segunda-feira, 16 de novembro de 2020

RPG do Mês: Ice Wind Dale - Rime of the Frostmaiden: Campanha no Vale do Vento Gélido


Icewind Dale: Rime of the Frostmaiden (algo como Vale do Vento Gélido: A Geada da Donzela Congelada) é a última aventura oficial lançada para a quinta edição do "maior RPG de todos os tempos", popularmente conhecido como Dungeons & Dragons. De fato, não se trata exatamente de uma aventura, e sim de uma campanha. E uma bem extensa e incrivelmente complexa!

Esse estilo de suplemento com aventuras para D&D parece ter agradado aos fãs, o que se reflete no sucesso de público e crítica que tais livros alcançaram. Essas campanhas prontas apresentam locais famosos e oferecem a oportunidade de conhecê-los à fundo e explorá-los, algo que agrada em cheio, haja visto o êxito de publicações anteriores, como Maldição de Strahd (Barovia), Tomb of Annihilation (Chult) e Dragon Heist (Waterdeep). Em comum, essas campanhas acompanham os heróis desde o início de suas carreiras como aventureiros, levando-os até níveis mais altos de poder e habilidades.

IceWind Dale segue exatamente essa premissa. Ele leva os personagens do primeiro ao décimo-primeiro nível de experiência, a medida que os lança em aventuras no extremo norte de Faerun, o mundo de Forgotten Realms. A campanha, com cerca de 50 páginas a mais que as anteriores, é uma grande jornada através de IceWind Dale. Ele desenvolve de forma magistral o background da região, seus mitos e sua história, tornando esse ambiente impiedoso um dos mais interessantes até aqui. À primeira vista, alguns poderiam considerar essa vastidão desolada como um terreno estéril, pouco empolgante, mas é justamente o contrário. O Vale Gélido, com suas extensões cobertas de neve, é retratado como uma terra perigosa, vibrante e repleta dos mais variados desafios. Nessa campanha, o grupo não enfrentará apenas inimigos poderosos e seres malignos, mas terá de lidar com um clima hostil e uma natureza que conspira para eliminá-los à todo momento. Frio extremo, escuridão quase completa, fome e privações constituem ameaças constantes.


Começando com uma série de pequenas missões e então culminando num evento de proporções épicas, a campanha mergulha nos segredos insondáveis do norte, combinando exploração clássica com uma paleta escura de aventura e horror. Em determinados momentos da campanha, os heróis terão de escolher entre caminhos moralmente perigosos, tomar decisões conflitantes e lidar com as consequências diretas de seus atos. E acreditem, poucas campanhas oferecem dilemas tão complexos quanto esta.

Para aqueles que conhecem pouco a respeito de IceWind Dale, talvez seja interessante falar um pouco a respeito dessa ambientação. Apresentada nos romances protagonizados pelo heroico elfo negro Drizzt Do'Urden, escritas por R.A. Salvatore, IceWind Dale seria uma espécie de fronteira selvagem em um mundo já selvagem. Ocupando o extremo norte de Faerum, o Vale conjuga uma mescla incomparável de beleza e perigo. Vales cobertos de um branco imaculado, picos nevados e lagos plácidos, atraíram um tipo único de colonizadores obstinados, que enfrentaram além do frio e das privações, tribos bárbaras e perigosos orcs. Lá estabeleceram uma confederação de pequenos vilarejos que resplandecem como o único resquício de civilização nesse ermo gélido, os Dez Burgos


O povo de Dez Burgos é naturalmente áspero, duro, acostumado às intempéries e por natureza do tipo sobrevivente. Assim como seu habitante mais famoso, o Drow Drizzt, boa parte de seus residentes são fugitivos, criminosos, excluídos da sociedade ou párias escorraçados das cidades do sul e que buscam um esconderijo e porto seguro. A outra parcela dos moradores é formada por colonos interessados em enriquecer, explorar e domar o ambiente pela força se necessário. É claro, a tarefa não é nada fácil. Os vilarejos que compõem a confederação existem à beira da desgraça, com o fracasso sinalizando à cada estação e disputas internas azedando as relações. Nevascas devastadoras, tribos hostis e monstros completam o rol de ameaças, com perigos espreitando na vastidão gelada. Muitas vezes uma tímida lareira, bebida forte ou o companheirismo dos aliados serão o único conforto oferecido aos aventureiros. Ainda assim, oportunidades se oferecem aos que enfrentam esse território impiedoso. Há riqueza no interior de masmorras esquecidas, magia poderosa e incríveis artefatos aguardando quem for bravo o bastante para reclamá-los.

IceWind Dale sempre foi implacável, mas em Rime of the Frostmaiden, as coisas são ainda mais dramáticas. Na trama, Auril, a Deusa do Inverno e da Escuridão (e a Donzela Congelada do título da Campanha), mergulhou a região numa noite eterna e num frio quase insuportável. Quando a campanha tem início, encontramos o povo dos Dez Burgos em situação desesperadora, tentando resistir aos tormentos da cruel divindade. Os planos pérfidos dela são o motor da campanha e o que coloca os incidentes em movimento. Os perigos de um inverno incessante estarão presentes em toda trama, o que inclui avalanches, nevascas e um frio de gelar os ossos. Os heróis terão de vestir casacos pesados, se proteger a cada noite e tentar iluminar a escuridão que os envolve. Nesse ambiente feroz, monstros e terrores aguardam pacientemente, dispostos a atacar quando a guarda estiver baixa ou quando as fogueiras se extinguirem. A vantagem é toda deles!


Os personagens dos jogadores terão de demonstrar resistência física e mental, o que permitirá excelentes oportunidades para roleplay. Além de dicas para inserir diferentes backgrounds na campanha, o DM pode utilizar uma lista de segredos que ajudam a apimentar as coisas. Estes segredos podem ser escolhidos ou sorteados no momento de criação dos personagens e eles oferecem ótimas ideias para aprofundar a vivência dos heróis. Alguns segredos são muito interessantes e em um simples parágrafo fornecem linhas narrativas que farão a alegria de mestres e jogadores voluntariosos. Que tal jogar com um pirata forçado ao canibalismo? Ou com um espião enviado por poderosas facções? Quem sabe o personagem foi criado por um Yeti ou possui uma família importante na região? Esse conceito de "segredo" é uma ideia tão legal que não vou estranhar se ela se converter em algo comum nas próximas campanhas.

Ainda no quesito de novidades para os jogadores, o livro reedita a possibilidade de criar e jogar com os Goliath. Esse povo formado por orgulhosos humanoides de estatura avantajada (podendo chegar a quase 3 metros de altura), são preferidos dos jogadores que veem neles a chance de interpretar uma raça perfeita para o combate e que oferece excelentes opções para guerreiros, bárbaros e rangers. Na versão de IceWind Dale, os Goliath são reclusos habitantes das montanhas, membros de tribos beligerantes que se enfrentam há milênios. O que os motiva é a competição e o desejo de superar as façanhas de seus pares, demonstrando assim seu valor individual. Mal posso esperar para ter um destes na minha mesa!


Rime of the Frostmaiden pode ser dividida em dois módulos principais. 

As primeiras aventuras se desenvolvem no entorno dos Dez Burgos com várias missões para conhecer a área e os personagens que vivem ali. Cada uma das cidades, algumas delas pouco mais do que simples povoados, são apresentadas em detalhes com os pontos chave - cidadãos proeminentes e prédios principais, bem definidos. Cada um dos assentamentos que integram os Dez Burgos tem características próprias, grupos rivais, potenciais inimigos e aliados valiosos. É bastante interessante descobrir ao longo da campanha quais as agendas dessas facções e a mentalidade de seus líderes, o que eles planejam e o que querem atingir. As coisas então se expandem para encompassar uma área mais vasta de IceWind Dale com cidades maiores e acampamentos de tribos nômades que serão visitadas em algum momento.


Os estágios iniciais da campanha utiliza marcos de experiência, com aventuras soltas que podem ser jogadas em qualquer ordem de acordo com o critério do mestre. Cada cenário se passa em uma das cidades dos Dez Burgos e permite explorá-la. O suplemento recomenda que os jogadores passem de nível após a primeira aventura e depois avancem mais lentamente com a conclusão de determinado número de aventuras. Nesse primeiro momento, os cenários seguem uma estrutura simples, na qual o grupo cumpre missões que envolvem explorar recantos isolados, confrontar druidas renegados, recuperar cargas roubadas nas estradas e aplacar a ira de espíritos da natureza. Algumas destas serão rápidas e podem ser concluídas sem sequer desembainhar uma espada. O grupo também deverá desvendar o mistério do monstro de um lago, agir como diplomatas entre tribos bárbaras e descobrir uma conspiração sombria que ameaça destruir a Confederação dos Dez Burgos. Essa conspiração é um dos pontos altos da primeira parte, na qual os heróis deverão enfrentar inimigos terríveis e suas maquinações. Sem revelar muito e evitando recair em spoilers, o que posso dizer é que o fechamento dessa primeira parte da campanha lançará os jogadores em um confronto contra uma fera devastadora. Se eles sobreviverem (e há o risco de ninguém sobreviver!) eles se tornarão os grandes heróis de IceWind Dale.

Quem prestou atenção deve ter reparado que em momento algum o nome da Deusa Auril foi citado. Mas quando a segunda parte da campanha se inicia ela se torna rapidamente o oponente mais perigoso, quase que uma presença onipresente na trama. Tendo lidado com as ameaças da primeira parte da campanha, os heróis já em sétimo nível, podem imaginar já ter passado pelo pior, mas o pesadelo está apenas começando. De fato, o que vem em seguida deixa a impressão de que eles enfrentaram um simples aquecimento. Nas sessões seguintes os heróis devem revelar os segredos contidos nos planos da Donzela Congelada e explorar uma série de lugares assombrados, terríveis, ameaçadores, ou tudo ao mesmo tempo. Estes vem na forma de vastas masmorras, perigosas fortalezas, no coração de montanhas, nas profundezas de geleiras, e num lugar aterrorizante chamado Cavernas da Fome. Lembre-se bem desse nome, ele tem grandes chances de se tornar sinônimo de HORROR na sua mesa de jogo.


Essas explorações colocarão os heróis em uma rota de colisão com a própria Auril e farão com que eles se tornem o foco de sua ira. A Dama Congelada usará todos seus poderes para sabotar os heróis, tornando cada viagem, cada deslocamento uma verdadeira saga de perigo e provação. Há a chance de enfrentá-la em pessoa em diferentes oportunidades o que fará com que as habilidades dos personagens sejam estadas até seus limites. É nesse embate e na desvantagem de enfrentar uma divindade poderosa que reside alguns dos melhores momentos da campanha. Certos momentos lembram uma campanha de Chamado de Cthulhu na qual a desvantagem dos protagonistas fica evidente.

Por falar em Cthulhu, não faltam referências ao Horror Cósmico salientando a incômoda sensação de isolamento e a impotência diante de forças esmagadoras. Referência óbvia, a novela "Nas Montanhas da Loucura" encontra eco nas descrições de cidades milenares erguidas por raças antigas e enterradas na neve, da vastidão gelada escondendo pesadelos indescritíveis e de uma paranoia crescente que fará os jogadores duvidarem de tudo e todos à sua volta. Uma referência clara é um oponente terrível que atende pelo nome Tikeli-li. Não por acaso, Regras de Loucura são recomendadas para pautar a erosão da sanidade mental dos personagens.


A lista de NPCs e principalmente vilões é extensa e preenche o maior dos apêndices do livro. Alguns destes personagens são bastante carismáticos e com certeza se tornarão personagens temidos pelo grupo e lembrados muito tempo depois da campanha terminar. A adição de monstros e abominações nativas de clima gelado também é bem vinda, expandido o rol de inimigos e incluindo oponentes com capacidades até então desconhecidas.

Em determinado momento, algumas das cenas podem parecer muito direcionadas, e a mão do DM pode pesar, exigindo uma ordem pré-definida a ser seguida, por exemplo: "O grupo precisa encontrar um artefato e só através dele poderá explorar outra área", e assim por diante. Entretanto, apesar desse railroad, o roteiro flui muito bem. Um dos pontos altos da campanha envolve as já mencionadas escolhas morais que os personagens terão de fazer em um determinado momento. Estas assumem a forma de Testes impostos pela Donzela Congelada (a saber os testes envolvem crueldade, resistência, isolamento e preservação). Nem todos esses testes poderão ser vencidos através das armas, e ser derrotado por algum deles, irá impor severos danos psicológicos aos personagens. 


Também de enorme interesse é a exploração de um complexo ancestral, parte central do cânon de Forgotten Realms e que surpreendentemente surge nessa campanha. Para quem curte uma boa e velha dungeon crawl, não irá faltar armadilhas e enigmas a serem decifrados para progredir aposento por aposento. O final da campanha estará reservado para grandes revelações, reviravoltas inesperadas e confrontos mortais. O objetivo final da campanha é salvar IceWind Dale da escuridão perpétua e da tirania de Auril, mas em determinado momento a luta será pela sanidade, pela liberdade e pela vida.

Para os fãs ardorosos de Dungeons & Dragons, Rime of the Frostmaiden desponta desde já como uma de suas melhores campanhas. É uma daquelas campanhas que congrega elementos inovadores e clássicos em um mesmo pacote e que nos faz querer retornar ao mundo de fantasia com desejo por mais.



Nenhum comentário:

Postar um comentário