Uma das coisas mais tristes que pode acontecer com uma pessoa, é morrer sem que ninguém saiba quem é você, pois sua identidade é desconhecida. Sua morte não foi percebida por amigos, parentes, ninguém... É um pensamento sombrio imaginar que sua identidade pode cessar de existir de uma hora para outra sem que ninguém se importe. Infelizmente, tal coisa é relativamente comum nos anais das mortes envolvendo pessoas que parecem ter vindo de lugar nenhum. Aqui temos o caso de uma mulher que morreu sob circunstâncias misteriosas, que não tinha nome, identidade, ou mesmo uma face. Um caso que se tornou uma das mais sinistras mortes da crônica policial.
Na manhã de 5 de julho de 1982, um coveiro chamado George Kise estava trabalhando no Cemitério Cedar Ridge em Blairwood, Nova Jersey, quando se deparou com algo que marcaria sua vida para sempre. Caído no centro de um terreno baldio que conduzia até um pequeno riacho havia um corpo humano, que sob uma inspeção mais próxima se revelou pertencer a uma jovem mulher, parcialmente despida. Mas o que realmente chamou a atenção de Kise era o fato de que o rosto havia sido totalmente destruído por golpes que apagaram dela qualquer chance de reconhecimento. A face era uma sangrenta impressão digital, uma mancha vermelha escura, com o crânio esmagado e cabelos loiros empapados. A polícia foi contatada imediatamente e respondeu com diligência, encontrando o coveiro em estado de choque. Esse incidente daria início a estranha jornada de um dos mais famosos e surpreendentes assassinatos sem solução.
Quando as autoridades chegaram e examinaram o cadáver ficou claro que a identificação não poderia ser feita através da fisionomia, já que o rosto da vítima praticamente não existia. Tamanha era a destruição facial que sequer a cor dos olhos podia ser determinada. O restante do corpo estava relativamente intacto comparado com os horrores da cabeça. Tratava-se de uma jovem mulher caucasiana, com idade entre 14 e 18 anos, medindo algo em torno de 1,65 de altura e pesando 55 quilos. Seus cabelos eram longos, com uma coloração castanha clara e ela vestia uma blusa vermelha com decote em v e uma saia com detalhes estampados. Como enfeite tinha em volta do pescoço um cordão fino com uma cruz de ouro e dois brincos com pingente branco perdidos em meio ao cabelo emplastado de sangue e massa cerebral. Estranhamente havia esmalte vermelho, mas apenas nas unhas mão direita.
A causa da morte foi determinada pelo legista do condado de Blairwood: um violentíssimo espancamento que se concentrou na cabeça e na face, suficiente para afundar o crânio e o rosto de tal forma que nada restou de remotamente discernível. O oficial Eric Kranz, um dos primeiros policiais a chegar na cena do crime descreveu a descoberta da seguinte forma: "Ela foi apagada. O criminoso a apagou da existência. Não restava nada dela. Quem fez isso, só pode ter agido sob enorme emoção".
O corpo foi levado até o escritório do legista para exames mais profundos, que encontraram obstáculos para aferir o que havia acontecido. A análise preliminar estimou que ela estava morta há vários dias antes de sua descoberta, possivelmente até mais tempo já que o calor e umidade tornava difícil julgar o grau de decomposição. A despeito disso, o especialista conseguiu apurar que ela tentou se defender de seu agressor, como demonstravam ferimentos e contusões nos braços. Apurou ainda que ela não sofreu ataque de natureza sexual, embora suas roupas íntimas estivessem ausentes. Não havia drogas ou substâncias em seu organismo e apenas uma quantidade ínfima de álcool. Ela não havia dado a luz, estava bem alimentada, até então em bom estado físico e não parecia alguém sujeito a vida na rua. Mas, ainda que todos esses detalhes tenham sido trazidos à tona, não havia nenhuma pista de quem ela era ou como havia terminado naquele descampado isolado. Arquivos dentários e digitais não resultaram em nada. Ela era, e continua sendo, para todos os efeitos, um fantasma.
Com a descoberta do cadáver misterioso naquele estado, uma investigação foi imediatamente iniciada, com as autoridades buscando prioritariamente revelar a identidade da vítima. Vários métodos de reconstrução facial foram tentados para determinar como poderia ser sua fisionomia, mas a divulgação destes na mídia não produziu resultados. Enquanto nada era apurado sobre a identidade da mulher sem nome, ela recebia o apelido de Princesa Doe.
Algumas semanas depois, uma testemunha que se identificou apenas pelo nome de Latimer entrou em contato com a polícia. Ela afirmava ter visto a mulher dois dias antes de sua morte em 13 de julho. Ela acreditava ter encontrado a moça numa loja de departamentos bem próxima da rua que conduzia ao cemitério. Ela estava certa que se tratava da vítima, uma vez que se recordava claramente da blusa vermelha e da saia estampada.
"Eu a vi. Minha filha de seis anos estava comigo. Ela comentou comigo a respeito da saia da moça ser muito bonita. Eu concordei e cheguei a pensar em perguntar a ela onde havia comprado aquela peça, pois realmente chamava a atenção. Mas ela parecia com pressa e deixou o corredor se afastando empurrando um carrinho de compras".
Os policiais ficaram tão interessados nesse testemunho que chegaram a pedir autorização para hipnotizar a Sra. Latimer para tentar encontrar mais algum detalhe que pudesse ajudá-los, Infelizmente isso não resultou em nenhuma informação adicional que pudesse contribuir para determinar a real identidade da Princesa Doe e as circunstâncias de sua morte. Um retrato falado foi feito, mas a testemunha havia se concentrado mais na saia do que na face da jovem. Tudo que ela conseguiu determinar é que era uma moça de 18-20 anos, de aparência normal.
Haveriam dúzias de outras pistas semelhantes, pessoas que acreditavam ter visto a mulher, mas que não eram capazes de elucidar as questões relativas à sua identidade. Havia muita especulação por parte da imprensa e do público. Muitos supunham que ela poderia estar em fuga ou ser alguém escondido que preferia se manter incógnita, mas nada corroborava tal teoria. Por um momento, as autoridades acreditavam que a Princesa Doe fosse uma adolescente desaparecida chamada Diane Genice Dye, que havia sumido em 30 de Julho de 1979, mas a família teve acesso às fotos e negou que se tratasse dela. Evidência de DNA realizada com amostras de cabelo colhida de Dye demonstraram anos mais tarde que elas não eram a mesma pessoa.
Incapaz de determinar quem era a mulher, as autoridades buscaram descobrir a identidade de seu assassino. Contudo, tal coisa se mostrou ainda mais difícil. Uma das pistas obtidas pelos policiais indicavam um nome: Arthur Kinlaw. O sujeito em questão comendava um sórdido negócio de prostituição em Hunts Point, com a ajuda de sua mulher Donna que tinha ficha por aliciamento de menores. A conexão com o caso ganhou força em 1998, quando Donna Kinlaw foi presa na California por fraude de seguro, usando o nome de uma prostituta que havia trabalhado para ela. Quando levada para interrogatório, Donna revelou alguns detalhes sinistros a respeito de seu marido.
Donna contou que Arthur havia matado pelo menos quatro mulheres, a maioria delas prostitutas. Uma dessas moças seria uma garota menor de idade chamada Linda que "criava problemas". Arthur, que resolvia muitos desses problemas com violência, teria usado um taco de baseball para punir a menina, mas acabou indo além da conta a matando. Para esconder a identidade ele teria usado o bastão para "pulverizar o rosto da vítima" antes de jogá-lo no East River. O problema é que Donna tinha certeza absoluta de que esse caso aconteceu em 1984, dois anos depois da descoberta do cadáver da Princesa Doe. Investigações revelaram que um cadáver desconhecido havia sido encontrado em 1985 que poderia corresponder ao crime citado por Donna e que incriminava o marido. As suspeitas sobre Arthur Kinlaw e sua propensão a violência o tornavam um suspeito em potencial.
Ele foi condenado em 1985 por ter matado uma mulher em Bellport e se livrado do corpo o enterrando num patio que depois foi coberto com concreto. Outro crime do qual ele era suspeito envolvia uma prostituta chamada Christine Kozma, que foi baleada em 1982. Alguns chegaram a supor que essa poderia ser a identidade verdadeira da Princesa, mas tal coisa nunca passou de uma suspeita. De acordo com Donna, Arthur tinha propensão à violência, sobretudo quando uma de suas moças "saia da linha". Ele as disciplinava com surras e quando exagerava, demonstrava uma sinistra habilidade para se livrar dos cadáveres dizendo que era capaz de "sumir com qualquer problema". Donna acreditava que o marido foi o responsável por matar a moça encontrada no cemitério, mas não ofereceu nada que pudesse provar sua suspeita.
Haviam outras teorias, mas novamente, nenhuma delas passaram disso. Por algum tempo, algumas pessoas acreditaram que a moça teria sido vítima de um ritual diabólico no qual sua face foi reduzida a polpa após ter a garganta cortada. Embora os jornais tenham explorado o sensacionalismo dessa manchete, ela sempre pareceu incrivelmente exagerada. Nenhuma possibilidade, entretanto foi descartada.
Se Kinlaw foi ou não o responsável pela morte da Princesa Doe, ele acabou indo para a prisão pelo assassinato de outra mulher, aquela que vivia em Bellport. Após julgamento, recebeu pena de prisão perpétua e acabou morrendo na cadeia após uma briga em 1989. Sua esposa, Donna recebeu sentença reduzida por ter cooperado com a polícia e incriminado o marido. Nenhum dos dois jamais foi acusado oficialmente de envolvimento na morte da Princesa Doe. De fato, nunca houve nenhuma evidência que os ligasse ao crime.
Mais recentemente, com os progressos na Ciência Forense a busca pela identidade da Princesa Doe recebeu um novo impulso. A maioria desses métodos não existia ou ainda estavam sob testes na década de 1980, mas haviam se aperfeiçoado desde então. Em 1999, o cadáver foi exumado para que amostras de DNA fossem colhidas. Infelizmente, as amostras já estavam demasiadamente comprometidas. Mesmo assim, a análise em amostras do cabelo e dentes revelaram alguns detalhes adicionais. A moça era definitivamente americana, provavelmente nativa do estado do Arizona como demonstrava a presença de uma microscópica poeira comum no couro cabeludo de residentes. As autoridades focaram nessa informação, mas novamente nenhuma identidade obteve correspondência nos bancos de dados de desaparecidos naquele estado.
Outro desenvolvimento que prometia lançar uma luz sobre o caso veio com a implementação da Tomografia Computadorizada (CTA Scan). Com certeza a técnica ajudaria a recompor o rosto da vítima e facilitar sua identificação. Uma aparência aproximada foi então divulgada pela imprensa e em cartazes que perguntavam se alguém reconhecia a mulher ali retratada. Com tecnologia moderna, especialistas foram capazes de fazer um modelo do crânio e obter uma composição do que eles acreditavam ser a aparência mais aproximada da vítima. A divulgação produziu várias pistas, com testemunhas se apresentando, afirmando conhecer a identidade da mulher, mas nenhuma delas foi conclusiva.
O caso da Princesa Doe continua sendo intrigante, sem uma conclusão próxima, sem a identidade da vítima ou suspeitos. O caso é apresentado em vários livros e programas de televisão, se tornando fonte de especulação e debate. Enquanto isso, os restos da vítima repousam no mesmo cemitério onde ela foi encontrada, marcada com uma lápide onde se lê:
PRINCESA DOE
"Perdida de sua casa, enterrada entre estranhos, mas lembrada por todos"
Nascida em ? - Encontrada em 15 de julho de 1982".
Embora o caso tenha esfriado com o passar dos anos, ele continua em aberto, com cada pequeno indício sendo analisado e investigado. Após décadas, o tenente Eric Kranz, responsável pela investigação se aposentou, mas jamais desistiu de encontrar uma solução, sonhando com o dia em que poderá colocar um ponto final naquilo que se tornou para ele, uma obsessão.
"Não há um único dia, que eu não pense nesse caso. Todo detetive possui um caso que marca sua carreira e que ele carrega ao longo da vida. Infelizmente, o meu caso, é um que até então, não possui solução. Por muito tempo eu sonhei com o rosto dessa moça, com a identidade e com o nome verdadeiro dela. Por mais tempo ainda, imaginei quem seria o responsável pela sua morte. Eu imagino que um dia esse caso poderá ser solucionado, talvez eu não viva para ver isso, mas de alguma forma é algo que precisa ser feito".
Quem foi a Princesa Doe? Como ela terminou sua vida em um cemitério e quem foi o responsável pelo seu brutal destino? É algo muito triste imaginar que uma pessoa teve um dia uma vida, amigos, família e que tudo isso, junto com seu rosto, lhe foi arrancado de maneira tão brutal. Ela ainda está no cemitério onde foi abandonada, sem identificação e sem um vingador, mas jamais esquecida.
Quem sabe um dia venhamos a saber quem era ela e quem é seu assassino, e este seja levado à justiça. Talvez um dia sua lápide fria seja substituída por uma pedra com um nome verdadeiro talhado que substitua o apelido Princesa Doe.
artigo triste e difícil de engolir, mas muito bem escrito.
ResponderExcluirTenho o prazer de lhes informar que Princesa Doe finalmente tem seu nome de volta. Ela she chama Dawn Olanick. Tinha 17 anos quando foi assassinada, e Arthur Kinlaw foi o responsável.
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