Com a proximidade da estréia da nova série da HBO, Lovecraft Country, esse final de semana, o livro no qual ela foi baseada ganha atenção. Lançado aqui no Brasil pela Intrínseca, com o título Território Lovecraft, a obra, escrita por Matt Ruff, utiliza elementos clássicos do universo dos Mythos, acrescentando ao gênero outras formas de terror mais mundanos, contudo, nem por isso, menos aterrorizantes.
Território Lovecraft não é exatamente um romance. Ele pode ser entendido como uma espécie de antologia formada por oito histórias curtas independentes, mas que possuem um fio condutor. Estes episódios narram acontecimentos envolvendo uma mesma família ou pessoas próximas a esse núcleo familiar que acabam atraídas por diferentes circunstâncias para uma série de estranhos eventos. A corajosa Letitia, a culta Hippolyta, o geek Horace, o dedicado George, o determinado Atticus entre outros, são personagens ligados pelo sangue que aos poucos vão descobrindo uma espécie de conspiração sobrenatural ao seu redor e que precisam lidar com implicações que mudarão suas vidas para sempre.
A primeira história da trama é que irá iniciar os eventos; nela o jovem veterano da Guerra da Coréia, Atticus Turner retorna a Chicago e descobre que seu pai, Montrose, desapareceu sob circunstâncias misteriosas. Monstrose e Atticus nunca se deram muito bem, mas a suspeita de que algo potencialmente perigoso aconteceu, leva o filho a buscar respostas. Na companhia de seu tio George e de um amiga de infância Letitia, eles deverão fazer uma viagem para encontrar o paradeiro de Monstrose. Isso os leva até uma pequena cidadezinha no interior da Nova Inglaterra e ao estranho clã dos Braithwhite que estão envolvidos com feitiçaria, magia negra e coisas ainda mais bizarras.
O que já seria uma tarefa complicada, fica ainda mais difícil em face de um "pequeno" mas marcante detalhe. Atticus, George e Letitia são negros e a viagem a um enclave branco para reclamar por justiça, é dificultada sobremaneira pelo regime de segregação social conhecido como Jim Crow que nos anos 50, época em que se passa a história, estava à todo vapor. A jornada de Chicago até Massachusetts feita por estradas nos arrebaldes da América já se mostra suficientemente arriscada e levará o grupo a ser confrontado por policiais racistas e cidadãos desconfiados e gente muito mal intencionada.
Mesmo após solucionar as circunstâncias do desaparecimento de Monstrose, os problemas estarão apenas começando. Uma vez tendo atraído a atenção do herdeiro da família, o maquiavélico Caleb Braithwhite, os personagens serão atormentados por outros acontecimentos inquietantes com direito a fantasmas, casas assombradas, portais para outras realidades, livros malditos e uma disputa entre facções de feiticeiros.
A grande sacada do livro é colocar em paralelo dois tipos de horror distintos. Um deles, o horror cósmico, é bastante familiar para os fãs de ficção e terror, mas o outro, que envolve a face mais hedionda do preconceito e opressão será uma novidade para muitos leitores. Os heróis das histórias escritas por H.P. Lovecraft nunca foram membros de minorias e portanto, jamais tiveram de enfrentar percalços como, por exemplo ter de fugir às pressas de linchadores. Quando o livro coloca personagens negros no papel de protagonistas acerta em cheio ao fazer uma crítica contundente do período e também da forma como Lovecraft enxergava essas pessoas. Sem querer entrar no mérito do do grau de racismo de Lovecraft, o resultado é bastante interessante e inovador.
Lovecraft Country é um sólido entretenimento. Recheado com situações inusitadas e um estilo de escrita agradável, as histórias cumprem a proposta de manter o leitor curioso a respeito do que irá acontecer à seguir e compelido a virar as páginas. É claro, algumas histórias são mais interessantes do que outras, mas de um modo geral, todas elas tem os seus atrativos. Uma vez que o nome "Lovecraft" aparece em destaque, o leitor pode esperar encontrar criaturas e entidades clássicas, mas é bom deixar claro que tal coisa não acontece. Embora haja alguns horrores tipicamente lovecraftianos, aqui e ali, eles não remetem a Cthulhu, Nyarlathotep, Azathoth e outras entidades populares.
A seguir, a lista das histórias e o sumário de cada uma, sem spoilers, apenas o suficiente para dar um gostinho:
"Lovecraft Country" é a história mais longa na qual os protagonistas viajam até a misteriosa cidade de Ardham (sim, com "d" mesmo) e conhecem a Família Braithwhite e seu estranho Culto.
"A Casa Assombrada dos Sonhos" envolve a herança de uma mansão e de um fantasma que a habita.
"O Livro de Abdullah" diz respeito a um raro tomo perdido com conhecimento místico e uma perigosa operação que visa obtê-lo custe o que custar.
"Hippolyta Perturba o Universo" é sobre a descoberta de um portal dimensional que conecta a nossa realidade com outro planeta onde habitam coisas inacreditáveis.
"Jekyll em Hyde Park" envolve uma fórmula mágica capaz de mudar a vida de uma mulher negra, e de até onde ela está disposta a ir para mudar.
"A Casa Narrow" é sobre um encontro com assombrações e fantasmas do passado.
"Horace e o Boneco do Diabo" diz respeito a um brinquedo assassino e uma terrível maldição lançada por um feiticeiro.
Finalmente, "A Marca de Cain" fecha a antologia com uma derradeira reunião entre vários dos personagens apresentados nas histórias anteriores e o embate final contra o vilão Caleb Braithwhite.
De todas as histórias, a primeira que dá título ao livro e a quarta, sobre o portal entre dois mundos, foram as que mais gostei. Essa última, com direito a viajantes dimensionais ilhados em outra realidade, um predador aterrorizante e vários perigos é particularmente empolgante e tem uma vibração condizente com o Horror Cósmico. Infelizmente, as histórias sobre fantasmas e casas assombradas, soam como uma nota dissonante, não são ruins, mas parecem um tanto fora do contexto. Já o conto sobre uma criança às voltas com um boneco homicida e a do roubo de um tomo com conhecimento apocalíptico escondido num museu, são bastante boas. Haja vista que as narrativas não são de terror extremo, visando causar choque ou sustos, mas com uma construção lenta e ponderada.
Um dos méritos do livro é apresentar personagens com os quais acabamos nos importando. O núcleo familiar formado pelos Turner e seus amigos, é muito bem construído, sobretudo no que diz respeito às personagens femininas que tem nuances admiráveis. As irmãs Letitia e Ruby são as minhas favoritas e a história de Ruby, um pastiche de Médico e o Monstro, também funciona perfeitamente.
No entanto, é preciso reconhecer que Ruff recorre a um certo grau de maniqueísmo fazendo com que os personagens negros sejam invariavelmente virtuosos e bons, enquanto praticamente todos os brancos são retratados como racistas raivosos. Até mesmo quando descreve uma magia conjurada por um protagonista, este se vê envolvido por uma energia negra que o protege de um brilho branco ameaçador. Talvez, se o autor explorasse uma área fronteiriça, digamos cinzenta, o resultado fosse mais interessante. A única vez que ele o faz é justamente através do vilão, Caleb que tem sua própria agenda dúbia e acaba sendo o catalizador da maioria dos contos.
De toda maneira, repousa nas experiências vividas por Atticus e companhia, que gravitam muito acima do reino da fantasia a força que alimenta Território Lovecraft. Os vários trechos retratando sem maquiagem a injustiça, perseguição e preconceito raciais conseguem ser tão, ou até mais, assustadores do que aqueles envolvendo aberrações cheias de tentáculos.
Acabei de saber da série apenas pelo poster e decidi não dar atenção por enquanto. Mas o que encontro quando abro meu blog favorito? Exatamente o que precisava para dar uma chance para ela e de quebra, ainda me embrenhar no terrível e maravilhoso território desse livro promissor. As vezes parece mesmo que as estrelas se alinham...
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