Com base no artigo do site The Vulture
Nos reinos do Horror Cósmico e Terror Gótico simplicidade é requisito essencial.
Imagine uma visão tão impossível de compreender que enlouquece uma pessoa, como nas histórias de H.P. Lovecraft, ou um som tão perturbador que causa desespero e pavor, como em The Tell-Tale Heart, de Edgar Allan Poe. A natureza destituída de razão, enfatizada na obra desses gênios do horror, apresenta um universo de pesadelos, repleto de maldade contra o qual somos impotentes.
Ao trabalhar dentro desses subgêneros profundamente existenciais, a série do Netflix, Arquivo 81 (vagamente inspirada na primeira temporada do podcast de mesmo nome) é uma grande surpresa. Uma produção inteligente, instigante e extremamente atraente. A criadora do show Rebecca Sonnenshine faz o espectador questionar o que está vendo, incentiva a dúvida sobre o que estamos captando e bombardeia nossos sentidos com uma torrente de informações. Tudo isso no esforço de responder a duas perguntas perigosas: E se nosso desejo de ter um passado diferente não fosse apenas um olhar para trás, mas uma porta aberta? E mais importante, e se pudéssemos mudar o que passado? Mudar tudo!
Os oito episódios de Arquivo 81 preenchem o tempo vagando por corredores mal iluminados, escadas soturnas e a arquitetura de casa mal-assombrada de um prédio macabro no centro de Nova York. Complementado por diálogos afiados, narração ágil e muitas referências a clássicos do terror a série inclui acenos diretos ou evocações sutis a uma infinidade de obras. Estão lá trechos pinçados de clássicos como Bebê de Rosemary, Candyman, Além da Imaginação, Os Outros, O Iluminado, Solaris, A Casa Noturna, Hereditário e A Entidade, às jornadas surreais de Mike Flanagan e David Lynch, aos textos de Emily Dickinson, Shirley Jackson, Thomas Ligotti, além, é claro, aos já mencionados Lovecraft e Poe. Tudo isso (e provavelmente muitas outras referências) são juntadas em uma mistura incrivelmente competente. Arquivo 81 pode ser visto como uma carta de amor ao gênero horror, escrito, roteirizado e finalizado por quem conhece e entende do assunto.
Como tantas outras séries recentes, Arquivo 81 usa e abusa de linhas de tempo divididas, flashbacks, sonhos e memórias represadas para contar sua história. O tempo é tão pouco confiável quanto as identidades dos personagens e tão instável quanto a compreensão de suas próprias motivações. Os arrependimentos e dúvidas que eles carregam são pesados, e atingem praticamente a todos. O resultado é uma série que mexe com percepções e atiça a curiosidade: não se trata de querer entender o que está acontecendo, você sente que PRECISA entender. E não se dá por satisfeito até chegar ao final.
A história, de forma muito resumida e sem spoilers, para não estragar o entretenimento alheio, é a seguinte:
Em 2019, o arquivista Dan Turner (Mamoudou Athie) passa seus dias explorando e preservando o passado. Ele compra fitas de vídeo e de áudio de vendedores de rua, explorando as recordações coletadas por outras pessoas. Cada fita é uma surpresa para ser dissecada e avaliada pelos seus olhos e ouvidos atentos. Trabalhando no Museu da Imagem e Movimento, ele restaura meticulosamente bobinas de filme e som que foram danificadas ou descartadas. Há uma conexão entre as trágicas mortes de sua família anos atrás e a carreira profissional de Dan, e vamos aos poucos fazendo essa ligação.
Sua vida pessoal exibe rachaduras que são sugeridas pelas conversas de Dan com seu melhor amigo Mark Higgins (Matt McGorry), criador e apresentador de um podcast de terror, o Mystery Signals. Dan mantém uma postura cética sobre o mundo sobrenatural, mas ao longo de Arquivo 81 essa opinião será desafiada por acontecimentos bizarros. Tudo tem início quando ele recebe uma irrecusável oferta de trabalho vinda de Virgil Davenport (Martin Donovan), milionário dono de uma corporação sombria. Davenport contrata Dan para restaurar e digitalizar uma série de fitas de vídeo danificadas em um incêndio ocorrido em 1994.
Enviado para um complexo remoto nas Montanhas de Catskills, ele passa a viver isolado do mundo exterior, sem internet e sem sinal de celular. O trabalho se torna sua obsessão e ele mergulha na restauração de uma coleção de fitas queimadas, sujas e molhadas. Assistindo ao conteúdo fragmentado, ele passa a conhecer Melody Pendras (Dina Shihabi), uma estudante que 25 anos atrás trabalhava em sua tese de doutorado em antropologia sociocultural. Seu projeto envolvia catalogar a história oral de um prédio de apartamentos sinistro, o Visser, em Nova York. A história do prédio é estranha: construído sobre as ruínas de uma mansão que também foi incendiada na década de 1920, o lugar fervilha com mistérios guardados à sete chaves. À medida que assiste aos registros feitos por Melody, Dan vai conhecendo os habitantes do prédio (uma fauna pra lá de estranha) que oculta segredos medonhos.
Enquanto Dan examina os vídeos deixados por Melody, um estranho vínculo atemporal começa a se formar entre eles. A investigação de Mellody se mostra cada vez mais perigosa, não apenas colocando-a em situações de risco, mas desafiando sua própria sanidade. A amiga adolescente de Melody, Jess (Ariana Neal), ajuda a estabelecer sua conexão com os habitantes do Visser e, enquanto se aprofunda no material, a realidade de Dan também começa a ser afetada.
Os oito episódios de Arquivo 81, todos lançados na Netflix em 14 de janeiro, foram conduzidos por jovens talentos da direção, cada um responsável por dois segmentos. A produção da série é de James Wan, nome conhecido entre os fãs, responsável por algumas das mais emblemáticas produções recentes no gênero. O visual da série se alterna entre imagens limpas e estéreis nos eventos em 2019 e a filmagem saturada e granulada da narrativa de 1994. Essa diferença estética é importante, pois Arquivo 81 salta do presente para o passado sem cerimônia. O espectador terá de ter atenção aos detalhes se quiser acompanhar e entender o desenvolvimento da trama, e se fizer isso, será recompensado.
Os intérpretes de Dan e Melody são excelentes e a estranha interação firmada entre eles garante alguns dos melhores momentos da série. Dan faz muito mais do que assistir os vídeos, ele participa ativamente dos acontecimentos, investigando-os com a ajuda de seu amigo, único contato restante no mundo exterior. Momentos de tensão e reviravoltas vão se alternando num ritmo de perder o fôlego. Arquivo 81 oferece várias suposições e suspeitas, mas elas só serão resolvidas no momento certo, quando o roteiro assim desejar.
As peças desse complicado quebra-cabeças vão se encaixando lentamente: temos um culto diabólico, rituais de sacrifício, artistas perturbados, ricaços entediados levados ao estudo do oculto, tomos esotéricos, um cometa rasgando o firmamento e entidades dimensionais, que fazem parte da colagem de enigmas sobrenaturais. A aberturas dá uma ideia dos elementos que compõem a trama intrincada. Acompanhado de uma trilha sonora cadenciada e enervante, que evoca o mesmo tipo de pressentimento e inquietação dos personagens, a série é absolutamente viciante.
Arquivo 81 não deixa de ser uma grande surpresa entre os lançamentos do Netflix, a série aparentemente despretensiosa conquistou seu lugar entre as mais assistidas nesse início de ano e já recebeu sinal verde para uma segunda temporada, embora não se saiba se a história a ser abordada será uma continuação ou algo totalmente diferente.
Apenas um adendo, não se deixe enganar imaginando que essa é apenas mais uma série inspirada pela já batida premissa das fitas de vídeo encontradas (as video footstages). Arquivo 81 tem o mérito de construir um mistério sólido e criar uma atmosfera sinistra e ao mesmo tempo sutil, difícil de deixar de lado.
Brilhante e praticamente obrigatório para fãs!
Trailer:
Essa resenha me levou a assistir a série! Boa, algo irregular no terço final mas ainda assim um aboa opção de maratona. :)
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