Ainda que não seja uma doença psicológica, colecionadores de livros e bibliófilos descrevem a "bibliomania" como uma condição médica.
Dr. Alois Pichler estava quase sempre cercado por livros. Em 1869, Pichler, originalmente da Bavaria, se tornou o que na época era chamado "Bibliotecário Extraordinário" da Biblioteca Publica de St. Petersburg, na Russia, uma posição de prestigio que deu a ele um salário três vezes maior do que o de um bibliotecário comum: aproximadamente 3,000 rublos.
Enquanto muitos bibliotecários possuem uma profunda admiração por livros, Pichler sofria de uma estranha condição. Poucos meses depois que Pichler assumiu a posição na Biblioteca, a equipe descobriu que uma alarmante quantidade de livros haviam desaparecido da coleção. Eles começaram a suspeitar que pudesse estar havendo algum tipo de roubo. Os guardas contratados para vigiar todos os funcionários, perceberam que Pichler estava agindo de maneira estranha - deixando livros em lugares curiosos, retornando volumes para o lugar errado e se recusando a deixar seu grande sobretudo no armário. Também perceberam que ele vinha saindo repetidas vezes da biblioteca, mesmo durante seu horário de trabalho. Começaram então a prestar atenção em suas ações.
Em março de 1871, um dos guardas decidiu seguir o bibliotecário e percebeu que ele carregava um volume em seu casaco. Ele contratou um rapaz para esbarrar no sujeito e tentar descobrir o que ele estava carregando escondido. Eram livros, e quando o Bibliotecário percebeu que estava sendo vigiado imediatamente tentou escapar, sendo capturado pelo guarda que lhe deu voz de prisão.
Na casa do Bibliotecário, a polícia encontrou nada menos do que 4,500 livros sobre os mais variados tópicos, desde criação de perfumes até teologia, que pertenciam a biblioteca e que haviam sido surrupiados. Pichler vinha retirando ao menos três livros ao dia e havia cometido o que foi chamado de o maior roubo a uma biblioteca na história.
Pichler foi levado a julgamento, e durante o processo, seu advogado alegou que o bibliotecário não era capaz de controlar o seu impulso de se aproprar dos livros que caiam em suas mãos. Ele era influenciado por uma "peculiar condição mental, uma mania que não existia na historiografia média, mas que se manifestava como uma irresistível, irrefreável e incontrolável de subtrair livros".
Sua defesa tentava mitigar a punição e apelar para a boa vontade dos jurados.
Não funcionou! Pichler foi considerado culpado e acabou sendo exilado para a Sibéria onde passou 10 anos cumprido pena de trabalhos forçados.
O bibliotecário talvez tenha sido a primeira vítima de Bibliomania, uma condição psicológica obscura que varreu as classes altas da Europa e da Inglaterra durante os anos de 1800. Os sintomas incluíam um frenesi por encontrar, adquirir e caçar livros raros, de preferência as primeiras edições de diferentes obras. A "doença"! também se manifestava fazendo com que a pessoa afetada se dedicasse a determinados temas, tipos de livro, encadernação e papel.
"Qualquer forma de obsessão pode se tornar uma doença", diz David Fernandez, um bibliotecário especializado em livros raros e obras selecionadas que trabalha na Biblioteca Fisher na Universidade de Toronto. "Um dos aspectos interessantes é que a pessoa afligida muitas vezes não escolhe livros especialmente caros. Não se trata de uma questão financeira, ele deseja livros raros"
A primeira definição de Bibliomaia; ou Loucura por Livros foi publicada em 1809 e era uma análise da condição feita por Thomas Dribdin.
A elite social formada por estudiosos e pesquisadores fazia de tudo para obter e coletar livros - sem se importar muitas vezes com o preço, ou com o fato de que eles muitas vezes, não estavam a venda. Alguns colecionadores gastavam verdadeiras fortunas para construir suas bibliotecas particulares. Ainda que jamais tenha sido considerada como uma aflição mental, as pessoas na época realmente temiam vir a sofrer de bibliomania. Existiam várias descrições, fictícias e reais, de pessoas sofrendo de bibliomania. Para os cavalheiros do período, o roubo era considerada uma transgressão capaz de arruinar uma reputação por inteiro. Ser acusado de subtrair qualquer coisa, mesmo um livro, era tido como algo imperdoável.
Um dos casos mais conhecidos e que possui farta documentação envolve o Reverendo Thomas Frognell Dibdin, um amante de livros britânico e vítima dessa estranha neurose. Em 1809 ele publicou um livro a respeito de Bibliomania na qual descrevia as estranhas, curiosas e peculiares reações de colecionadores de livros que Dibdin havia conhecido.
"Acredito que uma das melhores palavras para descrever essa situação é "bizarro", diz Fernández, que teve acesso ao texto escrito pelo bibliotecário no século XIX. "Era um produto de sua geração ao que tudo indica".
Uma das imagens dentro do texto mostra o que o autor chama de "Tolo por Livros", um indivíduo descrito como um sujeito que não vê limites para sua coleção, que precisa sempre expandir seu acervo e que não se importa em gastar dinheiro, tempo e recursos nessa atividade", descreve Fernandez.
O "Tolo por Livros"
De acordo com o Reverendo Dibdin, a "praga dos livros" teria atingido o seu ápice em grandes metrópoles como Paris e Londres em 1789. Após a Revolução Francesa em 1799, aristocratas franceses venderam boa parte de suas bibliotecas para fugir de seu país natal e muitas bibliotecas foram esvaziadas de títulos raros que mudaram de mãos por toda Europa. Da mesma forma, várias bibliotecas públicas foram destruídas na Revolução e muitos livros acabaram sendo roubados e vendidos em um mercado negro que movimentava enormes fortunas. Catálogos de Casas de leilão do século XVIII e XIX trazem uma grande quantidade de livros franceses. O preço de um volume raro poderia ser quadruplicado nesse período e a disputa por livros raros causava uma disputa que às vezes envolvia persuasão, coação, intimidação e até mesmo violência.
Muitos homens e mulheres que negociavam livros raros os compravam secretamente. As cifras eram enormes e agentes à serviço destes colecionadores tinham liberdade para fazer propostas e negociar. Por vezes, agentes a serviço de colecionadores inescrupulosos podiam chegar ao ponto de contratar rufiões e planejar roubos a bibliotecas, tudo para conseguir o volume que completaria uma coleção privativa. Não por acaso, companhias de seguro ofereciam proteção para livros raros e guardas eram contratados para proteger esses bens.
Não apenas as bibliotecas particulares estavam na mira dos colecionadores. Acervos de Universidades e Bibliotecas Públicas mundo afora poderiam ser vítimas desses ladrões. Além de livros, pergaminhos, mapas, documentos, cartas e outros papéis raros acabavam sendo subtraídos.
Certos livros eram desejados por razões específicas, como os que tinham encadernação rara, notas de rodapé deixadas por pessoas ilustres ou que eram citados como verdadeiras obras de arte de tipografia. Nessa categoria os "Black Letter" (Letras Negras), eram considerados especialmente desejáveis pela sua excelência na impressão.
O poeta e escritor escocês Robert Pearse Gillies escreveu em suas memórias em 1851: "Houve um período de minha vida em que sofri de uma mania incontrolável de adquirir volumes com black letter. Não posso descrever o que sentia, mas era uma necessidade de ter em minhas mãos tais livros, possuí-los... o mais estranho é que eu queria apenas tê-los, não necessariamente lê-los. É possível que mesmo aqueles mais raros, que foram mais difíceis de conseguir, eu não tenha lido mais do que 50 páginas".
Thomas Frognall Dibdin, Bibliófilo britânico e bibliomaníaco.
Isso não era exatamente algo raro. Havia um grupo muito grande de colecionadores que desejavam ter os livros em sua posse pelo mero desejo de possuí-los. Driblin descreve em seu texto a condição equiparando-a realmente a uma doença, usando para isso termos médicos consagrados no período. Ele destacava haver oito tipos de livros em especial que os colecionadores bibliomaníacos desejam ter acima de qualquer outros: primeiras edições, edições únicas, livros impressos com black letter, volumes em formato incomum, livros cujas margens haviam sido cortadas à mão, volumes com iluminuras, cópias com anotações, cópias encadernadas em veludo e em seda.
Além de escrever a respeito de livros e seus colecionadores, o Reverendo fundou o Clube de Apreciadores de Livros Raros de Roxburghe, que se tornou conhecido como uma sociedade que trocava livros e oferecia a chance de adquirir ou se desfazer de volumes raros. A sociedade contou com inúmeros bibliófilos famosos e é claro, com bibliomaníacos. Em determinado momento, o Clube teve mais de 2000 membros, sendo que muitos destes eram estrangeiros.
Dibdin não foi o único a escrever a respeito da bibliomania, Gustave Flaubert também devotou artigos inteiros para relatar suas disputas com um rival na aquisição d elivros raros, um negociante espanhol que ele chamava de "O Monge Espanhol". Flaubert chegou ao ponto de afirmar temer pela sua vida, uma vez que em mais de uma ocasião esse rival o ameaçou através de agentes que buscaram dissuadi-lo de comprar certos volumes.
Uma ilustração de Gustave Flaubert para seu artigo Bibliomanie, uma obra a respeito da loucura por livros raros.
Flaubert escreveu um ensaio a respeito de um personagem fictício (mas provavelmente baseado em alguém de carne e osso) chamado Lisardo. Um homem rico, sem família e fanático por colecionar livros raros. Quando ele é apresentado a um outro colecionador que o leva até sua biblioteca ele acaba sucumbindo à mania:
"Lisardo correu na direção das prateleiras e armários. Ele observava com grande velocidade cada volume, suas mãos gananciosas agindo com velocidade, virando páginas, consultando e avaliando cada volume de folios e quartos, então os octavos. Seus dedos deslizando sobre as páginas eram capazes de sentir a textura do papel e calcular a idade e o tipo d eimpressão. Ele não deixava de lado os duodecimos, alguns deles com cuidadosas ilustrações e iluminuras. Suas mãos calejadas verificavam a encadernação, o material da linha e a condição geral da seda usada, se havia deterioração ou qualquer condição adversa".
No conto de Flaubert, o pobre Sr. Lisardo acaba enlouquecendo e tem que ser colocado em um manicômio depois de se desesperar por não ser o doo daquela coleção magnífica.
Embora a história fosse uma ficção, é bem provável que bibliomaníacos do período se comportassem de maneira semelhante. "Boa parte daqueles colecionadores eram indivíduos de classe social elevada e não estavam acostumados a terem um desejo frustrado. Alguns iam até as últimas consequências para ter o livro que tanto desejavam. E quando não conseguiam, acabavam enlouquecidos", explica Fernandez.
Tomemos por exemplo o colecionador de livros britânico Richard Heber que chegou a ter oito casas completamente tomadas por volumes que chegavam a 146,000 volumes. Ao longo de sua vida, Heber gastou 100 mil libras, uma enorme fortuna para construir a sua coleção em 1804. Enquanto isso, outro colecionador Sir Thomas Phillipps levou a sua família a ruína financeira ao gastar quase toda a sua fortuna em livros raros. Phillipps era obcecado por manuscritos em veludo, e teria dito certa vez que estava em uma campanha para adquirir todos os livros quepudesse encadernados dessa forma, não importando o custo.
Um dos contemporâneos de Phillips relatou que sua casa era um verdadeiro pântano dilapidado recoberto por livros de todos os tipos, tamanhos, e formas; "O estado das coisas era realmente inacreditável. Lady Phillips estava ausente, não havia suportado as excentricidades do marido. Ele, pouco se importava, estava satisfeito com sua vasta coleção". O homem continuou escrevendo: "Cada sala, cada aposento, cada pequeno espaço encontra-se abarrotado com pilhas de papéis, manuscritos, livros, mapas, pacotes ainda fechados e volumes empoeirados: mesas, camas, cadeiras, escadas".
Um bibliofilo cuidando de sua coleção, pintura de Carl Spitzweg de 1850
Hoje em dia, um comportamento semelhante pode facilmente ser enquadrado em alguma das condições de transtorno obsessivo compulsivo (TOC) ou como o mal dos acumuladores. De fato, alguns estudiosos contemporâneos ligam a bibliomania, com uma desordem mental: "Parece bastante claro que essa condição não é normal e que algumas pessoas levam sua obsessão por livros até um patamar que beira o extremo. O prazer que acumuladores sentem ao colecionar é profundo e reflete na auto-estima e em sua imagem pessoal. O desejo por acumular mais e mais livros se torna o sentido e propósito de sua existência".
Dibdin acreditava que a cura da bibliomania só poderia ser alcançada quando o próprio indivíduo aceitava se desfazer de sua coleção. Ele próprio, reconheceu ser um bibliomaníaco em meados de 1820 e fez de tudo para se desfazer de sua coleção, vendendo a maioria de seus livros. Eventualmente ele conseguiu se desfazer de sua biblioteca, mas seu alerta a respeito da obsessão continua sendo um válido mesmo nos dias atuais.
Depois revejam as margens do texto desta postagem, pois ele está ultrapassando e dificultando um pouco a leitura.
ResponderExcluirrealmente não consigo entender o ato de possuir livros que vc nem vai ler. Eu só tenho carinho assim por livros que eu realmente gostei de ler.
ResponderExcluirA biblia e o Livro dos livros.
ResponderExcluirOs fissurados por histórias em quadrinhos tão sofrendo disso daí: não é difícil esbarrar com colecionador de capa dura, sommelier de lombada e outras bizarrices... Quando bati o olho no termo "tolo por livros" na hora me veio a mente encadernado capa dura de Deadpool! Hahaha! XD
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