sábado, 7 de março de 2020

Morte Encarnada - Quando a morte se disfarça para visitar as pessoas


A morte tem sido um espectro aterrorizante para a humanidade desde o início dos tempos. 

Mesmo antes da história começar a ser registrada, os homens já tentavam se esquivar dos avanços dela, temendo o que acontecia quando enfim a morte fizesse sua incômoda visita. A realidade nua e crua é impossível de ser ignorada: é uma questão de tempo e a cada segundo de vida, estamos mais próximos do fim. Considerando o quão forte é a influência da morte em nossas vidas, não é de se estranhar que muitos povos e culturas ao redor do mundo tenham criado personificações, avatares ou mesmo representações dela. Imagens que fornecem uma aparência física à Morte.

Elas vem de inúmeras nações, de incontáveis civilizações e fazem parte da mitologia, da religião e do folclore universal. Da clássica imagem da morte representada como o Ceifador (com seu manto negro e foice nas mãos) até os infames Anjos da Morte, passando por entidades demoníacas, crianças sinistras e mesmo sombras de animais assustadores. Em comum, o fato de que todas essas representações são de alguma forma aterrorizantes, o que demonstra perfeitamente o nosso temor diante do inevitável.

Uma das imagens mais tradicionais de "Morte Encarnada" está ligada aos Portadores da Praga. Obscuros, misteriosos, assustadores, os Portadores da Praga (também chamados de Pestilentos em alguns círculos) passaram a ser associados com o derradeiro fim ainda na Idade Média, uma época em que a morte estava em todo canto, associando-se aos fantasmas da fome, guerra e é claro, doença. 

Essas figuras tomavam muitas formas, mas sua imagem mais frequente era a de uma pessoa coberta dos pés à cabeça por trapos e andrajos sujos para ocultar sua carne corrompida pela doença que os devorava de dentro para fora. Os Pestilentos podiam ser vistos geralmente em grupo, marchando pelas estradas e arredores das cidades, proibidos de visitá-las durante o dia e só o fazendo na calada da noite. Sua presença era um indicativo de como a morte poderia ser caprichosa. Por isso, ninguém desejava cruzar com esses indivíduos e quando o faziam; viravam as costas, recitavam orações ou olhavam para o outro lado.

Na Europa medieval, os Pestilentos formavam cortejos que eram muito temidos. Um grupo de doentes caminhando em fila podia ser facilmente confundido com a "Morte em pessoa", o que era o suficiente para fazer até as pessoas mais corajosas correrem deles. Em muitas cidades haviam leis que impediam a aproximação dessas pessoas, e se elas o fizessem recebiam ofertas de comida não por pena, mas como condição para que ficassem longe da vista dos moradores.

É possível que essa representação tenha dado origem ao Ceifador, a imagem da morte mais popular no mundo inteiro.  


Mas existem outras figuras temidas que serviram de lembrete de que a Morte estava sempre à espreita.

No século VI, o Império Bizantino que cobria uma vasta área que incluía o Egito, chegando até a Itália, era atormentado por muitas epidemias de doenças. Nessa época, os bizantinos davam asas aos seus temores a respeito da Morte Encarnada, acreditando que ela assumia a forma de algo chamado Remadores.

Os Remadores eram os tripulantes de pequenas embarcações comuns nas regiões costeiras de todo Império. As naus eram, no entanto, escuras, tristes e pareciam flutuar sobre um véu de névoa cinzenta. Mais terrível ainda, os remadores vestiam mortalhas sombrias e conduziam os barquinhos impulsionando-os com grandes remos de madeira seguros por mãos esqueléticas. Para piorar, esses remadores usavam capuzes que ocultavam um horrível detalhe de sua anatomia: nenhum deles tinha cabeça!

Quando uma pequena embarcação era vista solitária no horizonte, nada poderia ser maior indicativo de má-sorte. Para muitos o avistamento de tal embarcação à distância significava que a praga estava para aportar em terra e que até ela ir embora, muitos morreriam. Historiadores bizantinos afirmavam que a lenda teve origem no Egito em meados de 547 dC, e que encontrou seu auge com a chegada de uma das mais devastadoras pandemias que se tem notícia. Chamada de Praga de Justiniano, por ter atingido até mesmo o Imperador com esse nome, o mero sinal de um barquinho sendo remado por três ou mais pessoas era motivo para colocar a população em um pânico incontrolável. 

Também no século VI, outra epidemia conhecida como Praga de Elliant, causou furor e alimentou a imaginação das pessoas com uma lenda macabra. Iniciada no vilarejo francês de Elliant, na Bretanha, por volta do ano 500 da era Cristã, a epidemia devastou por completo o lugar. Os únicos sobreviventes teriam sido uma mulher e seu filho de colo. Os dois teriam sido poupados, mas a partir dali, passaram a ser considerados por muitos como uma imagem encarnada da Morte.

Conhecida como "Mãe e Filho", essa figura sinistra era vista como uma espécie de arauto que anunciava a chegada de doenças e pestes. Eles viajavam pelas estradas: a mulher muitíssimo magra, coberta com trapos, levando agarrada ao seio murcho um bebê igualmente esquálido a tentar sorver um pouco de leite. Avistar os dois era inequívoco sinal de mau agouro.

Diz uma lenda francesa que certa vez um cavaleiro andante encontrou uma mulher trilhando uma estrada e se aproximou dela para oferecer ajuda. Ao chegar perto, percebeu que a mulher tinha uma expressão triste e que carregava nos braços um bebê de colo. Em uma versão da história, o Cavaleiro ao perceber que se tratava da morte disfarçada, correu o mais rápido que pode até o vilarejo mais próximo, avisando a todos que a figura estava para chegar e assim salvando-os da tragédia. Mas em outra versão, o Cavaleiro tenta escapar, mas seu cavalo, afetado pela presença da morte se transforma em um esqueleto se desfazendo em segundos. E o pobre cavaleiro que perdeu os sentidos acaba se tornando ele próprio vetor da doença, contagiando o vilarejo que desejava salvar depois de ser encontrado por camponeses.


Parece recorrente que a imagem da Morte Encarnada esteja associada a uma figura feminina.

Há uma antiga lenda da Lituânia sobre uma mulher muito bonita, de cabelos loiros, trajando uma roupa imaculadamente branca. Em sua mão ela traz um lenço sujo de sangue que deixa evidente o fato dela estar doente com tuberculose ou outra doença grave. Em algumas versões ela é chamada de "Dama Branca", mais uma figura associada com a Morte.

A Dama Branca vaga sozinha pelos campos, mas pode ser vista em vilarejos e cidades. Ela costuma acenar para as pessoas, e não falha: aqueles que acenam de volta estão fadados a contrair a terrível doença que ela carrega. Uma das superstições enraizadas no folclore local é que mulheres sozinhas não devem acenar, pois é um lembrete dessa horrível lenda. 

Em outra variante presente na Polônia e Ucrânia, uma mulher igualmente bela e vestindo branco costuma espiar para dentro das casas. Ela bafeja os vidros de janelas e escreve a palavra morte. Aqueles que na manhã seguinte leem a mensagem estão fadados a contrair tuberculose e morrer da doença, pois a mulher não é outra senão a morte disfarçada.

Como lidar com essas aparições sinistras? Diz o folclore do leste europeu que se um herói tomar das mãos da Dama Branca o lenço e o queimar dentro de uma igreja, a peste será detida. Mas essa façanha não é nada fácil visto que tocar a criatura resulta em morte imediata para qualquer pessoa. Essa lenda é tratada com destaque em uma canção popular chamada A Balada de Morowa Dziewica (ou a Donzela da Peste).

Mais para o leste, a Rússia apresenta não apenas uma, mas duas "Donzelas da Peste" em seu folclore. O escritor polonês Kazimiérz Władysław escreveu em 1837 a respeito de uma delas, descrevendo a criatura com o nome "Dzuma" (que significa "Praga" no idioma). 

A Dzuma é uma mulher velha que vaga pelas estradas sem um destino específico. Ela conduz uma carroça escoltada por três corujas, bem como alguns "galos cujo canto ocorre à noite e que assustam cães e os faz ladrar de medo". A Dzuma pode ser reconhecida pelos olhos que brilham no escuro, como duas chamas azuladas. Ela costuma soprar na direção das pessoas que cruzam seu caminho e essas acabam contaminadas pelo hálito de morte da criatura.


Os cães a detestam e segundo o folclore russo, quando eles uivam durante a noite, pode ser um indicativo de que a Dzuma está por perto. Para afugentar essa figura aterrorizante, os camponeses soltam seus cães e deixam que eles vaguem à procura dela. Quando a encontram latem sem parar e se os moradores do vilarejo tiverem sorte, isso será o bastante para espantá-la.

Também vem do folclore russo a lenda da Powietrze, que significa literalmente "vapor" ou "ar" (no sentido de "ar contaminado"). Essa entidade em particular aparece nos arredores de vilarejos isolados e novamente carrega em suas mãos um lenço ensanguentado. Ela pode ser reconhecida por um detalhe curioso: de sua boca ascende um estranho vapor, mesmo em dias agradáveis e quentes.

De acordo com a lenda, a Powietrze busca por um companheiro que foi levado pela peste, um homem que só descobriu seu amor pela donzela no momento em que ele próprio contraiu a doença. A mulher se ofereceu para cuidar dele até que a morte o levasse. Com o intuito de encontrar um novo amor da esma forma, a mulher se tornou um espectro que tenta contaminar homens jovens para que eles, no leito de morte, também se apaixonem por ela.

Dizem que o beijo da Powiertrze pode causar ou curar a peste. Ela costuma atirar beijos à distância e sua presença pode ser captada pelo som de estalo de lábios ao beijar. Por essa razão, em certas partes da Rússia, o som de beijos é visto como fonte de mau agouro ou azar.

Uma personagem ainda mais sinistra faz parte do folclore da Grécia e é chamada de "Ruminante". A morte nesse caso se veste como uma velha de aparência medonha, com uma corcunda adunca, expressão maligna e olhos cobertos de cataratas. Essa aparição é urbana, podendo ser encontrada em porões desertos, casebres abandonados ou poços secos. A criatura existe para espalhar doença e o faz cuspindo ou ruminando sobre a comida das pessoas, por isso ela pode ser encontrada também perto de despensas, silos de estocagem ou moinhos.


A velha costuma ter em sua boca desdentada um macerado de folhas venenosas que ajudam a formar uma grossa saliva de aparência nauseante. Esta é usada para transferir a doença que ela passa sem qualquer pudor. Muitas vezes a Ruminante é vista pedindo comida, pois afirma sentir fome e depender da caridade alheia. Mas isso não passa de um truque para ela ser levada até o lugar onde comida é guardada, comida esta que será contaminada. 

A velha não precisa comer, ao invés disso a contamina e deixa em algum lugar onde outra pessoa faminta a encontrará. Ao consumi-la, a doença será passada. A lenda é usada como uma forma de alerta para jamais abandonar comida sem supervisão, do contrário a Ruminante poderá contaminá-la.

Outra figura assustadora está relacionada ao Folclore da Itália.

A tradição ancestral etrusca conhecida como Stregheria se refere, em geral às praticantes de um tipo específico de bruxaria ou magia negra. Contudo, em alguns casos também pode se referir a uma figura que representa a própria Morte. A Mala Stregha seria uma Feiticeira Suprema, mas em alguns casos ela é vista como a própria Morte usando um disfarce, sendo patrona das cabalas de feiticeiras, interessada em transmitir seu conhecimento às suas discípulas e protegê-las.

Na Idade Média, acreditava-se que a Mala Stregha ensinava à suas seguidoras mais próximas feitiços que permitem disseminar doenças e espalhar pestes com enorme rapidez. Mulheres que praticavam um tipo de "magia folclórica", sobretudo com o propósito de promover curas mágicas, foram acusadas de serem as causadoras diretas de epidemias que dizimaram cidades italianas. Em 1512, uma grande peste varreu o sul da Itália e um grupo de mulheres foram acusadas formalmente e julgadas como responsáveis por terem iniciado a Peste seguindo as ordens da pérfida Mala Stregha.

Mas há outras Encarnações da Morte e falaremos a respeito delas na continuação desse artigo.

(cont...)

3 comentários:

  1. Post longo, mas impossível de parar de ler.

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  2. Muito interessante,sempre fui fascinado com a morte e as superstições que rondam o assunto.

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  3. Adoro todo o assunto que envolva stregharia. Posso sugerir uma reportagem sobre o assunto ?

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