quinta-feira, 4 de março de 2021

Anthropodermic Bibliopegy - A bizarra prática de encadernar livros com pele humana


Do site Roadtrippers, scoop de José Luiz F. Cardoso
Existe algo definitivamente sinistro a respeito das grandes e escuras bibliotecas. Os sussurros baixos, a quietude artificial e o cheiro de velhos tomos empoeirados se combinam para criar uma experiência quase surreal. Mas quando se trata de bibliotecas de aspecto sinistro, a Biblioteca da Universidade de Harvard leva o prêmio como lugar mais assustador... isso porque três dos livros que compõe o acervo da biblioteca são encadernados com pele humana.

Poucos anos atrás, três livros que estavam separados dos demais, guardados em uma caixa de madeira foram descobertos pelos pesquisadores. Chamava atenção a estranha capa desses livros que ao que tudo indicava eram feitas de couro curado. Não é totalmente estranho que livros antigos fossem encadernados dessa maneira como forma de preservação. À primeira vista, os livros haviam sido encadernados com couro de porco, contudo, uma inspeção mais minuciosa determinou que aquele couro macio e poroso era na verdade pele humana.

Mais macabro ainda é o fato de que em pelo menos um dos casos, a pele foi retirada de uma pessoa ainda viva, a medida que a vítima era cuidadosamente esfolada.   
Por mais bizarra que possa ser a noção de usar a pele de seres humanos para encapar livros, a prática era bastante popular no século XVII. Ela é reconhecida pelo nome Anthropodermic Bibliopegy e se mostrou incrivelmente comum, ironicamente no que se refere a livros sobre anatomia e medicina. Profissionais da área médica algumas vezes utilizavam a pele de cadáveres que eles haviam dissecado para esse fim. Uma maneira incomum de não desperdiçar nada.

A técnica ganhou maior popularidade durante a Revolução Francesa quando a pele de várias pessoas executadas pelos Tribunais da Revolução foi aproveitada para encapar os novos Códigos de Lei. Supõe-se que em Paris mais de uma centena de pessoas executadas nas guilhotinas tenham recebido esse tratamento, isso porque segundo um livreiro da época, "a pele dos indivíduos nobres é consideravelmente mais lisa, mais clara e por sinal, menos oleosa do que a da plebe, acostumada aos rigores do trabalho".


No século XVIII e XIX a prática continuava sendo empregada nas camadas mais elevadas da sociedade. Possuir uma biblioteca era considerado algo refinado, e ter em sua coleção volumes com encadernação incomum era motivo de orgulho. E o que poderia ser mais exótico e curioso do que dispor em sua prateleira de um livro cuja capa era feita de couro humano? No Novo Mundo, a "matéria prima" para a Anthropodermic Bibliopegy invariavelmente era suprida por escravos e indígenas.

Os três livros de pele presentes no acervo da Biblioteca de Harvard não são a respeito de medicina e tratam de assuntos mais triviais do que se poderia supor. Um dos livros trata de poesia romana, outro é um tratado de Filosofia escrito em francês e o terceiro é um Códice Legal Espanhol (este último é o tal em que a vítima foi esfolada ainda viva).

De acordo com o Diretor da Universidade, Sidney Verba, é possível que existam ainda mais destes volumes bizarros, com capa de pele humana escondidos na coleção. É provável que estes livros tenham sido separados por algum bibliotecário que considerou de gosto duvidoso permitir que estes volumes ficassem à disposição dos alunos, dada a sua origem discutível. Após a descoberta, os livros foram incluídos no acervo e podem ser consultados, tocados e manipulados na seção de Livros Raros da Biblioteca. 

Abaixo está uma lista de exemplares que foram confirmados como exemplos de Anthropodermic Bibliopegy. Eles foram arranjados na ordem estimada de publicação:


True and Perfect Relation of the Whole Proceedings Against the Late Most Barbarous Traitors, Garnet A Jesuit and His Confederates (Verdadeiro e Perfeito Procedimento Completo contra o Falecido bárbaro traidor, Garnet, um Jesuíta e seus colegas)

1606, Doador: Padre Henry Garnet

Esse livro contém uma descrição a respeito do notório Complô da Pólvora que tentou explodir o Parlamento Inglês no século XVII. Ele descreve todos os fatos, o julgamento e a sentença dos éus envolvidos na conspiração. Os Conspiradores da Pólvora eram um grupo de rebeldes católicos que em 1605 tentaram assassinar o Rei Protetante James I, seu filho mais velho, e a maior parte da corte e chefes de governo. Seu plano era explodir uma grande quantidade de pólvora negra estocada em barris durante uma sessão do Parlamento. A tentativa falhou e todos os envolvidos foram capturados e julgados como traidores, a maioria tendo sido executados. O mais famoso dos conspiradores era Guy Fawkes, entretanto, um dos co-conspiradores era o Padre Henry Garnet, o líder da ordem Jesuíta na Inglaterra. Foi a sua pele que foi utilizada, após a sua execução para criar a capa desse livro. O volume em latim possui um título, em que se lê " severa penitência punida diretamente na carne". Este é um dos livros mais famosos desse tipo de encadernação. Indivíduos supersticiosos garantem que é possível ver o rosto do padre contorcido em agonia quando a luz incide sobre a capa. 
Practicarum Quaestionum Circa Leges Regias Hispaniae (Questionário Prático de Leis Reais de Espanha)

1632, Doador: Jonas Wright

Na Seleta Coleção de obras Raras da Biblioteca de Harvard este livro possui um lugar de destaque como um dos mais estranhos e incomuns. O livro tem como título Practicarum Quaestionum Circa Leges Regias Hispaniae. Ele é um tratado de Leis vigentes no Império Espanhol. Na última página, há uma inscrição quase que totalmente apagada onde se lê:

"A encadernação desse livro é tudo o que restou de meu querido amigo Jonas Wright, que foi esfolado vivo pelos Wavuna no quarto dia do mês de agosto, 1632. Ele deu-me o livro de presente e uma vez que era uma das suas possessões mais queridas, ordenei que a capa do volume fosse coberta com sua pele. Requiescat in pace."
Os Wavuna, acredita-se, foram uma tribo africana que viveu no que hoje conhecemos como o moderno Zimbabue. Ele seriam conhecidos pela sua agressividade e por tratar os prisioneiros com extrema violência, torturando-os até a morte e usando entre outros métodos rituais que esfolavam suas vítimas. Esse volume é um exemplo notável de anthropodermic bibliopegy, uma prova de que a prática embora bizarra podia ser usada por motivos sentimentais para honrar o morto ao invés de representar simplesmente algo macabro.



Ledger (Caderno de Registros)


1700, Doador: Desconhecido

Em 2006, um livro de registros com cerca de 300 anos de idade foi descoberto no centro da cidade de Leeds, na Inglaterra. Ele foi achado após uma tentativa de roubo de mobília em um antiquário. Não se sabe muito a respeito do velho manuscrito, sabe-se no entanto que ele foi escrito em francês e é de antes de 1700. Há sugestões de que ele possa ter sido encapado durante a Revolução Francesa, uma época em que a anthropodermic bibliopegy havia ganho popularidade (e francamente, material). Se realmente ele data da Revolução Francesa, então o livro de registros está ao lado de documentos como a Declaração dos Direitos do Homem s e a Constituição Francesa de 1793 que também, acredita-se tenha cópias encadernadas com pele humana. 

Red Barn Murder Judicial Procedures (Procedimento Judicial do Assassinato no Barracão Vermelho)

1828: Doador: William Corder

O Assassinato do Barracão Vermelho foi uma infame morte ocorrida em Polstead, Condado de Suffolk, na Inglaterra no ano de 1827. O caso teve início quando uma jovem mulher chamada Maria Marten teve o filho ilegítimo de um conhecido ladrão chamado William Corder, uma ofensa que na época podia levar a uma sentença por parte das autoridades locais. Os dois combinaram de se encontrar na frente de um barracão vermelho em uma rua afastada. Porém, quando Corder avistou a mulher, atirou nela e enterrou seu corpo dentro do barracão para se livrar da responsabilidade.  O cadáver da mulher foi descoberto depois que sua alegou experimentar sonhos a respeito dela ter sido morta e enterrada em um lugar pintado de vermelho.

Quando o corpo foi descoberto, confirmando as premonições da mãe da vítima, a população ficou enfeitiçada pelo ocorrido. O assassinato e subsequente julgamento e execução de William Corder se tornou uma sensação nacional, inspirando baladas, peças teatrais e poesias que sobreviveram até os dias atuais. Após a execução de Corder na forca, seu corpo foi dissecado e examinado por profissionais de medicina que buscavam a comprovação de que o homem tinha um gêmeo maligno em seu interior (uma crença comum na época). O esqueleto dele se tornou ferramenta no Hospital de West Suffolk. Sua pele foi curada pelo cirurgião George Creed e usada para encapar os textos que formaram o Processo Legal do infame assassinato. No verso da capa, o médico escreveu: 

"A capa desse livro foi feita com a pele do assassino William Corder retirado de seu corpo e curada por mim mesmo no ano de 1828. George Creed cirurgião do Hospital Suffolk."


The Poetical Works of John Milton (Os Trabalhos Poéticos de John Milton)

1852: Doador: George Cudmore

Em 1830, um matador de ratos de Roborough chamado George Cudmore envenenou sua esposa com arsênico introduzido em uma maça assada e num copo de leite. Cudmore foi preso e em seguida enforcado pelo crime na Prisão do Condado de Devon. Após sua morte, ele foi levado para Exeter a fim de ser dissecado num hospital. Enquanto seu corpo aguardava no hospital, um dono de livraria e editor se apresentou afirmando que o falecido lhe devia uma soma em dinheiro. Como Cudmore não tinha dinheiro, um juiz concedeu que o editor recebesse um pedaço da pele do morto como pagamento. Um médico foi contratado para esfolar um pedaço das costas que foi entregue ao credor. Este usou o macabro pagamento para encapar um volume dos Trabalhos Poéticos de John Milton. A frente do livro possui uma inscrição que menciona Cudmore e seu crime. O livro foi arrematado em um leilão e hoje se encontra na Biblioteca Westcountry na cidade de Exeter. 
El Viaje Largo (A Longa Viagem)

1972, Doador Tere Medina

Nem todos os livros são antigos testemunhos de séculos atrás. Na Universidade de Slipery Rock existe um estranho livro de poesia erótica escrito em espanhol. Com o título "A Longa Viagem", o livro manuscrito até onde se sabe existe apenas nessa versão. A constatação de que a capa foi feita em pele humana é algo chocante, já que ele foi editado em 1972. Na primeira página está escrito em inglês e espanhol:

"A capa desse livro foi produzida com pele humana. A tribo Aguadilla do Platô de Mayaguez preservou a epiderme do torso de um membro falecido da tribo e ela foi esfolada posteriormente. A tribo culturalmente faz uso desse procedimento há séculos. Alguns podem achar isso estranho ou mesmo bárbaro, mas a tradição precede a chegada dos colonizadores e é visto como algo natural. Ainda hoje alguns nativos mantém esse costume e comercializam partes de pele para um pequeno mercado consumidor. Essa capa é parte dessa demanda".

Ninguém sabe ao certo quem foi Tere Medina, o autor do livro, ou o que o levou a encadernar seu manuscrito dessa forma. O volume foi doado a Universidade em 1974 anonimamente.

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