sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Conto Tentacular: O Dilacerador de Véus por Ramsey Campbell (conclusão)

Continuação do conto "O Dilacerador de Véus"



O DILACERADOR DOS VÉUS
(The Render of Veils) 

por Ramsey Campbell 

Traduzido por Arthur Ferreira Jr. 
Blog Domínio Publicano (cedido gentilmente)


*     *     *

Kevin Gillson pôde apenas olhar fixamente. O objeto não era amorfo, mas era tão complexo, que os olhos não conseguiam reconhecer forma alguma descritível. Haviam hemisférios e metal reluzente, acoplados por longos bastões de plástico. Os bastões eram de uma cor cinzenta e plana, de modo que ele não conseguia perceber quais deles estavam mamis próximos que os outros; mesclavam-se numa massa plana, a partir da qual saiam como protusões os cilindros individuais. Ao observar a coisa, teve uma curiosa sensação de que olhos brilhavam por entre os bastões; mas de onde quer que fitasse o construto, enxergava apenas os espaços entre eles. A parte mais estranha era que ele sentia como se aquela fosse a imagem de algo vivo – algo de uma dimensão onde tal exemplo de geometria anormal poderia viver. Ao virar-se para falar com Fisher, enxergou, pelo canto do olho, que a coisa havia se expandido e ocupado quase toda aquela metade da sala – mas quando girou de volta, a imagem, é claro, estava do mesmo tamanho que antes. Pelo menos ele pensava que sim – mas Gillson não tinha nem mesmo certeza de quão alta ela estava antes.

"Está tendo ilusões de tamanho, então?” Fisher notou seu embaraço. "Isto porque é apenas uma extensão tridimensional da coisa real – é claro que, em sua própria dimensão, não se parece dessa forma.”

"Mas o que é isso?” perguntou Gillson com impaciência.

"Isso,” disse Fisher, "é uma imagem de Daoloth – o Dilacerador dos Véus.

Ele foi até a mesa onde havia colocado a bandeja. Servindo o café, passou a caneca para Gillson, que então comentou:

"Você terá de me explicar sobre isso já já, mas antes, pensei em algo enquanto você estava na cozinha. Eu o teria mencionado antes, mas é que não gosto de conversar através de aposentos diferentes. É bastante conveniente dizermos que o que enxergamos está distorcido – digamos que esta mesa não é retangular, nem plana. Mas quando eu a toco, sinto uma superfície retangular e plana – como você explica isto?”

"Uma simples alucinação tátil,” explicou Fisher. "E é por isto que eu disse que poderia ser perigoso. Sabe, você não está sentindo de fato nenhuma superfície plana e retangular – mas já que a enxerga dessa forma, sua mente o ilude de modo a pensar que está sentindo a contraparte de sua visão. Apenas de vez em quando, eu penso – por que a mente iria estabelecer esse sistema de ilusão? Será que se nos enxergarmos como nós realmente somos, seria demais para nós?”

"Olha só, você quer enxergar as coisas sem distorção,” disse Gillson, "e eu também. Não tente me fazer voltar atrás agora, pelo amor de Deus, logo agora que você conseguiu me deixar interessado. Você chamou isso de Daoloth – o que significa?”

"Bem, vou ter que sair pelo que pode parecer tangencial”, Fisher pediu desculpas. "Você estava observando aquela coisa em formato de ovo ali, repetidas vezes, desde que entrou – é que leu sobre elas no Necronomicon. Lembra-se daquelas referências aos Cristalizadores de Sonho? Este é um deles – o aparelho que nos projeta enquanto estamos adormecidos, para outras dimensões. Leva um certo tempo pra nos acostumarmos a ele, mas com o passar de alguns anos, tenho conseguido entrar em quase todas as dimensões, e a um nível tão alto quanto a vigésima-quinta dimensão. Se pelo menos eu pudesse transmitir em palavras as sensações desse último plano, onde é o espaço que existe, e a matéria não pode ter existência! Não me pergunte onde achei o cristalizador, por falar nisso – até que eu tenha certeza de que seu guardião não me seguirá, jamais devo falar disso. Mas deixemos isso de lado.

"Depois de ter lido nas Revelações de Glaaki sobre como posso provar esta minha ideia, determinei ver por mim mesmo o que eu deveria invocar. Aconteceu por tentativa e erro; mas finalmente, certa noite, encontrei-me materializado num lugar que nunca estive antes. Haviam paredes e colunas tão altas que eu não conseguia enxergar onde elas terminavam, e no meio do chão havia uma grande fissura que corria de parede a parede, irregular, como se resultado de um terremoto. Conforme eu a observava, os contornos da rachadura pareciam dissolver-se e ficar imprecisos, e algo dela saiu. Eu disse a você que a imagem parece bastante diferente em sua própria dimensão – bem, eu vi sua contraparte viva, e você vai entender se eu não tiver de descrevê-la. Ficou ali vibrando por um momento, e então começou a expandir. Teria me engolido em poucos minutos, mas eu não esperei por isso. Corri por entre as colunas.

"Não fui muito longe, até que um grupo de homens ficou diante de mim. Estavam vestidos em robes e capuzes metálicos, e carregavam pequenas imagens daquilo que eu havia visto, de modo que percebi que eram seus sacerdotes. O primeiro perguntou-me a razão pela qual eu havia entrado em seu mundo, e eu expliquei que esperava poder convocar o auxílio de Daoloth para enxergar além dos véus. Eles olharam um para o outro, e então um deles me passou a imagem que estava carregando. "Você irá precisar disso,” ele me falou. "Vai servir como uma ligação, e você não vai conseguir encontrar nenhum igual em seu mundo.” E então a cena inteira desapareceu, e achei-me deitado na cama – mas estava segurando essa imagem que você vê aí.”

"Mas você não chegou a me dizer – ” implorou Gillson.

"Já vou chegar nesse ponto. Você sabe agora como eu consegui essa imagem. Porém, está imaginando o que isso tem a ver com o experimento de hoje, e o que diabos seria Daoloth?

"Daoloth é uma divindade – uma divindade alienígena. Foi venerado na Atlântida, onde era o deus dos astrólogos. Presumo que foi lá que seu modo de veneração foi estabelecido: ele jamais deve ser visto, pois o olho tenta seguir as convoluções de sua forma, e isto provoca insanidade. É por isto que não deve haver luz quando ele é invocado – quando o chamarmos, mais tarde, teremos de apagar todas as luzes. Mesmo aquilo ali é uma réplica deliberadamente imprecisa da entidade; tem de ser assim.

"Quanto a razão pela qual invocaremos Daoloth, em Yuggoth e Tond, ele é conhecido como o Dilacerador dos Véus, e este título tem bastante significado. Lá, seus sacerdotes podem enxergar não só o passado e o futuro – eles podem enxergar como os objetos prolongam-se até a última dimensão. É por isto que se o invocarmos e o contermos no Pentáculo dos Planos, poderemos ter o auxílio dele para eliminar a distorção. E isto é tudo que posso explicar agora. Já são quase 2:30 e devemos estar prontos às 2:45, que é quando as aberturas entrarão em alinhamento... É claro, se você acha que não está pronto, por favor me diga agora. Mas não quero ter que arrumar tudo pra nada.”

"Eu vou ficar,” disse-lhe Gillson, mas ao olhar de relance para a imagem de Daoloth, sentiu-se um tanto hesitante.

"Tudo bem. Me ajude aqui, sim?”

Fisher abriu um armário próximo à estante. Gillson enxergou várias caixas grandes, colocadas em ordem definida e marcadas com símbolos pintados. Ele ergueu uma enquanto Fisher puxava a que estava logo abaixo. Ao fechar a porta, Gillson ouviu o outro levantando a tampa; e quando virou-se Fisher já estava colocando o conteúdo da caixa pelo chão. Um conjunto de superfícies de plástico veio à luz, sendo organizadas como um pentagrama semissólido; e foram seguidas por duas velas negras de formatos vagamente obscenos, um bastão de metal com um ícone na ponta, e uma caveira. Essa caveira perturbou Gillson; haviam buracos no crânio para segurar as velas, mas mesmo assim ele podia perceber, a partir de seu formato e falta de boca, que aquilo não havia sido humano.

Fisher começou então a arranjar os objetos. Primeiro empurrou as cadeiras e mesas para junto das paredes, e então jogou o pentagrama no centro do chão. Conforme colocava a caveira, agora segurando as velas, dentro do pentagrama, e as acendia, Gillson perguntou por trás dele:

"Pensei que você disse que não poderíamos ter luzes – e quanto a essas aí?”

"Não se preocupe – elas não irão iluminar nada,” explicou Fisher. "Quando Daoloth vier, ele sugará a luz delas – isto torna o alinhamento das aberturas mais fácil.”

Ao se levantar para desligar a luz no interruptor, fez um comentário por sobre o ombro de Gillson: "Ele vai aparecer no pentáculo, e sua materialização sólida e tridimensional permanecerá lá o tempo todo. Porém, ele vai varrer a sala com prolongamentos bidimensionais, e você poderá senti-las – mas não fique com medo. Veja só, ele vai tirar um pouco de sangue de nós dois.” Sua mão ficou mais próxima do interruptor.

"O quê? Você nunca disse nada sobre – ”

"Está tudo bem,” assegurou Fisher. "Ele tira sangue de qualquer um que o chamar; parece que é sua forma de testar intenções. Mas não será muito. Ele tirará mais de mim, porque sou o sacerdote – você só está aqui para que eu possa utilizar sua vitalidade para abrir o caminho para ele. Certamente, não irá doer.” E sem esperar mais protestos, desligou as luzes.

Havia um pouco de luz do símbolo em neon na garagem fora da janela, mas muito pouco passava pelas cortinas. As velas negras eram também muito fracas, e Gillson não conseguia enxergar nada além do pentagrama, a partir de onde estava perto da estante. Ficou estarrecido quando seu anfitrião bateu o bastão com o ícone na ponta e começou a gritar histericamente. "Uthgos plam'f Daoloth asgu'i – venha, Tu que varres os véus da visão para longe, e exibe as realidades além.” Houve muito mais que isso, mas Gillson não conseguiu prestar atenção a nada específico. Estava observando a névoa luminosa que apareceu, arqueando-se sobre ele e Fisher, para entrar no crânio deformado da caveira no pentáculo. No fim do encantamento, havia uma aura definida entre os dois homens e a caveira. Ele observava tudo com fascínio; foi então que Fisher parou de falar.

Por um minuto, nada aconteceu. Então os arcos de névoa sumiram, e havia então apenas as luzes das velas; mas estas brilhavam mais forte agora, e uma aura nebulosa as cercava. Conforme Gillson as observava, as chamas gêmeas começaram a diminuir, e de súbito desapareceram. Por um segundo, uma chama negra pareceu substituí-las – uma espécie de fogo negativo – mas tão rapidamente quanto apareceu, foi embora. No mesmo instante, Gillson percebeu que ele e Fisher não estavam mais sozinhos naquela sala.

Ouviu um farfalhar vindo do pentáculo, e sentiu que uma forma movimentava-se ali. Rapidamente, sentiu-se cercado. Coisas secas, impossivelmente leves, tocavam seu rosto, e algo escorregou por entre seus lábios. Nenhum ponto em seu corpo foi tocado por tempo suficiente para que pudesse agarrar aquilo que nele sentia; passaram tão céleres que ele lembrava-se, em vez de sentir, aquelas antenas que o tocavam. Mas quando o farfalhar retornou para o centro do do aposento, havia um gosto salgado em sua boca – e ele sabia que a antena que havia entrado em sua boca havia drenado seu sangue.

Por sobre o farfalhar, declamou Fisher: "Agora que Tu já provaste nosso sangue, Tu sabes nossas intenções. O Pentagrama dos Planos Te conterá até que Tu realizes nosso desejo – dilacera o véu da crença e mostra as realidades da existência desvelada. Tu nos mostrará, assim libertado-Te?”

O farfalhar aumentou. Gillson desejou que o ritual terminasse; seus olhos estavam começando a acostumar-se com o brilho do símbolo da garagem, e naquele momento começava quase a ver algo tênue se contorcendo na escuridão dentro da figura.

Subitamente, soou uma irrupção discordante de metal raspando contra metal, e o edifício inteiro tremeu. O som passou a zumbido, e depois ao silêncio, e Gillson sabia que o ocupante do pentáculo havia ido embora. O aposento ainda estava escuro; as luzes das velas não haviam retornado, e sua visão ainda não conseguia penetrar as trevas.

Fisher disse de onde estava, perto da porta: "Bem, ele se foi – e aquela figura está construída de forma que ele não poderia voltar sem fazer o que lhe foi pedido. De modo que quando eu ligar a luz, você enxergará tudo como realmente é. Mas se mudou de ideia, encontrará uma máscara para os olhos em cima da estante. Coloque-as e não conseguirá enxergar nada – isto é, se você não quiser continuar com o experimento. Então eu vou ligar a luz e poderei enxergar tudo que eu quiser, e então usarei o ícone para anular o efeito. Você prefere fazer as coisas desta forma?”

"Eu vim até este ponto com você,” lembrou Gillson, "e não foi pra ficar apavorado no último momento.”

"Quer enxergar agora? Você sabe que, uma vez que tenha visto, as ilusões táteis não vão mais funcionar direito – tem certeza de que vai querer viver com isso?”

"Pelo amor de Deus, sim!” a resposta de Gillson era quase inaudível.

"Tudo bem. Vou ligar a luz – agora!”

Quando a polícia chegou nos flats da Rua Tudor, para onde haviam sido chamadas por um morador histérico, encontraram uma cena que horrorizou até o menos suscetível deles. O morador, tendo voltado de uma festa tardia, havia enxergado apenas o cadáver de Kevin Gillson jogado no tapete, esfaqueado até a morte. Os policiais não ficaram nauseados com isto, porém, mas pelo que encontraram no jardim, sob a janela da frente, que estava quebrada: Henry Fisher havia morrido ali, com sua garganta dilacerada pelos estilhaços de vidro da janela.

Parecia tudo muito extraordinário, e o gravador não ajudava muito. Tudo que foi dito de fato era que algum tipo de ritual de magia negra fora praticado naquela noite, e eles deduziram que Gillson havia sido morto com a ponta afiada do ícone do bastão. O resto da fita estava cheia de referências esotéricas, e no final, a coisa ficava totalmente incoerente. A parte após o clique do interruptor da luz na gravação era o que deixava os ouvintes mais estupefatos; até então ninguém encontrou qualquer razão para que Fisher tenha assassinado seu hóspede.

Quando detetives curiosos rodam a fita, a voz de Fisher sempre soa assim: "Aqui – mas que diabos, não posso enxergar direito depois de tanta escuridão. E agora, o que...

"Meu Deus, onde é que eu estou? E onde é que está você? Gillson, onde está você – onde está você? Não, sai daqui – Gillson, pelo amor de Deus, mexa seu braço. Eu posso enxergar algo se movendo em tudo isso – mas Deus, esse não pode ser você – por que é que eu não consigo escutá-lo – mas isso é suficiente pra deixar qualquer um surdo... Agora chegue perto – meu Deus, essa coisa é você – está se expandindo – contraindo – a geleia primal, formando, mudando – e a cor... Sai daqui! Não chegue mais perto – você tá maluco? Se ousar me tocar, vai provar a ponta deste ícone – pode parecer molhado e esponjoso e olhe – que horrível – mas eu farei por você! Não me toque – eu não posso suportar sentir isso – "E então vem um grito e o barulho de uma queda. Um surto de gritos insanos é cortado pelo som de vidros quebrando, e um terrível ruído de alguém sufocando logo é reduzido ao nada.

É incrível pensar que dois homens foram aparentemente iludidos a pensar que haviam mudado fisicamente; mas este é o caso, pois os dois cadáveres estavam intactos, exceto pelas mutilações. Nada neste caso pode ser explicado quanto à insanidade dos dois homens. Pelo menos, há uma anomalia; mas o chefe da polícia de Camside está certo de que é apenas uma falha na fita que faz com que o gravador emita, em certos pontos, um som alto e seco, um farfalhar.

2 comentários:

  1. ME acabando pra achar na net o conto mesmo em inglês e acho aqui traduzido. Obrigado mundo tentacular

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    1. Fui eu que traduzi (na época eu não havia me assumido trans, por isso o nome masculino). Mas eu recomendo MUITO que você procure outros materiais do autor Ramsey Campbell. Ele escreveu isso na adolescência e juventude ainda. Neil Gaiman chama ele de o mestre do horror sutil, e cinquenta anos depois desses contos o mestre voltou a lidar com o Mythos: há a novela The Last Revelation of Gla'aki e a TRILOGIA de romances The Three Births of Daoloth!

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