terça-feira, 26 de novembro de 2019

Revelando o Invisível - A mística Poeira de Ibn-Ghazi


 O trecho a seguir é geralmente compreendido como um capítulo inteiro do infame livro de Abdul Alhazred. Entretanto, leitores com conhecimento não ficarão surpresos quando eu mencionar que, após consultar diferentes versões do Necronomicon, parte de seu conteúdo se mostra incrivelmente divergente, até mesmo contraditório em certos aspectos. Isso não é particular desse trabalho em especial, uma comparação semelhante de várias versões existentes da Clavícula de Salomão oferece resultados similares.

Escolhi o texto a seguir como um exemplo do problema encarado por muitos pesquisadores da Demonologia de Alhazred. Esta fórmula é particularmente famosa e encontrada em muitas, senão todas as versões do tomo, mas permanece o fato de que a versão mais conhecida pode ser achada na edição traduzida pelo célebre Dr. John Dee. Há versões publicadas por Hay, Wilson, Turner entre outros que também são conhecidas, mas o leitor deve ter em mente que a versão de Dee é um exemplo da longa obsessão do Dr. Dee pelo Necronomicon e tudo que ele representa. Ao longo dos anos, o Mago da Corte Elizabetana e conceituado estudioso reuniu trechos fragmentados e páginas perdidas do Necronomicon em vários idiomas, trabalhando sobre esse material de maneira febril para destilar delas a versão mais completa do texto original. 

O Dr. Dee obteve uma cópia da versão grega do Necronomicon possivelmente datada de 1472, e imediatamente redigiu uma série de anotações que incluíram a tradução de vários capítulos para o inglês. Por razões desconhecidas, Dee codificou essas anotações em 1583, nomeando o documento manuscrito como Liber Logaeth. Ele produziria uma versão mais completa em 1586, após trabalhar em uma cópia em árabe original do Kitab Al-Azif que ele encontrou em Praga três anos antes. Ele acrescentou a esse trabalho, fragmentos colhidos das versões grega e latina (ao qual teve acesso nos Cárpatos), bem como algumas anotações reproduzidas pelo filósofo Alkindi em uma compilação intitulada Kitab ma'ani al-nafs ou Livro da Essência da Alma (c. 850).


Lin Carter (1930-1988) obteve o manuscrito original do Dr. Dee na década de 1950, e deu início a um laborioso trabalho de tradução que foi publicado em fascículos - de 1971 até 1978, mas que resultaram em uma transcrição truncada e incompleta da maioria dos rituais. O executor literário de Carter, Robert M. Price publicou a transcrição do material de Carter em 1990, em um diário acadêmico de pequena circulação.

Mas voltando ao Dr. Dee, ele realizou uma revisão e expansão do conteúdo de seu manuscrito de  1586 com algumas notas e revisões adicionais. Duas cópias destes foram produzidas, mas ele se mostrou reticente a respeito de enviar o material para ser impresso. Após sua morte em 1608, as duas cópias restantes do documento acabaram sendo adquiridas por um gráfico de Londres que foi responsável pela primeira publicação do Necronomicon de Dee em meras 113 cópias. Há boatos de que uma versão manuscrita ainda mais completa do tomo foi encontrada na biblioteca privada do Mago dois anos depois. Esta foi subtraída, vendida clandestinamente e hoje é considerada perdida.

O Liber Logaeth, tido como o manuscrito incompleto do Necronomicon circulou pela Inglaterra do século XVI, sendo eventualmente publicado em uma versão expurgada em Bristol. Esta edição menor se tornou bastante popular no século XVIII e XIX, ganhando círculos ocultistas e acadêmicos, ainda que os verdadeiros pesquisadores reconheçam que ela era largamente inferior. Nessa tradução, trechos inteiros foram cortados ou omitidos, supostamente em face das crenças religiosas de Dee, um cristão devoto (razão pela qual seu interesse no Necronomicon é surpreendente). Alguns biógrafos assumem que o Dr. Dee censurou alguns trechos especialmente perturbadores do Liber Logaeth em um período em que ele manifestava dúvidas a respeito da tradução que estava realizando. Talvez ele imaginasse o perigo de traduzir esse conhecimento nefasto em outros idiomas. Seja como for, o fato de Dee ter realizado outras traduções demonstra que o fascínio dele pelo material superou suas considerações iniciais.


A conhecida versão do Necronomicon constante no acervo da Biblioteca da Universidade Miskatonic é a edição latina editada na Espanha. A Universidade acrescentou ao acervo uma edição em frangalhos do manuscrito de Dee que pertenceu ao falecido Wilbur Whateley e antes dele ao seu avô Noah "Feiticeiro" Whateley de Dunwich. O material foi combinado para que o Dr. Francis Morgan pudesse destilar a fórmula de Ibn Ghazi utilizada na ocasião do surgimento da criatura conhecida como Horror de Dunwich.

O trecho a seguir é uma compilação do texto a respeito da criação da Fórmula de Ibn Ghazi, também conhecida como Poeira de Ibn-Ghazi ou Pó de Revelação de Ibn-Ghazi. Ele tem como base várias fontes. Primeiro, uma cuidadosa reconstrução da versão árabe de Alkindi traduzida pelos Professores Venustiano Carranza, Sergio Basile e Giampero de Vero, a Cópia espanhola da Miskatonic, chamada de "Algazife", o manuscrito italiano que se encontra na Biblioteca do Vaticano traduzido por Pietro Pizzari, um manuscrito polonês com o título Necronomicon Czyli Księga Zmarłego Prawa editado por Krzysztofa Azarewicza, bem como a edição de Dee que pertenceu ao clã Whateley. Também foram consultadas duas versões do Liber Logaeth e trechos de fragmentos do Necronomicon latino que se encontra na Bibliotheque Nationale da França.

Entre as muitas questões que esse texto pode suscitar, é por qual razão o capítulo é identificado em algumas versões com o nome "Fórmula de Ib"? Seria essa uma antiga corruptela ou derivação do nome mais conhecido ao qual ele está associado, Ibn Ghazi? Ou seria uma menção à mítica cidade citada no Necronomicon, Sarnath, que foi obliterada da existência por um Destino que a visitou? Teria sido a poeira usada pela primeira vez em Ib, talvez para revelar a forma de seus habitantes não humanos? Ou seria esse apenas um erro inocente de tradução? Talvez a resposta esteja em alguma versão do Necronomicon que ainda não foi encontrada, quem sabe.

Um último conselho deve ser compartilhado com o leitor: Leia com cuidado e se abstenha de usar esse conhecimento, mas se o fizer, empregue todas as precauções necessárias.

O conteúdo do Necronomicon não deve jamais ser subestimado. Ele é, afinal, um livro extremamente perigoso e daninho. Seu conteúdo, ao longo das eras foi discutido e debatido sem que tenha se chegado a uma conclusão definitiva sobre a sua natureza perniciosa.


Proceda com extrema cautela.

 Para criar a Poeira de Ibn-Ghazi ou Poeira da Materialização de Ibn-Ghazi, que é a Fórmula de Ib

Eu sou o Escriba dos Antigos que foram, são e sempre haverão de ser indiferentes; eternos sejam os seus nomes secretos.

É desse modo que vós ireis obter a poeira com a qual o Grande Ibn-Ghazi - que ninguém tenha o fim que ele conjurou sobre si mesmo! -, fazia visível os Outros Deuses e os infames seres por Eles gerados e que habitam ocultos em meio a humanidade. Ela permite tornar visíveis aqueles que são invisíveis e imperceptíveis, ao menos até desejarem se tornar visíveis e perceptíveis para o terror do homem que os contempla.

Da forma correta de preparar a Poeira

No topo de uma ravina ou monte isolado tu deverás encontrar uma clareira onde nada reste senão o mais rude solo, no qual nada vivo cresça e nada consiga sobreviver. Marque bem: não deverá ser um local onde meramente a grama seja seca mas uma clareira destituída de vegetação, com tão somente solo, poeira, pedras e nada mais. Deve de ser um local em que pássaros, raposas e mesmo insetos pareçam evitar, um local estranho e silencioso que poderia ser confundido com o trono da morte.


Tenha ciência de que tais lugares, espalhados pelo mundo selvagem e primevo, são muito especiais. Retorne ao local escolhido na noite de Lua Nova. Se vosso espírito for capaz de assisti-lo, vós descobrireis que nessa clareira infértil, quase imperceptível nas trevas, emana do solo algo que parece ser um tênue vapor. Este será visível para olhos treinados, erguendo-se e produzindo uma leve inflexão esverdeada.

Tu deves saber que em tais localidades dormem, hibernam ou descansam os restos daqueles seres monstruosos gerados pelos Antigos, sepultados ao longo de eras fúlgidas. Tu já deves saber que tais criaturas embora enterradas não se encontram necessariamente mortas e que nada que pode sonhar para sempre, deve ser percebido como morto. Senta em meditação a dez passos do vapor que do solo impuro se ergue, voltado na direção do nascer do sol e observa com atenção a emanação. Mira em seu miasma, observa as formas que surgem e se desmancham, medita a respeito delas e não tema. Não fechai teus olhos, ainda que as imagens sugeridas pelo vapor sejam aterradoras e nauseantes, e mesmo que elas pareçam coalescer em algo que o vislumbre poderia roubar a razão de teu cérebro. Não fechai vossos olhos, não corra ou demonstre temor, pois este atiça a atenção dos que habitam o abismo. Meditai até o sol se por e pouco antes dele se erguer. Então, levante e sem olhar para trás se afaste com passos rápidos. Dessa forma, tu estabelecerá de maneira correta o elo com aquilo que repousa nas profundezas, que nem morto e nem vivo, perceberá tua presença sobre a clareira: com isso tu estabelecerá o direito de recorrer aos seus poderes.        

Três dias antes da Lua Nova, retorne à clareira após o por do sol trazendo consigo uma vela negra com os símbolos de Ardhamme desenhados na cera. Coloca-te na mesma posição de antes e acende a vela no chão diante de ti. Desenhe no ar o Símbolo de Yhrr, com a ponta do dedo sobre a vela acesa. 

Em seguida faça um corte em forma de cruz no seu braço esquerdo. Deixa o sangue escorrer por ele direto no chão e então recite as palavras da Fórmula de Ibn-Ghazi:


Meu próprio sangue vertido, dê poder a essa magia!
Espírito do Solo, fortaleça esse sangue!
Habitante das profundezas ouvi minha prece!
Que o solo temperado com seus vapores seja consagrado!


A medida que o sangue for absorvido pelo solo recite o Cântico de Aglaophotis em meditação e parta antes do amanhecer sem olhar para trás.

Retorne para a clareira na noite seguinte e com uma pá escave o torrão onde seu sangue foi absorvido pelo solo. Leva esse produto ao teu estúdio, coloque-o em um caldeirão de chumbo e deixe-o cozer por três dias acrescentando lascas de madeira de cipreste.

No terceiro dia apague o fogo e deixe-o esfriar. Tu deverás ter obtido uma fina poeira azul-acinzentada e sobre ela recite as palavras da Fórmula de Ibn-Ghazi:

A serviço do Impronunciável,
Poeira, eu te consagro
Antigos, cujos nomes secretos não ouso repetir,
Espíritos do material e do imaterial, abençoem essa poeira.

Reduza à poeira um osso humano que tenha sido limpo de carne há pelo menos dois séculos.

Com isso, tu terás produzido o primeiro e o segundo componentes da poeira de Ibn-Ghazi, com três partes do primeiro e uma parte do segundo misturados em um pilão, tu farás o terceiro componente.


Para completar a fórmula, use uma parte de Amarante, uma de sal finamente moído e uma de folhas de hera completamente secas e devidamente pulverizadas. Misture todos ingredientes em um pilão aberto, de preferência no dia e hora de Saturno, até que tudo esteja uniformemente granulado. Em seguida deposite o produto - uma poeira fina como grafite de cor cinza-azulada, em uma urna (de bronze ou chumbo) consagrada com os Símbolos de Ptha. Mantenha esta fechada com tecido ou lã, selando a tampa. Durante a noite, abra essa urna e sobre ela, faça o Símbolo de Voorish o que ajudará a mantê-la potente.

A eficiência da poeira não irá se manter além da quarta Lua Nova sucessiva a que ela foi criada.

Como usar a poeira

A Poeira de Ibn-Ghazi deverá permitir a vós observar as manifestações aéreas dos espíritos, a aparência das entidades de além das esferas, além de permitir revelar a presença furtiva de seres que nossa percepção é incapaz de detectar. Após um feitiço de invocação, ela compele Aqueles que são Chamados a mostrar a si mesmos.

Uma pequena pitada da poeira deve ser lançada com a mão esquerda na direção da Entidade ou Criatura cuja forma se deseja contemplar. Quando tu lançar mão dessa poeira, é importante se precaver contra ventos maliciosos que podem voltar a poeira para teus olhos. Esta produzirá danos a suas retinas e podem deixá-lo cego para sempre.

Ao atingir a forma imperceptível, a poeira irá aderir e coalescer de tal maneira que se espalhará até tornar a entidade ou criatura perceptível aos nossos sentidos.


É preciso compreender que a poeira revela a forma do imperceptível, tornando-o visível. Não é preciso alertar aos leitores que as Coisas de além das esferas assumem formas que são abomináveis aos olhos da humanidade e que o simples vislumbre de tais seres pode ser muito prejudicial à razão. Se não estás certo de que pretende ver com seus próprios olhos, não siga com esse intento. Esteja avisado, pois!


A forma afetada pela poeira ficará visível por 60 batidas de coração e começará a se desfazer logo em seguida tornando-se imperceptível findo esse prazo. Ele pode ser renovado por outro punhado devidamente aplicado.

Esta é a Fórmula de Ib, que foi recuperada por Hamurtash Ibn Ghazi em pessoa, constante no Testamento de Kish, traduzido em nosso idioma e aqui copiado por Abdul Alhazred para a ciência dos estudiosos.

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