domingo, 22 de março de 2020

Criando Múmias - Os métodos egípcios de mumificação


Um dos costumes mais conhecidos no Egito Antigo envolvia a prática conhecida como Mumificação.

A Mumificação é o processo de preparação e preservação de restos mortais. Os egípcios não apenas refinaram esse método através dos séculos, como elevaram a prática a um patamar quase artístico, tamanho o zelo, cuidado e dedicação com que tratavam o material humano e nele empregavam as mais diversas substâncias preservativas.

Havia uma razão muito boa para todos esses cuidados.

Os antigos egípcios acreditavam que quando uma pessoa morria, ela iniciava uma viagem espiritual a caminho de outro mundo. Para que essa viagem fosse bem sucedida, era necessário preservar seu corpo da maneira mais intacta possível, ao menos na aparência externa. Estes corpos preservados são o que conhecemos nos dias atuais como múmias (a palavra múmia vem do árabe mummiya, que significa betume, um dos produtos essenciais para confecção da múmia). 

No início, não havia uma única forma de preservar os corpos. Aqueles responsáveis pela mumificação foram aprendendo através de tentativa e erro quais os métodos mais satisfatórios e que resultavam no melhor efeito final. De fato, a técnica usada por eles para preparação dos cadáveres foi sendo aprimorada ao longo de muitos séculos até que um método se tornasse o mais difundido e utilizado.


Os primeiros embalsamadores simplesmente enterravam os cadáveres em covas rasas no deserto. A areia quente e seca servia para remover a umidade do corpo, criando uma mumificação natural quase perfeita. Para isso, no entanto, era necessário sepultar o cadáver diretamente na areia e esperar anos para que ele pudesse ser removido. Embora isso garantisse as condições ideais, os egípcios consideravam indigno que pessoas ilustres fossem simplesmente colocadas no solo sem um caixão ou ataúde. Eles perceberam que quando os corpos eram depositados nessas caixas ou mesmo envolvidos em tecido, os restos não eram preservados como desejavam. Isso ocorria porque para preservar o cadáver e evitar sua decomposição era essencial privá-lo da umidade e da ação do oxigênio. Quando exposto a esses elementos a decomposição é certa e o corpo acaba sendo rapidamente consumido por micro-organismos.
       
Para deter esse processo, os egípcios descobriram que a preparação era essencial.

O processo deveria começar o mais rápido possível, de preferência logo após a morte. Dali em diante, cada etapa precisava ser conduzida com extremo cuidado, exigindo um grau de habilidade que apenas alguns poucos possuíam. Não por acaso, o ofício de embalsamador era muitíssimo bem remunerado, tornando esses profissionais pessoas bastante ricas e influentes na sociedade local. Eles tinham de conhecer o suficiente de medicina, em especial anatomia, além de ter noções a respeito de química para misturar e produzir as substâncias e compostos necessários. Mas outro tipo de conhecimento era necessário; o embalsamador devia conhecer rituais religiosos e cerimônias sagradas que permitiam purificar o cadáver.   


Esses profissionais eram tão habilidosos que pessoas mumificadas quatro mil anos atrás ainda possuem pele, cabelo e feições perfeitamente reconhecíveis. Também é possível identificar cicatrizes e tatuagens nos cadáveres.

O corpo era entregue por parentes e amigos aos embalsamadores assim que a pessoa falecia. Uma equipe era comandada por um Mestre Embalsamador, que podia ser assistido por algo entre 5 ou até 15 indivíduos que o auxiliavam, cada um dentro de uma especialização. No caso de nobres e dignatários, o mestre embalsamador chegava a residir na casa ou palácio, o mais perto possível do moribundo, para que pudesse dar início aos trabalhos tão logo fosse possível. O método mais eficiente de mumificação era destinado apenas aos indivíduos mais ricos da sociedade que podiam bancar os elevados custos. Um embalsamador de qualidade podia cobrar uma pequena fortuna pelo seu trabalho, mas haviam aqueles que ofereciam métodos alternativos para os menos abastados.

O filósofo grego Heródoto, que viveu no século V a.C, descreveu diferentes métodos de preservação usado pelos profissionais egípcios. Os mais simples envolviam tão somente remover os órgãos, usar sais preservativos por alguns dias e mergulhar o cadáver em betume. Ao fim do processo que levava entre 7 e 10 dias, o cadáver era devolvido para a família envolto em tecido cru para ser disposto em um mausoléu ou tumba. Todos no Egito se preocupavam com o destino de seus restos e mesmo os criminosos mais abjetos tinham direito a receber um tratamento mínimo de preservação de seus restos. Nada poderia ser mais indigno para um egípcio do que partir para o além sem que seu corpo recebesse os cuidados mínimos.   

A seguir cobrimos os detalhes do Processo de Mumificação mais cerimoniosa que podia demandar até 70 dias desde os preparativos iniciais até sua conclusão.

1 - O corpo era despido e entregue a pessoas que se ocupavam de lavá-lo com uma solução de vinho e água do Nilo. Durante essa lavagem, um grupo de pessoas cantavam louvores ou declamavam poesias a respeito do falecido, enaltecendo suas realizações em vida e pedindo aos deuses um salvo conduto pelas terras do além. Crianças eram muitas vezes empregadas nessa atividade. Durante todo o processo de lavagem, uma pessoa se ocupava de acariciar a cabeça do morto e verificar se ele não estaria simplesmente desacordado.


2 - Uma vez limpo, o corpo era entregue ao Mestre Embalsamador que realizava o primeiro corte usando uma lâmina extremamente afiada que era purificada. O corte que media entre 15 e 25 centímetros era feito no flanco esquerdo do abdomen. Através dele, intestinos e o estômago eram removidos. A seguir, com e espaço interno limpo, o mestre acessava o fígado e os pulmões.

Os egípcios não removiam o coração do morto, uma vez que acreditavam ser ele o centro das emoções e da inteligência, imprescindível em sua viagem pelo submundo. A crença era que o Deus Anúbis, Guardião do Submundo deveria realizar uma pesagem do coração do morto colocando-o em uma balança. No outro prato, ele depositava uma pena. Se o coração fosse mais pesado que essa pena, ele não poderia ser admitido no além, pois apenas os que vinham diante de Anúbis com o Coração leve seriam aceitos. Aqueles recusados tinham o coração devorado por entidades sobrenaturais chamadas Ammut (monstros com corpo de leão, crocodilo e chacal). Estes eram forçados a voltar para um limbo onde purgavam seus pecados até receberem a permissão de seguir com sua jornada.

3 - Uma das etapas mais conhecidas da preparação envolvia a remoção do cérebro da cavidade craniana. Os antigos egípcios não consideravam o órgão importante e não devotavam a ele qualquer ritual específico. Ele era removido usando-se um instrumento em forma de gancho inserido pela cavidade nasal até atingir o cérebro. Uma vez posicionado, o Mestre girava o objeto fazendo com que a massa prendesse nos ganchos para ser então removida.


Para nós, o método parece incrivelmente perturbador, mas os egípcios acreditavam que todos os órgãos desnecessários precisavam ser descartados para não atrapalhar a viagem espiritual do morto. O cérebro era nesse caso uma espécie de peso morto que precisava ser removido. Uma vez feito isso, ele era simplesmente jogado fora.

4 - O corpo era lavado novamente e seco com toalhas absorventes de algodão. Ele era entregue então para a conservação, um estágio fundamental no processo. Nele, as cavidades esvaziadas eram preenchidas com Sal de Natron e depois seladas com fios de linho, cera de abelha ou resina de vela.

O Natron é uma substância mineral branca e cristalina semelhante ao nosso sal grosso. Ele tem propriedades especiais que permitem a absorção da umidade do corpo e dos arredores. Abundante no Egito, podia ser encontrado no leito de lagoas secas. Algumas variedades eram mais desejadas que outras, sobretudo pela grande concentração de sódio que gerava o efeito mais eficaz.


Além de preencher as cavidades com Natron para agir internamente, o cadáver era depositado em uma caixa contendo a mesma substância para que assim ele agisse externamente. Uma vez colocado nessa caixa vedada o corpo descansava sob o sal por um período de 40 dias para remover toda umidade e a gordura corporal.

5 - Enquanto parte dos embalsamadores cuidam do corpo, outros se especializam em tratar dos órgãos importantes removidos dele.

Os órgãos são lavados e secos com algodão, antes de serem envolvidos em faixas de linho para o acondicionamento em vasos especiais chamados canópicos. A tampa de cada um desses vasos possui a forma dos quatro filhos do Deus Horus. O fígado é colocado no vaso com a cabeça humana de Imset. Os pulmões são associados a Hapi que possui cabeça de babuíno. O estômago é associado a Duamutef que tem cabeça de chacal. Já os intestinos e vísceras ficam guardadas no vaso com a cabeça de águia de Kebechsenef. Os filhos de Horus são guardiões protetores cuja função é proteger os órgãos no além vida.




6 - Após 40 dias descansando no Natron, o corpo já secou e encolheu consideravelmente graças a absorção de toda a umidade residual. Ele é limpo com toalhas de algodão e então esfregado cuidadosamente com óleo, temperos, ervas e perfume. 

O natron no interior do corpo também é totalmente removido e substituído por serragem e pedaços de tecido para não ficar vazio. Uma peruca confeccionada com cabelos humanos é colocada na cabeça. A face recebe especial cuidado, pintada com cosméticos para garantir uma aparência natural de vida. Qualquer pedaço perdido é substituído por próteses de resina, cera ou mesmo madeira.

Amuletos de proteção, em especial colares de escaravelho e o olho sagrado Wedjat são colocados em volta do pescoço como uma forma de guardar e proteger os restos.

7 - Na etapa seguinte, os embalsamadores começam a cobrir o corpo com bandagens de linho semelhantes a ataduras. Cerca de 20 camadas de ataduras são enroladas ao longo de 20 dias, cada qual antecedida por complexos rituais e abluções.


Cada camada é coberta com uma combinação de betume e cânfora que ajuda a preservar o corpo e evita o surgimento de organismos decompositores e fungos. Quando a  última camada é colocada, o corpo é coberto por uma mortalha (um grande manto de linho) que é amarrado por várias tiras de linho.

Uma máscara funerária com as feições do morto é colocada em sua face, esta podendo ser de madeira com uma pintura (para pessoas mais modestas) ou de ouro cravejada com jóias para dignatários.  

8 - Quando os preparativos se encerram, o Chefe Embalsamador realiza a "Cerimônia da Abertura da Boca" que é um dos momentos mais importantes da mumificação.


Nela o Mestre veste um traje ritualístico com direito a uma máscara representando Anubis (Deus dos Embalsamadores) e posiciona a múmia em um promontório ou altar especialmente consagrado. Ele (desempenhando o papel de Anúbis encarnado) toca levemente a face do cadáver embalada pelas ataduras com instrumentos que visam restaurar sua fala, sua visão e sua audição no além vida. Esses objetos são símbolos que garantem ao morto poder, proteção e renascimento. 

9 - O corpo é então colocado em uma caixa de madeira simples para ser devolvido à família. Esta poderá providenciar um caixão adequado, chamado sarcófago (palavra derivada do latim sarcophagos que significa "pedra que come a carne") para o descanso dos restos. Os sarcófagos poderiam ser simples de madeira e pedra talhada ou extremamente luxuosos de madeira pintada com metais preciosos, dependendo do estado econômico do morto.

O sarcófago era então levado para uma tumba especialmente construída para receber o morto. Lá dentro seriam colocados os objetos e tesouros mais valiosos do falecido e que ele expressou desejo de carregar consigo para o além. Além desses itens, artesãos talhavam pequenas peças de madeira chamadas shabtis que representavam os serviçais que continuariam a servir seu mestre do outro lado.

             

A complexidade dos rituais e todos os preparativos continuam a surpreender os arqueólogos que de tempos em tempos fazem alguma nova descoberta sobre o processo de mumificação. Cada múmia parece ter uma história a contar, e cada uma delas constitui um testemunho silencioso de uma arte que parecia até recentemente perdida.

Digo "recentemente" uma vez que o famoso Egiptólogo Robert Brier, o maior especialista em múmias do mundo, recebeu a permissão de realizar um procedimento em um voluntário que doou seu corpo para a ciência.

Brier foi a primeira pessoa em mais de 2000 anos a mumificar um cadáver humano usando exatamente as mesmas técnicas e ferramentas usadas pelos egípcios antigos. Valendo-se dos mesmos componentes e ingredientes que os embalsamadores dispunham, ele conseguiu realizar um feito repetindo a façanha dos especialistas do passado.

Um comentário:

  1. O que me deixa admirado (e, diga-se de passagem, chega a ser até irônico) é o fato dos antigos egípcios considerarem o cérebro um órgão inútil... excelente trabalho

    ResponderExcluir