Estamos de volta com "Re-lendo Lovecraft" onde reencontramos linhas e parágrafos de algum dos contos clássicos escritos por H.P. Lovecraft. Interpretamos uma história sob um novo e crítico olhar. Essa é a vez de "Vento Frio" (Cool Air) um conto menor do autor, mas que possui uma série de detalhes interessantes e que rendem uma boa discussão. A história foi escrita em meados de março de 1926 e publicada dois anos mais tarde, em março de 1928, numa edição de Tales of Magic and Mystery.
Sumário da História: Um narrador - em nenhum momento identificado, se dirige a um amigo cujo nome tampouco é mencionado. Ele explica as razões pelas quais qualquer corrente de vento frio lhe causa incômodo semelhante a um cheiro desagradável, ao ponto de fazê-lo se arrepiar e sentir náuseas.
O narrador relata fatos ocorridos em 1923, época em que ele vivia em Nova York, trabalhando como autor freelance, escrevendo para revistas pulp. Após experimentar uma sucessão de quartos baratos em pensões, ele encontra alojamento em uma casa antiga que aparentemente já viu dias melhores. Ao menos, o lugar é limpo e a água quente raramente corre fria. Os demais inquilinos são espanhóis, mas em suas palavras "estão acima do nível mais grosseiro e rude" além de serem misericordiosamente pouco comunicativos. Portanto, ele pode "hibernar" por ali até encontrar um lugar melhor.
Certo dia, gotas de amônia pingam em seu quarto. A mancha que se forma no teto indica que ela vem do andar superior. A senhoria informa que o Dr. Muñoz, o cavalheiro que ocupa o quarto acima dele, deve ter derramado produtos químicos. Conta ainda que homem está doente, mas insiste em se automedicar - sobretudo porque ele já foi um médico famoso em Barcelona. Sua doença é estranha, exige que ele evite excitação e calor. Ele portanto mantém seu quarto constantemente refrigerado, daí o cheiro de produtos químicos e o ruído de gerador vindo de cima.
O narrador reflete sobre a grandeza fugaz do Dr. Muñoz até que um ataque cardíaco repentino o leva aos trancos e barrancos escada acima em busca de ajuda do médico recluso. Ele fica surpreso com a rica decoração, mais adequada ao escritório de um cavalheiro do que ao quarto duma pensão esquálida, mas os móveis suntuosos combinam com o médico. Seus trajes formais, aparência distinta e expressão grave evidenciam inteligência e alta educação. Sua pele lívida, suas mãos geladas e sua voz oca, entretanto inspiram uma certa repugnância. Mas a grande habilidade médica e gentileza do Dr. Muñoz conquistam o narrador que supera sua desconfiança inicial. Muñoz o auxilia, e os dois se tornam amigos. O médico lhe oferece um trabalho como assistente e parece grato em ter um visitante educado com quem possa conversar. Os dois falam à respeito de teorias singulares sobre o poder da vontade e a capacidade de preservação por meios artificiais.
"Depois daquele dia, nunca mais vi os olhos do Dr. Muñoz" |
O narrador retorna aos aposentos gélidos sempre vestindo um sobretudo reforçado para receber tratamento para seu coração fraco. Muñoz é um doutor bem pouco convencional que dá atenção à sabedoria dos medievalistas e leva em conta o conhecimento ancestral. Ele foi aprendiz do velho Dr. Torres, que partilhou pesquisas extraordinárias com Muñoz e o salvou de uma doença terrível dezoito anos atrás.
Infelizmente, a saúde de Muñoz vem se deteriorando e ele tem se tornado cada vez mais doente e fraco. Seu quarto é perfumando com especiarias exóticas e a temperatura é mantida abaixo de zero para seu conforto. O narrador assume a função de secretário: cozinhando, limpando e comprando os itens necessários para a continuidade dos estudos. Contudo, Muñoz segue piorando e sua condição parece cada vez mais debilitada. Ele ri das sugestões gentis do narrador sobre preparativos para um eventual funeral.
Certa noite, a bomba do aparelho de refrigeração quebra. O narrador não consegue consertar, e Muñoz fica extremamente agitado. Ele passa a proteger o rosto com bandagens e se refugia no banheiro que ainda conserva a temperatura. Mas o aumento da gradual da temperatura no apartamento o obriga a tomar medidas desesperadas. Muñoz ordena que se compre uma quantidade grande de gelo e mergulha numa banheira. Ao amanhecer, o narrador contrata um sujeito para buscar gelo, enquanto sai em busca de peças para consertar o refrigerador.
É tarde quando ele finalmente retorna encontrando a pensão num grande alvoroço. O sujeito contratado para achar gelo fugiu aos berros, aparentemente depois de ficar curioso sobre o que estava acontecendo no banheiro. O cheiro dos aposentos do médico é medonho, e apenas um gotejamento lento e espesso pode ser ouvido lá dentro. A senhoria autoriza o narrador e alguns homens a arrombar a fechadura. Lá dentro encontrar um rastro viscoso do banheiro até a escrivaninha da sala, onde uma grande poça nauseante se formou. Em seguida, outro rastro leva até um sofá arruinado por um resíduo nauseabundo que o narrador não ousa descrever.
A coisa encontrada no sofá e que não é descrita pelo narrador |
O narrador queima as notas deixadas sobre a escrivaninha, a derradeira mensagem do Dr. Munoz que explica a natureza de sua terrível doença, um mal do qual ele não podia escapar indefinidamente. Isso porque Muñoz havia morrido dezoito anos antes.
DISSECANDO O CONTO:
O que é tipicamente Lovecraftiano: Ar Frio é bem econômico em adjetivos tipicamente lovecraftianos e nas descrições rebuscadas que fazem parte de seu estilo. Talvez por conta da arquitetura de Nova York não possuir os telhados góticos e solares assombrados como os da sua Nova Inglaterra natal.
O que é Degenerado: Um dos focos principais de Ar Frio é a Degeneração. O Dr. Muñoz, cuja doença não é nada mais além de morte disfarçada em vida através de meios não naturais, sofre uma lenta porém gradual degeneração. Seu corpo requer condições ideais para continuar funcionando: seus órgãos, sua carne e seu sangue para não se deteriorarem carecem de um clima frio constante, do contrário a degeneração leva à sua ruína completa. A morte, inescapável no final das contas, espreita sempre que a temperatura no abrasador verão de Nova York aumenta. Lovecraft usa as variações na temperatura para escalar o terror do morto-vivo que sabe não haver maneira de escapar de sua sina.
O que pertence ao Mythos: Não há menções específicas ao Mythos, ao menos nenhuma direta. O Dr. Muñoz, no entanto, tenta "manter sua consciência e vontade mais forte que a degradação orgânica", o que soa muito bizarro. Uma pena ele não ter tido acesso aos Yithianos, que poderiam ajudá-lo em sua busca. Por outro lado, ele tem sorte de não ter encontrado Joseph Curwen ou Herbert West, outros acadêmicos interessados nos segredos ancestrais que promovem vida após a morte. Talvez os métodos cabalísticos empregados por Curwen em "O Estranho Caso de Charles Dexter Ward" ou as fórmulas bizarras do Dr. West em "Re-Animator", guardem alguma similaridade com os métodos usados por Munoz e aprendidos com o misterioso Dr. Torres.
Tomos e Livros Blasfemos: As pesquisas de Muñoz e sua busca envolve uma vasta coleção de "Antigos e pouco convencionais livros", mas o narrador prefere não mencionar quais são eles. É uma pena, seria interessante saber quais os títulos o Dr. Muñoz estudou e onde ele e Torres encontraram as bases para seu estudo.
O Dr. Muñoz recorre a banhos de gelo numa desesperada tentativa de manter sua temperatura |
O que é Insano: O pânico do Dr. Muñoz diante do mau funcionamento da unidade de refrigeração e suas medidas drásticas para manter a temperatura corporal são típicas de quem está perdendo doses cavalares de sanidade. Não há como culpar o "bom doutor" já que, apesar de morto, tudo que ele deseja é continuar vivo. O narrador apenas experimenta algum horror quando retorna para o endereço depois de sua busca por peças para restaurar a máquina refrigeradora. Ao chegar, ele se depara com os moradores assustados e com a informação de que o sujeito deixado ajudando o Dr. Muñoz saiu correndo após ver algo no banheiro. Ao entrar no aposento, a trilha gosmenta e nauseante é suficiente para lhes causar desconforto e terror. Mas é a mensagem deixada pelo médico na escrivaninha que desencadeia o verdadeiro horror no coração do narrador, o condenando a se arrepiar e sentir náusea toda vez que o ar está frio.
- O narrador sem nome compartilha de várias características com o autor do conto: grande sensibilidade ao frio, um trabalho mau remunerado, uma profunda antipatia com a metrópole de Nova York e em especial com o caldeirão cultural de imigrantes vindos de todos os cantos do mundo.
Ele aceita "hibernar" em ambientes que são para ele estranhos e pouco familiares, e sua atenção só é despertada para o mistério no momento em que ele encontra um vizinho cuja capacidade intelectual está em seu nível. Mesmo assim, a associação dele com o estrangeiro Dr. Muñoz acaba trazendo péssimas consequências. A mensagem é clara: melhor não se associar com esses tipos estranhos.
- Um amigo muito próximo de Lovecraft, George Kirk, vivia no número 317 da Rua Quatorze Oeste em um prédio muito similar ao descrito no conto. De acordo com o biógrafo de Lovecraft, S.T. Joshi, o prédio é idêntico ao local onde se passa a história. É provável que Lovecraft tenha se aproveitado do visual desse prédio - um típico brownstone nova-iorquino, para compor o cenário de sua história. O prédio atualmente é uma pensão chamada Chelsea Pines Inn.
- "Ar Frio" é mais uma fábula a respeito da imortalidade e os perigos de aspirar à vida eterna. "Herbert West, Reanimator" é seu antecessor mais direto. Mas lá os mortos vivos eram incontroláveis, movidos por um desejo insano de matar e destruir. O método do Dr. Muñoz parece ser mais sofisticado e satisfatório, espelhando os procedimentos dos Fungos de Yuggoth, que conseguem sustentar a vida eterna em voluntários - isso para aqueles que não se importam em ser apenas um cérebro num cilindro.
O método de Joseph Curwen, que envolve a redução de restos humanos a uma fórmula chamada de sais primordiais também tem melhores resultados, embora um erro na separação desses sais, possa resultar em algo muito desagradável.
A Coisa que um dia foi o Dr. Muñoz |
A grande constante é que não importa como, não importa quem, a imortalidade, entendida como o prolongamento da vida, constitui uma transgressão as leis da natureza que descamba para algo tenebroso no gênero horror e em especial nas histórias de Lovecraft.
- Uma das inspirações para Ar Frio é sem dúvida "Fatos no Caso do Sr. Valdemar" de Edgar Alan Poe, no qual um homem é preservado entre a vida e a morte através de mesmerismo. Apenas quando ele é despertado do transe, seu corpo se dissolve numa massa amorfa de detestável putrefação.
Lovecraft afirmava, no entanto, que sua principal inspiração para Ar Frio era "A Novela do Pó Branco" de Arthur Machen (um de seus autores favoritos). Nesse conto, o personagem principal termina como "uma massa escura e pútrida, gotejando corrupção e horrenda podridão, nem líquido e nem sólido, derretendo diante dos olhos das testemunhas, e borbulhando com bolhas oleosas como piche". O protagonista de Machen não estava buscando a imortalidade, mas uma forma de persistir em seus estudos. Infelizmente para ele, o pó estimulante prescrito era parte de um ingrediente usado por feiticeiras, o Vinum Sabbati ou Vinho do Sabá.
- Em determinado momento do conto, o Dr. Muñoz acaba provocando um dano em si próprio, mais especificamente em seus olhos, obrigando-o a correr para o banheiro e colocar bandagens sobre eles. Essa parece ser uma referência direta ao "Sr. Valdemar" do conto de Poe, cujos olhos acabam "escorrendo profusamente com uma bile amarelada". Lovecraft prefere manter a degeneração de Muñoz em segredo, sem explicitar o caráter nauseante de sua degradação até a cena final quando o corpo se torna uma massa amorfa e putrefata.
Como ocorre em muitos de seus contos, Lovecraft deixa a revelação final de horror para as últimas linhas, quase como um punchline dos acontecimentos, uma forma de criar choque e surpresa. Esse estilo era muito comum no período e usado por ele em vários outros contos.
- Diferente da maioria dos mortos vivos trazidos de volta, o cadavérico Dr. Muñoz jamais se comporta de forma descontrolada ou insensata. Ele não se arrasta, não geme e sobretudo, não clama por miolos. Sua existência, contudo está condicionada a fatores climáticos e sua existência carece de uma temperatura próxima do congelante que preserve sua integridade. Alguns podem se perguntar por que o Dr. Muñoz acaba escolhendo Nova York para viver, já que apesar do inverno ser adequado aos seus intentos, o verãos e mostra um perigo em potencial. É possível que o "tratamento" que permitiu seu retorno tenha acontecido na cidade e que ele tenha se visto incapaz de se mudar em busca de um clima mais ameno.
O final do conto com direito a gore |
- Apenas à título de curiosidade, os primeiros aparelhos de ar condicionado só passaram a estar disponíveis em domicílios particulares depois de 1933. Lovecraft (e é claro, Muñoz) estão bem à frente de seu tempo, presumindo corretamente que unidades de refrigeração seriam um dia um conforto ao alcance de muitas pessoas.
No início do século XIX, surgiram protótipos das primeiras unidades de refrigeração, usadas principalmente para conservação de alimentos em temperaturas mais amenas. Estes aparelhos funcionavam com uma combinação de Amônia e Salitre com pequenas doses de água. Embora hoje em dia as unidades de refrigeração moderna funcionem com Tetrafluoretano ou Gás Freon, algumas ainda empregam Amônia, sobretudo aquelas de uso industrial. Em termos simples, a amônia absorve o calor do ar, enquanto um gerador mecânico (geralmente alimentado por gasolina) opera um compressor que condensa o ar e absorve o calor do ambiente. Lovecraft parece ter espelhado o engenho de Muñoz em uma máquina relativamente comum em sua época.
Isso explica a natureza das gotas de amônia que são detectadas pelo vizinho no andar de baixo. Provavelmente o Dr. Muñoz estava fazendo reparos ou abastecendo sua unidade de refrigeração quando acabou acidentalmente virando alguns de seus componentes.
- "Ar Frio" foi adaptada ao menos três vezes para produções de filme ou televisão:
Em 1971, ela foi adaptada como um episódio da série Galeria do Terror (Night Gallery) com roteiro de Rod Serling que fez algumas alterações para incluir um romance à história.
"The Cold", dirigido por Shusuke Kaneko, com roteiro de Brent V. Friedman, foi o segmento intermediário do filme de 1994, Necronomicon: O Livro dos Mortos (Necronomicon: Book of the Dead).
Em 1999, uma versão em preto e branco foi dirigida por Bryan Moore e fez parte da H.P. Lovecraft Collection. Embora fosse mais fiel ao original, o narrador nessa versão foi substituído por Randolph Carter.
Não duvido que o Lovecraft fez todos esses experimentos no laboratório q ele diz q tinha no porão de casa na infância kkkkkk cara sabia muito de química tbm.
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