O destino da Expedição Franklin, ou o que havia restado dela após seus últimos e dramáticos momentos saudava o médico e explorador John Rae. Ele era o primeiro a contemplar aquele cenário dantesco e seus olhos dardejavam de um horror para outro. Eram as evidências factuais de toda loucura e horror que havia se apoderado daqueles pobres diabos.
Haviam corpos espalhados pelo perímetro inteiro, estavam simplesmente descartados aqui e ali na tundra sem que ninguém tivesse tido o cuidado de enterrá-los. Algumas tendas ainda estavam de pé, mas o barco que o grupo arrastou com cordas até aquele ponto havia sido virado. Muitos dos cadáveres apresentavam horríveis sinais de mutilação produzidas com faca e machadinhas. O cenário evidenciava um caos reinante no qual civilização cedeu espaço à barbárie na vã tentativa de sobrevivência.
A equipe de Rae investigou com cuidado os restos e contou 30 cadáveres no campo. Aparentemente os homens haviam morrido lentamente no decorrer do inverno. A causa foi inanição, mas no esforço de viver eles tentaram de tudo. Nas panelas encontraram restos humanos cozidos e uma macabra caixa que serviu de depósito para as porções de carne fatiadas dos companheiros mortos. A visão evidente do tabu máximo, o canibalismo, sendo cometido, deixou os homens de Rae aterrorizados. Alguns não quiseram prosseguir na investigação e se afastaram para esperar os demais concluírem a arrepiante tarefa. Recolheram alguns artefatos para confirmar a procedência dos objetos e enterraram os cadáveres.
Rae relatou: "Pelo estado de mutilação de alguns cadáveres, e o conteúdo dos potes e caixas, fica claro que nossos pobres compatriotas foram levados ao último recurso - o canibalismo como forma de prolongar sua existência".
O médico não fez menção imediata ao caos que evidenciava uma luta entre membros da tripulação. Mas esta parecia clara aos olhos de Rae. Muitas das mortes pareciam ter sido provocadas após uma disputa dentro do bando que já não respondia a hierarquia ou graduação de comando. Talvez uma discussão pela divisão de suprimentos ou outra razão menor tivesse sido o estopim da querela. Não havia como saber.
A narrativa trazida por Rae causou grande consternação quando chegou à Inglaterra. Embora o almirantado estivesse aliviado, pois podia parar as buscas, a notícia era péssima. Lady Franklin e o Conselho Ártico estavam chocados, não apenas pelas mortes mas principalmente pelo canibalismo. Diante daquelas notícias eles fizeram a única coisa razoável: eles duvidaram da narrativa e evitaram receber Rae. Mesmo apresentando as provas obtidas, não foi o suficiente para convencer os amigos e parentes dos membros da Expedição - era algo funesto demais.
Contrariando toda a lógica, Lady Franklin levantou fundos para uma nova Expedição que segundo suas palavras "provaria a verdade dos fatos". A essa altura, 15 anos após o desaparecimento do marido, ela estava certa de sua morte, mas não estava disposta a acreditar nas circunstâncias aviltantes de seu fim.
O navio à vapor Fox, liderado pelo Capitão Leopold MacClintock foi despachado para o Ártico e serviu de base para equipes que se distribuíram por terra, cobrindo a vastidão gelada com trenós puxados por cães. Eles seguiam os rumores relatados a Rae e buscavam qualquer indício do acampamento final da tripulação. Quase por milagre, um destes grupos localizou uma série de documentos e mensagens deixadas sob um monte de pedras em Victoria Point. Estes papéis forneciam informações sobre o progresso da expedição. Entre essas mensagens estava a trágica notícia de que o próprio Comandante Franklin havia morrido em circunstâncias desconhecidas. A mensagem dizia:
25 de abril de 1848 - Os navios HM Terror e Erebus foram abandonados no dia 22 de abril, 5 léguas NNW deste, tendo sido assediados desde 12 de setembro de 1846. Os oficiais e tripulações, consistindo de 105 almas, sob o comando do Capitão Crozier, acampou aqui em latitude 69° 37 '42 N, longitude 98° 41' W.
Sir John Franklin morreu em 11 de junho de 1847; e a perda total por mortes na expedição foi até esta data de 9 oficiais e 15 homens.
Assinado pelos Capitães Crozier e Fitzjames do Erebus.
A expedição Fox também encontrou vários pertences da Expedição perdida no que pareciam ser acampamentos provisórios ao longo de quilômetros. Os objetos foram sendo abandonados ao longo do caminho, bem como sepulturas escavadas na tundra.
Na Ilha de King William a equipe fez outra estranha descoberta, um depósito de provisões enterrado na neve contendo trenós, comida, roupas e equipamento. Tudo havia supostamente sido abandonado ali por uma tripulação extenuada que não suportava carregar nada além do considerado imprescindível. Em outro depósito, contudo, cerca de 10 quilômetros adiante, Fox achou vários itens não essenciais, como livros, lenços de seda, sabonete perfumado, esponjas, chinelos, pentes de cabelo e colheres de chá. Havia também muitas latas de carne em conserva fechadas, o que também era uma coisa estranha de se encontrar, considerando que os homens, àquela altura estariam morrendo de fome. Era um mistério o que teria acontecido ali.
Pouco mais de dois quilômetros adiante, havia outra descoberta sinistra os aguardando. Os restos de um barco amarrado a um trenó improvisado continha dois cadáveres horrivelmente mutilados por animais selvagens e pelo vento polar. Um dos cadáveres estava sem a cabeça, no outro faltava o braço e boa parte do flanco pelo qual escorriam as entranhas mordiscadas por animais selvagens. A cena era medonha e deixou a equipe do Fox apavorada. Mais adiante haviam outras latas de carne descartadas, o que novamente chamou a atenção do grupo de resgate. Ninguém perto de morrer de fome descartaria comida daquela maneira.
Exaustos física e mentalmente, McClintock e a tripulação do Fox voltaram ao navio e partiram para a Grã-Bretanha no dia 6 de agosto, chegando em Londres no dia 21 de setembro de 1859, com três membros da tripulação original a menos.
A busca por Franklin havia terminado no que dizia respeito ao Almirantado, aquilo era o fim. Entretanto, persistia a dúvida sobre o que havia causado a tragédia.
Embora o destino exato da expedição Franklin e a causa de seu declínio não pudessem ser discernidos, as várias descobertas e peças de evidência coletadas pelas equipes de resgate permitiram que uma provável cronologia tomasse forma.
Assume-se que, em 1846, o Erebus e o Terror encontraram condições ideais de mar aberto logo após adentrar o estreito de Lancaster. Com um clima agradável na chegada e um inverno menos severo, a tripulação passou o primeiro inverno acampada na Ilha Beechey. Depois disso, o acampamento foi repentina e inexplicavelmente abandonado. O mais estranho é que a expedição abandonou na praia uma pilha de dejetos incluindo pelo menos 700 latas de comida cheias de cascalho, assim como os túmulos de três tripulantes.
Após o primeiro inverno, os dois navios partiram para o sul, para Peel Sound e o Estreito de Franklin, mas foram pegos por mau tempo e gelo. O gelo começou a se formar ao redor dos navios e em pouco tempo ambos ficaram aprisionados. Basicamente, as embarcações se tornaram prisões de gelo. Por um ano e meio, as tripulações viveram confinadas dentro das embarcações em meio a um frio intenso, longe de qualquer sinal de civilização, até que finalmente tomaram uma arriscada decisão. Concluíram que se ficassem no navio acabariam morrendo de fome, decidiram se colocar a andar em 26 de abril de 1848.
O acampamento em Beechy island ontem e hoje |
Naquela altura, 24 homens já tinham perecido por diferentes motivos, incluindo o próprio Comandante Franklin. Os 105 homens restantes, muito abatidos e famintos, partiram por terra em direção ao Grande Rio dos Peixes, um lugar do qual haviam ouvido falar através de caçadores inuit com quem estabeleceram amizade. Os Inuit os avisaram que a travessia seria extremamente difícil e que se eles fossem pegos nesse deserto durante o inverno, suas chances de sobrevivência seriam quase nulas. O plano era atravessar o território levando dois barcos à remo que eram empurrados pelo grupo. Ao atingir o outro lado, com sorte eles conseguiriam chegar ao mar e iniciar a volta para casa. Seria necessário mais um pouco de sorte para que alguém os recolhesse depois de atingir alguma rota seguida pelos baleeiros.
A travessia por terra deve ter sido especialmente árdua, os homens provavelmente se revezavam puxando e empurrando o pesado bote que levava os suprimentos. O grupo construiu vários acampamentos provisórios e muitos homens foram ficando pelo caminho. Já no limite de suas forças, vítimas de inanição e esgotados mentalmente, a tarefa deve ter sido uma verdadeira provação. Há indícios de que tenha havido deserção e que alguns homens decidiram se separar e tentar a sorte sozinhos ao invés de carregar os feridos e doentes.
Os grupos fizeram o possível para atingir o outro lado da ilha, mas quando ficou claro que não teriam como atingir o objetivo antes da chegada do inverno, se conformaram em construir um acampamento. Deve ter sido uma perspectiva aterrorizante montar o campo sabendo que dificilmente conseguiriam sobreviver ao que estava por vir. Para piorar, o inverno foi incrivelmente atroz.
Em meio a essa situação periclitante, não é de se estranhar não ter havido registros escritos. Os homens levados aos limites já deviam contemplar que a carne de seus companheiros seria a tentativa final para sobreviver ao inverno. Não querer discorrer sobre isso é perfeitamente compreensível.
Na ausência de informações, a única evidência vem das muitas histórias dos nativos sobre homens brancos morrendo de fome no gelo e sua queda na antropofagia. Alguns relatos falam de grandes navios afundando e outros sugerem que alguns membros da tripulação viveram entre as tribos por até um ano. É incerto exatamente o que aconteceu com esses sobreviventes remanescentes, mas é evidente que todos eles pereceram gradualmente de uma forma ou de outra em algum ponto durante sua jornada por terra através do deserto gelado.
O destino final da expedição Franklin e dos navios Erebus e Terror, tornou-se um dos grandes mistérios históricos do século. Várias teorias foram apresentadas ao longo dos anos sobre o que aconteceu aos homens condenados depois que eles seguiram para o interior. Uma das teorias mais comuns é que eles simplesmente morreram de fome, mas foi apontado que ainda havia suprimentos de comida enlatada encontrados no acampamento. As tribos esquimós da área não eram contrárias ao comércio com forasteiros, então porque motivo os homens não os procuraram para realizar uma barganha? Certamente muitos morreram de fome, frio, doenças como pneumonia ou acidentes, mas parece estranho que todos os 105 homens tenham morrido em tão pouco tempo, considerando que expedições árticas anteriores tivessem sobrevivido a condições similares.
Uma teoria que se tornou muito popular é que os homens sofreram problemas de saúde devido à ingestão de alta concentração de chumbo nos alimentos enlatados. As provisões de comida enlatada da expedição foram preparadas às pressas e as tampas das latas seladas à baixo custo pelo fornecedor com invólucros de chumbo. Acredita-se que essa solda permitiu que o chumbo penetrassem na comida e causasse complicações. Os sintomas clássicos de envenenamento por chumbo incluem náusea, dores crônicas nos rins, desorientação e confusão mental, mas em casos graves pode ocasionar coisas ainda mais graves, como alucinações.
Isso poderia explicar algumas das bizarras decisões tomadas pela tripulação, como arrastar trenós pesados por terra carregados de itens desnecessários, como livros, lenços de seda e talheres, bem como a recusa em abrir algumas das latas de carne mesmo quando a fome os havia dominado ao ponto do canibalismo. Certamente, tal deterioração mental teria prejudicado muito as chances de sobrevivência. A comida enlatada mal preparada também foi responsabilizada por causar um surto de botulismo entre a malfadada tripulação, o que só teria servido para acelerar sua condenação iminente.
Outras teorias afirmam que os sobreviventes se envolveram em uma disputa com as tribos Inuit ou mesmo entre si, o que poderia explicar as terríveis descobertas dos corpos mutilados e esqueletos sem cabeça. Submetidos a confusão mental, os homens podem ter se voltado uns contra os outros em um frenesi homicida. Sem as leis da civilização, as coisas saíram do controle rapidamente.
No final, foi provavelmente uma combinação de fome, doença, condições extremas e desnutrição que conspirou para dizimar a tripulação, mas as circunstâncias exatas e as descobertas bizarras em torno das mortes nunca foram completamente explicadas. Além disso, muitos dos corpos nunca foram recuperados e permanecem até hoje em algum lugar daquele deserto gélido.
Quanto ao paradeiro dos próprios navios, há muito se pensava que eles teriam se partido no gelo irregular do Ártico e afundado. Várias buscas foram realizadas ao longo dos anos em busca de destroços dos navios, com grandes faixas do leito marinho do Ártico meticulosamente procurado por quaisquer sinais deles.
Finalmente em setembro de 2014, uma expedição batizada de "Victoria Strait" encontrou um dos navios de Franklin no leste do Golfo Queen Maud, a oeste da Ilha O'Reilly. Inicialmente não estava claro qual navio havia sido encontrado, mas posteriormente descobriram tratar-se do Erebus que estava bem preservado e praticamente intacto.
Quase exatamente dois anos depois, no dia 11 de setembro de 2016, um navio naufragado foi encontrado a cerca de 24 metros de profundidade em uma baía ao sul da Ilha King William. Ele foi inspecionado por um pequeno veículo submersível operado remotamente que constatou ser aquele o Terror, também num estado de preservação notavelmente intacto. Haviam pratos, latas nas prateleiras e os painéis de vidro de três das quatro janelas da cabine de popa ainda intactos As descobertas indicam que o navio afundou lentamente depois de ser fechado e preparado para o inverno.
O Terror foi encontrado cerca de 90 quilômetros mais ao sul de onde se pensava ter sido esmagado pelo gelo marinho. Sua localização e estado muito bem preservados indicam que alguns membros da tripulação podem ter fechado o navio e então tentado navegar para o sul afim de escapar de sua situação, sem obter sucesso na empreitada.
Um dos maiores mistérios da expedição perdida de Franklin é a completa falta de registros escritos, exceto os poucos documentos encontrados no monte de pedras em Victoria Point. Por que não havia mais documentação sobre uma expedição tão importante? A prática comum da época ditaria que cada navio tivesse dois conjuntos de registros duplicados descrevendo todas ocorrências relevantes à bordo, então, para onde foi tudo isso? Acredita-se que tais papéis devam existir em algum lugar, mas até agora nenhum foi encontrado e eles parecem ter sofrido o mesmo destino misterioso que tudo o mais na expedição. É provável que o conteúdo de tais diários nunca seja conhecido. É uma pena, já que tal arquivo documental esclareceria muito sobre o caso.
A Expedição perdida de Franklin apresenta muitas perguntas e poucas respostas. Ela se tornou com o passar do tempo um dos episódios de descobrimento mais famosos e debatidos. Um símbolo emblemático de uma época em que os homens acreditavam ser os senhores do mundo e sobre ele declaravam posse. O legado do Expedição Franklin talvez seja colocar em perspectiva nossa própria fragilidade diante da inclemente força da natureza e mais... das forças do próprio destino.
Fantástica matéria meu amigo, obrigado.
ResponderExcluirde fato, tanto a parte 1 quanto essa foram muito bem escritas.
ExcluirMuito interessante! Obrigado por nos passar estas informações.
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