo de angariar poder temporal das grandes casas nobres da Europa através de recursos sobrenaturais, o Cult of Transcendence passa a quase totalidade da sua existência sofrendo derrotas e retrocessos para cada mísero avanço que obtém – até o dia que os seus mestres compreendem a futilidade de se tentar dominar a humanidade e, por consequência, a futilidade do ser humano “no grande esquema das coisas”. A partir daí os mestres da conspiração se dedicam em “superar” a humanidade, num processo de horror e alienação que culmina com sua ascensão – através de Nyarlathotep – para a Corte de Azathoth (daí o nome da seita).

Como sempre, são os detalhes que impressionam. Além da longa história do Cult e sua interação com o Mythos, temos também a sua extensa e piramidesca organização. A conspiração puxa sua estrutura da Igreja Católica (afinal, foi fundada por cavaleiros) e se divide em priorados, cada um dedicado a uma faceta da “natureza” humana por meio do qual o Cult canaliza sua força para encontrrar novos candidatos capazes de “transcender”. Os priorados são quatro: medo, ódio, ganância e carne (luxúria, gula etc). A filosofia pervertida do Cult alimenta essas emoções, até que a vítima, de tão distorcida e consumida, torna-se para todos os efeitos um completo sociopata – bem no espírito do velho Casto do conto de Lovecraft (a clássica citação: “The time would be easy to know, for then mankind would have become as the Great Old Ones; free and wild and beyond good and evil, with laws and morals thrown aside and all men shouting and killing and revelling in joy”). De fato, o Cult é uma forma moderna e muita bem sacada de usar este gancho sem apelar para apocalipses e outros usos descarados de sobrenatural.

Em seguida somos apresentados aos líderes do Culto: os temidos Transcended Masters, insanos e inescrutáveis, mais próximos dos Outer Gods do que de humanos; os Bishops, verdadeiros responsáveis pelo comando geral do Cult (e em tentar interpretar os comandos sem sentido dos Masters); e os Acolytes, que anseiam em tomar o lugar de seus superiores. Todos são detalhados com fichas e histórias (uns 15 personagens ao todo). Os Transcended Masters em si são cada um terror a parte (a sua mera presença já interfere com o cérebro humano de maneiras perturbadoras, mas interessantes). A hierarquia de poder do Cult supõe um conjunto de rituais de “separação” da humanidade, sendo que os Masters estão literalmente a um passo da Corte de Azathoth. Inclusive nem habitam mais totalmente o espaço tridimensional da Terra, sendo sua presença perceptível apenas na base da seita, em Estocolmo – a famigerada Vagnoptus Manor, construída por um membro distante da família real sueca e nomeada em honra do tutor (e feiticeiro) de um antigo rei daquele país. Os autores falam que “A Casa de Estocolmo” faz certos lugares, como os campos de Auschwitz, parecerem incrivelmente agradáveis. A mansão, através de sua adorável arquitetura não-euclidiana, representa uma ligação física com a Corte de Azathoth, que pode ser contemplada por qualquer investigador azarado o suficiente para olhar por certas janelas do lugar (Sanity 1d20/1d100 alguém?).

O capítulo, já extenso a essa altura, passa a detalhar os quatro priorados e as diversdas organizações “de frente”, secretamente apoiadas e financiadas (às vezes uma contra as outras) pelo Cult of Transcendence. Dado o tamanho descomunal da conspiração, temos também conselhos de como usar o Cult como um antagonista, de como trabalhar com a sua estrutura em degraus de forma a alimentar o clímax da campanha (e não se intimidar com esse objetivo). Há novas criaturas, horrendos ritos, magias (principalmente as empregadas pelos Transcended Masters) e artefatos (em especial o P’Dwahr M’Ankanon Nyarlatathotep).

Como foi escrito ao longo de mais de dez anos, o Cult of Transcendence é uma leitura de certa forma polarizada. Há trechos em que a descrição visceral (principalmente envolvendo os Transcended Masters, a Vagnoptus Manor e seus grotescos guardiões) beira para o trash. Contudo, o autor Greg Stolze confessa que esse era um objetivo – o Cult deve ser chocante. Por outro lado, a história da seita, as manipulações sutis de Nyarlathotep e a rica história de seus personagens e sub-ordens está no mesmo nível de qualidade do que se espera da equipe de Delta Green. O capítulo não é fácil de digerir, há simplesmente informação demais, então é recomendado que o Keeper vá aos poucos. A ameaça do Cult of Transcendence e a possibilidade narrativa que ele apresenta – uma porta para a humanidade literalmente se tornar como os Great Old Ones – são trunfos e vão render ótimos momentos para fãs de Call of Cthulhu.

Os Apêndices

Primeiro temos novas regras de combate (called shots, martial arts, burst fire, taking cover, supressing fire e disabling wounds). A última talvez seja a mais radical: ela dá a qualquer investigador que perca mais da metade dos seus pontos de vida em único golpe a escolha de reduzir esse dano novamente pela metade com um teste Luck. Em contrapartida, o personagem recebe um “ferimento debilitante” específico, com risco de ser permanente (perda de membros, lesões em músculos e tendões etc.). A mecânica em si é bem simples e não utiliza tabelas de críticos ou coisas do gênero. A opção fica sempre por conta do investigador (e parece a princípio um “presente de grego”, sendo realmente uma opção apenas quando a vida do personagem está na linha). As regras de called shots igualmente não usam tabelas. Por fim, as regras de artes marciais fornecem pequenos benefícios no uso de certas perícias belícas.

Outro apêndice lida com uma nova mecânica de insanidade: stress disorders. Trata-se de uma opção para casos de temporary insanity. Basicamente, ao invés de adquirir a insanidade temporária, o investigador adquire uma stress disorder. Estas possuem duração indefinida, mas são bem mais brandas que as possíveis insanidades temporárias contidas no livro básico. No final, este apêndice traz uma forma, digamos assim, menos “romanceada” e mais tradicional dos traumas mentais típicos sofridos por agentes e soldados (afinal, muitas das insanidades do livro básico batem mais com o “estilo Edgar Allan Poe” e lovecraftiano do fim do século XIX e início do XX).

O terceiro apêndice introduz duas novas e interessantes mecânicas: relationships e flashbacks. Ambas são adquiridas com pontos distribuídos na criação do personagem. Relationships funcionam como perícias e determinam a relação do investigador com determinados NPCs. Esses aliados podem ser usados como contatos, uma forma de segurar a sanidade contra o Mythos (sim galera, uma mecânica para “um ombro amigo”) ou de conseguir acesso a determinadas informações. Há riscos ao se fazer um teste de relationship e ocasionalmente o agente pode ter que se dedicar a ajudar o NPC ou corrigir alguma burrada feita na última vez em que lhe pediu ajuda. Os flashbacks, por sua vez, são a mecânica mais de “vanguarda” que já vi ser aplicada a Call of Cthulhu. Basicamente, eles dão ao investigador o direito a criar em pleno jogo um caso passado onde houve um encontro com algum ser do Mythos. O propósito? Ganhar Cthulhu Mythos (5% caso o investigador não tenha perícia, ou 1% caso contrário) e – mais importante – adquirir uma pista útil para a presente investigação (a mecânica de flashback foi, ao meu ver, a maneira dos rapazes da Pagan Publishing lidarem com o problema do “failed investigation check”, outra solução é a famoso sistema GUMSHOE do Rastro de Cthulhu). Há, obviamente, consequências: a perda de sanidade, o fato de cada investigador ter apenas um flashback (é difícil adquirir novos) e o limite de no máximo um flashback por cenário (esse limite é para o grupo todo, não por investigador). Como em todas as demais mecâncias introduzidas aqui, os autores aconselham sempre o uso do bom senso.

O quarto apêndice é um ensaio sobre DNA e sua coleta em análises forenses. Um achado extremamente útil para campanhas modernas de Call of Cthulhu (ou qualquer outro RPG, uma vez que o texto é totalmente system free).

Outra Obra-Prima

Targets of Opportunity pode ser considerado a conclusão com chave de ouro da série Delta Green (ao trazer o Cult of Transcedence, ele praticamente fecha todas as referências apresentadas no livro básico da série). O livro é em preto-e-branco e a primeira impressão (ainda a ser quando desta resenha) deve ser em capa-dura. A arte interna é na maioria das vezes feita por computador e apesar de não soltar aos olhos, acompanha de forma apropriada o clima do livro (as ilustrações que abrem os capítulos então são ótimas, como a perturbadora arte do Disciples of the Worm). Se o livro tem um defeito, este seria a ausência de um cenário (ao contrários dos demais). Mas frente aos apêndices e a joias como o Cult, este é com toda certeza uma crítica menor.

Minha dica: agarre essa belezinha se puder sem hesitação!
Abraços não-euclidianos.

2 comentários:

  1. Meu inglês é fraco. Não conheço muito de Delta Green. Mas a resenha ficou tão boa que eu desejo este livro!

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  2. A resenha ficou ótima.

    Tzi, considere-se intimado a escrever mais aqui para o Blog. ;-)

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