quinta-feira, 30 de março de 2023

Stonehenge Alemão - A sinistra história de morte e sacrifício no Círculo de Pömmelte


Todos que gostam do assunto ou que tem interesse no mundo antigo, obviamente já ouviram falar do famoso Monumento de Stonehenge.

O enorme círculo de pedra localizado nas planícies da Inglaterra central desafia nossas noções sobre o que os antigos eram capazes de fazer. Ele nos oferece um vislumbre do conhecimento, das tradições e da engenhosidade dos homens do passado. Muitos tentaram explicar a razão para sua construção: seria ele um local de adoração e de importantes encontros dos druidas? Um avançado calendário celestial? Ou ainda, um templo para as religiões Pagãs?

Stonehenge continua tendo muitos mistérios. Não se sabe exatamente como ele foi construído, como as imensas pedras conhecidas como megálitos - algumas com dezenas de toneladas, foram levadas até aquele lugar, quando e por quem. Não se sabe o que ele simbolizava para os povos pagãos. Que tipo de cerimônias ocorriam no entorno das pedras? Que tipo de deuses eram reverenciados? Os mistérios são tantos que levaria tempo para colocar aqui todas as questões. 

Ocorre, entretanto, que Stonehenge não é o único círculo de pedra da Europa.


A maioria das pessoas não sabe que existem muitos outros espalhados principalmente pela Europa Ocidental, em lugares que no passado tiveram enorme importância para os povos do Neolítico.   

Um dos monumentos de pedra mais interessantes é Pömmelte considerado como a versão alemã de Stonehenge. Este majestoso monumento localizado na região da Saxônia, no leste da Alemanha, é muito semelhante ao seu homólogo britânico. A construção é bastante similar, com pedras alinhadas em círculo, dispostas em posições chave que poderiam ser usadas para observar as estrelas e acompanhar seu movimento. Os druidas alemães, assim como os britânicos, observavam o céu e através das estrelas calculavam alinhamentos, a passagem do tempo e a mudança das estações. A maioria das festividades ocorriam nas datas previstas pelos sacerdotes druídicos que planejavam quando deveria ocorrer o plantio, a semeadura e a colheita. A fecundidade do solo era uma questão de sobrevivência, portanto, de máxima importância.

Assim como ocorria em Stonehënge, Pömmelte era palco de importantes rituais que atraíam pessoas. Famílias viajavam grandes distâncias para conhecer o monumento e tomar parte nas festividades que ocorriam ao seu redor. Talvez eles viessem para receber bênçãos, para oferecer seu sacrifício ou ainda para ouvir as palavras de homens sábios que comungavam com os deuses e afirmavam conhecer os segredos do universo.

Descoberto em meados de 1991, Ringheiligtum Pömmelte - o Anel de Pedras de Pömmelte foi construído com uma mistura de madeira sólida e pedras em sete círculos. Trincheiras foram escavadas e bancos de areia erguidos para assentar as traves em um trabalho que deve ter exigido a participação de muitas pessoas ao longo de décadas. Tudo isso sem máquinas, sem equipamento e dependendo quase que exclusivamente da força bruta. Por tudo isso, Pömmelte é uma façanha notável.


A análise de artefatos indica que a construção começou por volta de 2300 aC por uma cultura proto-germânica conhecida como os "Taças de Sino". Esse povo da Era do Bronze ganhou esse nome graças aos copos de beber em formato de sino que usavam no seu dia a dia. Esta cultura, sobre a qual sabemos muito pouco, foi substituída pelos Unéticos, naturais de onde hoje fica a República Checa. Existe a possibilidade que a cultura dos Taças de Sino tenha sido dizimada justamente em função do anel de pedras, já que os outros povos cobiçavam o local e desejavam usá-lo. Em algum momento do ano 2250 aC, uma cultura avançou sobre a outra e a submeteu a um massacre que devastou totalmente o povo. Como resultado, eles foram praticamente extintos.

O Povo Unético passou a usar o Círculo de Pömmelte como lugar sagrado e para todo tipo de Ritual envolvendo astronomia. Eles olhavam para o céu com reverência e seus druidas usavam o monumento como um tipo de comunicação com o plano celestial. 

Esses druidas foram os responsáveis pela criação do famoso Disco Celeste de Nebra, possivelmente a mais antiga representação conhecida do cosmos, uma espécie de mapa celeste bastante que permitia seguir o balé das estrelas e prever acontecimentos cósmicos. Para os povos antigos da Era do Bronze, saber quando ocorreriam determinados alinhamentos de estrelas e conjunções planetárias era uma vantagem enorme. Significava basicamente saber quando rezar para os deuses na esperança de que eles recebessem e ouvissem as mensagens comunicadas. Era como ter uma espécie de calendário que permitia a comunicação com as esferas exteriores.

Considerando o tamanho de Pömmelte - que tem uma área maior que Stonehenge, e a importância dele para os povos da região, é de se supor que ele atraísse muitas pessoas para as celebrações. Escavações nos arredores do monumento encontraram ruínas de habitações de pedra usadas por pessoas que visitavam o local e que precisavam de um local adequado para dormir, comer e descansar. Em algum momento, um assentamento chegou a se desenvolver ali, com a existência de pequenos templos que acomodavam druidas vindos de outros cantos do continente. É possível que estes fizessem peregrinações para conhecer os segredos do observatório primitivo e estudar a Carta Celeste de Nebra.


O trabalho dos arqueólogos iniciado em 2000 prometia grandes descobertas sobre os povos que um dia habitaram aquela região: sua cultura, seus costumes e sua sabedoria finalmente poderiam vir à tona, depois de milênios. Havia muita expectativa à respeito do que um povo tão avançado poderia oferecer em termos de conhecimento. No entanto, a descoberta de um cemitério na extremidade norte do monumento revelou que Pömmelte tinha uma história bem mais sombria do que se imaginava no princípio.

Escavando esse vasto campo funerário os pesquisadores encontraram restos de cadáveres enterrados em covas rasas. A maioria destes pertenciam a jovens mulheres e crianças com idades variando entre 2 e 21 anos. A maioria deles apresentavam fraturas cranianas graves, condizentes com golpes frontais brutais provavelmente desferidos por porretes ou clavas.  

Os cientistas concluíram que essas mortes teriam ocorrido em rituais religiosos bastante elaborados, o que aponta para o fato de que em Pömmelte ter sido um centro em que ocorriam Sacrifícios Humanos. Além dos golpes frontais que produziam uma fratura devastadora bastante comum nos restos encontrados, outras vítimas apresentavam fraturas nas mãos, dedos, joelho e múltiplas fraturas nas costelas. A análise determinou que muitos desses ferimentos poderiam ser condizentes com surras brutais ou ainda com torturas.  

"Tudo indica que no final da ocupação principal, por volta de 2050 aC, a religião local sofreu uma grande mudança de procedimento. As oferendas até então eram grãos, madeira e vinho, ocasionalmente algum animal colocados em nichos nas pedras ou ainda queimados em valas. Contudo, em algum momento isso mudou e sacrifícios humanos se tornaram comuns", disse Heinrich Spatzier um dos arqueólogos envolvidos nos estudos do círculo.


"É possível que o aceso a recursos tenha diminuído consideravelmente e que as pessoas se viram diante de um cenário onde não havia muito a oferecer. Isso motivou as pessoas a buscar outro tipo de sacrifício que pudesse satisfazer suas divindades", ele conclui.

Historicamente, muitos povos da Idade do Bronze praticavam algum tipo de ritual envolvendo sacrifício, isto não era em absoluto, incomum. Os povos germânicos pagãos eram conhecidos por louvar seus deuses através de uma série de ritos que buscavam estabelecer um contato com as divindades e honrá-los com a vida dos mortais. Em Pömmelte, contudo, isso parece ter sido levado às últimas consequências.

Há indícios de que as ruínas encontradas e que se supunha serem habitações ou pensões para visitantes vindos de longe tinham outra função. Elas poderiam ser usadas como masmorras onde futuras vítimas de sacrifícios seriam mantidas como prisioneiras. Mas pior do que simples prisões esses lugares poderiam ser usados como instalações onde estupro, tortura e morte eram realizadas comumente. Muitos dos druidas germânicos podiam exercer direito de vida e morte sobre as pessoas. Eles teriam liberdade para fazer o que bem entendessem sem temer qualquer reprovação.

Os pesquisadores ainda tentam entender quais eram as práticas sociais e religiosas da cultura Unética, que construiu a maioria das instalações hoje em ruínas. O que se sabe é que eles realmente praticavam alguns rituais que para nossos padrões seriam considerados abomináveis pela barbárie e violência. Os poucos registros que se tem, sugerem que abuso sexual (mesmo de crianças) e tortura fazia parte dos ritos consagrados. As execuções eram conduzidas no ápice dos ritos, em meio a celebrações com dança, música e bebida. O uso de substâncias alucinógenas também permitia aos druidas ter visões. No final do rito um sacerdote acertava um golpe devastador na cabeça da vítima com uma clava de madeira sólida.


O antropólogo Harald Meller examinou vários crânios e concluiu que o ataque geralmente era letal com um único golpe. Este era desferido na têmpora direita, atingindo a vítima provavelmente em posição ajoelhada. Não se sabe se essas vítimas estariam conscientes do que aconteceria com elas, os rituais variavam muito de povo para povo. Muitas culturas ofereciam às vítimas uma infusão de ervas que as deixava à beira da inconsciência, o que facilitava o procedimento. 

Meller também encontrou vários crânios solitários sem esqueletos nas valas do cemitério. Para ele, o motivo é óbvio:

"As indicações são típicas de uma cultura que louvava a cabeça. Tais cultos acreditavam que a cabeça era a morada da alma e que portanto ela era a parte mais importante de uma pessoa. Por esse motivo, era comum guardar as cabeças cuidadosamente decepadas. Isso explica também porque o crânio em alguns rituais era rachado, isso permitia que o espírito saísse pela fissura".

A equipe ainda está tentando determinar a importância das cabeças para os rituais em Pömmelte, mas dada a quantidade de crânios achados tudo leva a crer que ela desempenhava papel central. Em uma única vala foram achadas mais de 30 crânios que foram cuidadosamente removidos. 

"Podemos supor que as paredes do templo eram decoradas com cabeças humanas, de pessoas ilustres, inimigos e líderes, cada qual ali disposta como uma espécie de conselheiro".


Ainda é cedo para dizer o que acontecia em Pömmelte, mas os muitos indícios colhidos até aqui sugerem que ele não apenas era um centro religioso importante, mas um local extremamente perigoso. Muitas das informações que se tem sobre os Unéticos envolvem suas práticas sanguinolentas e rituais homicidas, os druidas de Pömmelt pareciam aderir totalmente à essas práticas misturando tais rituais com a observação do firmamento.

"É preciso entender que aqueles eram outros tempos, algo muito difícil para nós hoje em dia concebermos. Os deuses desempenhavam uma função central na vida das pessoas e elas estavam dispostas a fazer o necessário para obter o favor deles. Talvez acreditassem que para agradecer a visão das estrelas fosse necessário arrebentar a cabeça de uma virgem de 16 anos, ou que apenas o sacrifício de uma criança poderia propiciar um determinado vislumbre. Não sabemos, mas tal coisa parecia ser uma algo muito comum, até corriqueiro".

Ainda é cedo para dizer que sabemos tudo sobre Pömmelte e sobre os rituais dos povos da Era do Bronze. É provável que jamais venhamos a compreender inteiramente seus costumes ou o propósito deles. De qualquer maneira, o Círculo de Pedras é uma descoberta fantástica que nos permite observar ao menos em parte como viviam nossos antepassados.

terça-feira, 28 de março de 2023

"Pactos" - Resenha da Antologia da Editora Darkside sobre barganhas diabólicas

O diabo sempre foi uma figura central no imaginário da humanidade.

Toda cultura, toda sociedade possui o seu equivalente. Uma figura de maldade lendária, dedicado a explorar as mazelas da humanidade e obter para si o qie existe de mais valioso: a alma dos mortais.

O diabo é sempre retratado como esperto, astuto e perspicaz. Uma figura que usa suas habilidades para encantar e convencer as pessoas de que suas intenções são as melhores e que um empurraozinho seu resolve a maioria dos problemas.

Desde que o mundo é mundo, e que o diabo é o diabo, a figura do demônio esta associada aos pactos.  A barganha diabólica sempre fez parte da mitologia que cerca essa figura sinistra. O modus operandi é sempre o mesmo: um indivíduo desesperado, necessitado ou curioso contata o diabo e ouve sua proposta tentadora. Decide então aceitar ou não, já que livre arbítrio é parte essencial da coisa.

Como bom negociador que é, o diabo parece ter uma habilidade notável de saber o que a pessoa mais deseja, o que aquece seu coração e atrai seu olhar. Ele é insidioso, sinaliza com aquilo que está fora do alcance e oferta o quase impossível.

Mas tudo tem seu preço!

Ele sempre quer algo em troca de sua ajuda. Submissão, devoção, serviço, ou mais frequentemente, a alma da pessoa. É essa a moeda de troca no câmbio infernal: alma que sobe fora de seu alcance, alma que desce direto para suas garras. Nada é mais valioso para o "coisa ruim" do que a alma de alguém puro que a oferece de bom grado, mas, verdade seja dita, ele aceita qualquer um.

Tão popular quanto a história do diabo que oferece a negociação, são as histórias de indivíduos que aceitam a proposta e tentam vence-lo em seu próprio jogo. "Ser mais esperto que o diabo" e derrotá-lo em seus termos é para poucos. Enrolar, ludibriar, passar o grande negociante para trás, parece ser a meta de um sem número de indivíduos e claro, personagens da literatura.

A origem disso pode ser simplesmente contar uma boa história, provar que o diabo não é infalível ou ainda, mostrar que sempre há esperança para aqueles que se arrependem. O pacto não é definitivo e, mediante a esperteza do signatário, é possível desfazer o mais intrincado contrato. Ou ao menos, é no que apostam vários autores.

Pois bem... "Pactos", da Editora Darkside oferece ao leitor seis contos onde a barganha com o Diabo é a premissa básica. São histórias curiosas: algumas em tom de anedota, mais leves e divertidas, outras mais sérias e arrepiantes. Todas elas, no entanto, se debruçam sobre as implicações de desejar algo além do alcance e do que se está disposto a abrir mão para conseguir.

Alguns dos contos contém críticas sociais contundentes e fazem uma observação mordaz da hipocrisia e da falsa moralidade, sobretudo das instituições. São boas histórias, cada uma ao seu modo contribuindo para o tema sugerido. 

A seleção conta com nomes consagrados da literatura como Nathaniel Hawthorne, Mark Twain, Edgar Allan Poe e Washington Irving que oferecem sua interpretação da célebre negociação com a temida chancela diabólica. Como ocorre em toda antologia, há contos bons e outros nem tanto, mas é inegável a qualidade deles, ainda que alguns possam ser um pouco maçantes.

O primeiro é "O Jovem Goodman Brown", de Hawthorne, uma fábula moral se passando na velha e pecaminosa cidadezinha de Salem, palco da famosa Caça às Bruxas nos tempos coloniais. Aqui temos um jovem ponderando sobre vender ou não sua alma, enquanto descobre que outros individuos, supostamente mais virtuosos do vilarejo, já o fizeram. 

"O Diabo e Daniel Webster" do poeta Stephen Bennet é o segundo conto. Ele narra a tentativa de um sujeito que firmou um pacto diabólico de desvencilhar-se do contrato. Para isso ele contrata um advogado para defende-lo e este pede a formação de um tribunal do juri (composto por vilões e criminosos famosos) para deliberar sobre o veredito.

Mark Twain, um dos pais fundadores da literatura norte-americana nos oferece "Vendida para Satã", um conto curto no qual o diabo e um investidor discutem sobre as implicações da barganha e da verdadeira riqueza. 

Cabe ao lendário Edgar Allan Poe contribuir com uma peça satírica menor intitulada "O Diabo no Campanário", enquanto Harriet B. Stone traz "Como Vencer o Diabo", as duas histórias tem seus méritos, mas ao meu ver são as mais fracas da antologia. 

Já "O Diabo e Tom Walker" de Washington Irving é bem mais interessante e instigante em sua proposta de analisar a cobiça e avareza humanas e suas consequências.

Além dos contos, o livro se esmera no quesito de extras com uma belíssima introdução de Márcia Heloísa que organizou e traduziu os contos selecionados. O Posfácio de Pedro Pone também é inspirador. O volume conclui com referências cinematográficas de filmes e seriados que exploram o tema com fotos de produção e cartazes. O conteúdo é bonito e as referências válidas, embora o espaço pudesse ser melhor aproveitado com outros contos.

Visualmente, "Pactos" é sensacional, uma produção de qualidade e beleza incríveis como se tornou padrão nas publicações da Editora Darkside. A capa remetendo aos clássicos livros de magia negra,  com tratamento fosco envelhecido se sobressai na prateleira e convida a folhear as páginas de borda escura. O bode e a cabra negra, animais ligados à mitologia diabólica estão em toda parte: na capa, na arte interna e mesmo nas fotos dos autores que são sempre escoltados por tais animais. O resultado é sinistro e casa bem com o tema.

Em um acervo de livros incrivelmente bem produzidos, ouso dizer que "Pactos" talvez seja um dos trabalhos mais bonitos da Darkside. Um deleite para os colecionadores que apreciam um material de qualidade gráfica irretocável.

O livro pode ser encontrado na página oficial da Darkside, onde pode ser adquirido com alguns mimos - no caso cartões postais, ou achado em lojas virtuais e livrarias.

Uma boa pedida!

sexta-feira, 24 de março de 2023

O Voo das Strzyga - Feiticeiras aladas do folclore eslavo


Na mitologia antiga da Europa nenhum demônio, horror noturno ou monstro era mais temido que a Strzyga. No folclore dos povos eslavos, a Strzyga e também a Strigoi, tinham várias formas e atendiam por diferentes nomes. Cada região cunhou uma peculiaridade e ajudou a construir esse mito tão antigo quanto aterrorizante.

As lendas remontam à antiguidade clássica, estando elas presentes em histórias, documentos e até em tampas de caixões. Os gregos a conhecimento como Striga, um monstro alado que simbolizava o mau agouro, as tragédias e a morte iminente.

Nas crenças gregas, a Striga podia ser um tipo de bruxa com vastos poderes sobrenaturais. Elas dominavam as artes negras, a feitiçaria, criavam maleficios e praticavam necromancia. Tinham acesso ao submundo, de onde tiravam energias para alimentar seus rituais com ingredientes que incluíam ossos, dentes e a pele dos mortos. 

Elas também eram capazes de se transformar em enormes aves negras. Quando voavam sobre uma casa, alguém ali estava fadado a morrer. Pássaros negros eram tão temidos que os gregos os evitavam à todo custo.


O mito da Striga também encontra eco no do vampiro, já que elas também eram parasitas que se alimentam dos vivos. Em registros datando do século segundo antes de Cristo, a Striga era descrita como um predador voraz. Ela podia buscar seu sustento no fôlego, no sêmen ou no sangue dos vivos. Mais comum era a crença de que a criatura se alimentava da energia das suas vítimas, algo que os gregos chamavam "spiritus vitae". Para isso o monstro se deitava sobre a vítima, usando sua força sobrenatural afim de mante-la imobilizada. Em seguida aproximava sua boca da boca da presa e sorvia sua energia vital. Uma Striga podia matar uma pessoa deixando-a fraca após repetidas visitas.

Os gregos mencionavam cemitérios como o esconderijo habitual da Striga. Sendo seres da escuridão, elas se sentiam mais à vontade vagando à noite, buscando a segurança de uma cripta ou de uma sepultura vazia para passar o dia. Na Tessalonica era comum os cemitérios usarem desenhos e símbolos que remetiam a Striga para afastar os ladrões. Por essa razão, muitas tampas de caixões e lápides traziam alguma menção a esses seres.

Como ocorreu com muitos elementos da cultura grega, os romanos adotaram esse mito, renomeando-o Strix. A versão  romana guardava similaridade com a lenda grega, contudo podia ser ainda mais aterrorizante. 


De acordo com o historiador romano Servilio, a Strix era uma ave de grande porte, com uma face humana feminina, braços cobertos de penas cinzentas terminando em dedos e garras recurvas. Podiam ter olhos grandes e amarelos que lhes permitia enxergar na escuridão. Eram capazes de voar e de andar em duas pernas, falavam como uma mulher e emitiam silvos quando irritadas, como falcões. Em algumas versões eram dotadas também de um bico usado para perfurar e beber o sangue de suas presas. Seu hálito também era venenoso e um sopro direcionado a uma pessoa podia cegar ou fazer um homem perder os sentidos. A Strix se empoleirava no telhado das casas e ficava ali esperando todos dormirem. Então descia silenciosamente e soprava no quarto da vítima escolhida, contaminando o ar com um cheiro ocre que causava pestilencia. A doença podia levar à uma condicao que se assemelhava à morte. A pessoa acaba sendo enterrada viva, a Strix então a alcançava e devorava.

Para se proteger da criatura os romanos desenhavam símbolos de proteção sobre a porta ou nas chaminés. Também penduraram réstias de cebola e alho nas janelas que deixavam a criatura nauseada. A Deusa Vesta que zelava pelas casas era inocada para proteger a moradia contra a presença indesejada da Strix.

Mesmo assim, quando uma pessoa tinha uma morte repentina, muitos acreditavam que era obra de uma Strix e por isso o corpo sob suspeita só era enterrado após alguns dias para se ter certeza de que ele estava morto. O maior temor era a crença de que a Strix podia transformar as pessoas em seus escravos, reduzindo-os a uma condição de vida apos a morte. Um escravo podia ser destruído com o corpo sendo incinerado. Se uma Strix surgisse, ninguém estaria seguro, sobretudo crianças, já que elas eram a presa favorita da criatura.


Para os romanos, ambos sexos se tornavam Strix, mas a versão feminina era mais poderosa podendo lançar maldições apenas com um mau olhado. Servilio descrevia pessoas fulminadas pelo olhar do monstro e familias inteiras doentes com a exposição ao hálito infernal.

Mas de onde surgia tal criatura? Qual a origem do monstro?

Segundo o mito, pessoas que nasciam com dois corações, duas fileiras de dentes ou duas almas, estavam destinadas a se tornar uma Striga. Uma das características duplas era habitada pelo espírito da Striga que é originalmente uma manifestacao invisível e incorporea. Esta se apossava do corpo e matava a outra metade, tornando-se a única força a habitar a vítima. Uma pessoa normal também podia ser transformada se tivesse contato intimo com o monstro.

O mito da Strix romana foi carregado para o Leste Europeu dando lugar a Strzyga em algum momento da Idade Média. A criatura na região dos Balcãs estaria mais associada à feitiçaria do que ao vampirismo, ainda que também se alimentasse do sangue e energia dos vivos.


A Strzyga era sempre uma mulher envolvida com bruxaria e que recebia poderes profanos do Diabo em pessoa. Para ganhar esses poderes a Strzyga firmava um acordo com as trevas, alienando a sua alma imortal e oferecendo eterna servitude. O acordo era selado quando ela copulava com o Diabo e recebia dele uma marca: um dente adicional, um chifre oculto em meio aos cabelos ou ainda um sexto dedo. Essa era a fonte de poder da Strzyga, um apêndice que funcionava como repositório mágico. Não por acaso, tais itens se tornavam valiosos para feiticeiros.

A característica mais marcante dessas bruxas é que elas podiam assumir a forma de grandes pássaros, em especial corujas, gralhas ou corvos. Nessa forma elas espionavam os vilarejos e se aproximavam dos camponeses que escolhiam para suas tramas malignas. Nada dava mais satisfação a elas do que corromper homens honestos, arregimentar mulheres para sua causa e devorar crianças.

Para se proteger da Strzyga as mulheres faziam tramas de galhos que eram penduradas nas janelas, vertiam água benta no batente das portas e deixavam sangue de porco em tigelas como oferenda que substituía o sangue das crianças tão cobiçadas pela besta.

No século XVI havia a crença de que as Strzyga eram responsaveis pelo Sabá das Feiticeiras. Eram elas quem ensinavam às jovens mocinhas os rituais de sortilégios que as levariam a servir o diabo. Nessas reuniões, na parte mais escura da floresta, as bruxas transformavam suas cúmplices em aves pela primeira vez e elas voavam pelo céu noturno experimentando um êxtase profano. Aquelas que cediam a essa tentação passavam a acompanhar a Strzyga sendo chamadas de Strigoi.


Segundo superstições eslavas, uma Strigoi podia ser revelada se a moça em questão não fosse capaz de tecer uma manta tradicional. Em outras versões, uma moça que não casava, uma esposa sem filhos ou uma prostituta, também poderia ser recrutada pela Strzyga. Para afastar dúvidas, as meninas aprendiam desde cedo como fazer trabalhos manuais e eram preparadas para o matrimônio. 

Acredita-se que lendas sobre a Strzyga e as Strigoi tenham se mantido populares em regiões no interior da Romênia, Iugoslavia, Bulgária e Polônia até o início do século XX. Mas ainda hoje, há lugares onde a crença em tais seres se mantém inabalável. Festivais tradicionais são conduzidos com o objetivo de manter essas entidades sobrenaturais afastadas e preservar os costumes regionais. 

As bruxas ainda voam nesses lugares, alçadas para os céus por grandes asas de coruja, e as pessoas guardam um saudável respeito sobre essas velhas tradições. 

terça-feira, 21 de março de 2023

Todas as Faces do Terror - Os Doze Subgêneros do Horror (Parte 3)


A conclusão da série sobre as diferentes vertentes do Terror.

Horror Surreal/Corporal


O terror surreal é a vertente que que mais se desconecta da realidade. As obras deste subgênero vão além do real, descartando toda a responsabilidade de lógica e do bom senso. Esses romances e filmes colocam o indivíduo em um estado de sonho - ou melhor, de pesadelo -, inclinando-se para o desarticulado e bizarro. A própria sanidade é tratada em momentos nos quais real e imaginario se misturam.

O Horror Surreal é um subgênero de terror que se concentra em elementos surreais e estranhos para criar uma atmosfera de desconforto e confusão. Ele utiliza imagens perturbadoras, situações bizarras e narrativas não-lineares para explorar medos e ansiedades que não podem ser facilmente explicados ou compreendidos pela lógica convencional.

Ao contrário de outros subgêneros de terror que têm uma conexão mais direta com o mundo real, o Horror Surreal cria um universo alternativo onde as regras da realidade não se aplicam. Isso permite que os criadores explorem conceitos e temas que podem não ter uma explicação lógica, como sonhos, pesadelos e experiências extracorpóreas.

O Horror Surreal muitas vezes inclui elementos do subconsciente, do psicológico e do fantástico, criando uma atmosfera onírica que é perturbadora e inquietante. As histórias de Horror Surreal podem ter personagens em constante transformação, ambientes que mudam de forma, e uma sensação de falta de controle e de estar perdido em um mundo estranho.

Em geral não há vilões, há situações inescrutáveis de pavor. O Horror Corporal é uma subversão do Surrealismo na qual o indivíduo passa por transformações profundas. O corpo é a tela para um horror no qual o indivíduo passa por mutações bizarras tanto físicas quanto psicológicas.

Livros e Romances sobre Horror Surreal/Corporal:

The Hollow Places por T. Kingfisher
The Metamorphosis por Franz Kafka
The House on the Borderland por William Hope 
Fugue State por Brian Evenson
House of Leaves por Mark Z. Danielewski
The Cipher por Kathe Koja

Filmes e Seriados sobre o Horror Surreal/Corporal

"Eraserhead" de David Lynch, 1977
"Cidade dos Sonhos" (Mulholland Drive) de David Lynch, 2001
"Videodrome" de David Cronenberg, 1982
"A Hora do Lobo" de Ingmar Bergman, 1968
"A Mosca" (The Fly), de David Cronenberg, 1986
"Possessão" (Possession) de Andrzej Żuławski, 1981
"Begotten" de Elias Mehrige, 1990
"Sob a Pele" (Under the Skin) de Jonathan Glazer, 2013

Horror pós-Apocalíptico


O terror pós-apocalíptico leva leitores e espectadores a um mundo onde a poeira de um evento cataclísmico esta apenas baixando. Mas só porque o momento de quase extinção passou, isso não significa que o terror acabou. De fato, está apenas começando. 

Essas histórias retratam um mundo em ruínas, com sobreviventes tentando juntar os farrapos de suas vidas e reconstruir o que for possivel. Às vezes, a maior ameaça são monstros, efeitos ou outras causas persistentes do apocalipse. Mas às vezes a parte mais perigosa das consequências são as pessoas que abandonaram as sutilezas da civilização e abraçaram a barbárie.

O Horror Pós-Apocalíptico é um subgênero de terror que se concentra nas consequências de um evento cataclísmico que destruiu grande parte da sociedade e da civilização humana. Ele utiliza cenários pós-apocalípticos para criar histórias que exploram a luta pela sobrevivência em um mundo devastado e perigoso.

Ao contrário de outros subgêneros de terror que se concentram em criaturas sobrenaturais ou monstros, o Horror Pós-Apocalíptico apresenta os próprios humanos como a maior ameaça à sobrevivência. Ele pode incluir temas como colapso social, conflitos entre grupos, escassez de recursos, doenças e mutações genéticas.

O Horror Pós-Apocalíptico também pode explorar questões como a moralidade e a ética em um mundo sem leis e regulamentos. As linhas da civilização se misturam e criam um clima de desconfiança e pesadelo. As histórias desse subgênero podem envolver a luta contra o desespero e a falta de esperança em uma situação aparentemente sem saída.

Embora a vertente encontre ecos na ficção científica e aventura, algumas obras mergulham de cabeça no horror.

Livros e Romances sobre Horror Pós-Apocalíptico:

"Eu Sou a Lenda" de Richard Matheson,
"The Walking Dead" de Robert Kirkman
"Dança da Morte" de Stephen King
World War Z de Max Brooks
The Passage de Justin Cronin
Metro 2033 de Dmitry Glukhovsky

Filmes e Seriados sobre o Horror Pós-Apocalíptico:

"A Estrada" (The Road) de Cormac McCarthy
"Mad Max" de George Miller
"Madrugada dos Mortos" (Dawn of the Dead)
"10 Cloverfield Lane", 2008
 "Invasores de Corpos" (Invasion of the Body Snatchers) por Philip Kaufman, 1978
"Filhos da Esperança" (Children of Men) de Alfonso Cuarón, 2006

Horror Tecnológico


Um subgênero da ficção científica, o Horror Tecnológico está no extremo oposto do espectro do horror ecológico. Essas histórias alimentam o medo do mundo antinatural – o mundo que os seres humanos criaram por meio da tecnologia. Os contos são uma advertência dos perigos de uma sociedade pervertida. Os desafios  incluem ameaças à privacidade, perda de individualidade ou então, uma revolta comandada pelas máquinas.

O Tecno Horror é um subgênero de terror que se concentra em elementos tecnológicos ou científicos que se tornaram ameaças para a humanidade. Ele utiliza a tecnologia como um modo para criar histórias que exploram os medos e ansiedades relacionados ao avanço tecnológico e científico, e às consequências negativas do seu uso descontrolado.

O Tecno Horror pode incluir temas como inteligência artificial, robótica, realidade virtual, genética, clonagem, biotecnologia e outras áreas relacionadas à ciência e tecnologia. Ele muitas vezes apresenta dispositivos tecnológicos como fontes de horror: robôs assassinos, computadores que ganham inteligência própria, experimentos genéticos que saem do controle, entre outros.

Alguns dos temas recorrentes no Tecno Horror são a perda de controle humano sobre a tecnologia, o uso indevido ou abuso dela, a possibilidade de falhas no sistema e as consequências imprevisíveis do avanço tecnológico. As histórias desse subgênero muitas vezes exploram questões éticas e morais relacionadas ao uso da tecnologia.

Livros e Romances sobre Horror Tecnológico:

Dead Lines de Greg Bear
ShadowShow de Brad Strickland
Demon Seed de Dean Koontz
Ghoster de Jason Arnopp
Cell de Stephen King

Filmes e Seriados sobre o Horror Tecnológico:

"O Exterminador do Futuro" (The Terminator) de James Cameron, 1984
"Ex-Machina" de Alex Garland,
"Black Mirror" de Charlie Brooker
"The Matrix" dos Irmãos Wachowski
"Parque dos Dinossauros" (Jurassic Park) de Steven Spielberg, 1990
M3gan de Gerard Johnstone, 2022

Horror Gótico


O Terror gótico depende muito da estética e da atmosfera para construir o horror. Este subgênero é sobre escuridão, alienação e assombração - literalmente, ou uma aproximação metafórica. Normalmente, há uma sensação sempre presente de claustrofobia e de labirinto sem saída. Outros temas comuns incluem o romance trágico, a vingança, fanatismo religioso, abuso e morte. Você também pode esperar ver muitos castelos e arquitetura antiga.

O Horror Gótico surgiu no final do século XVIII na literatura e na arquitetura, e se expandiu para outros meios, como o cinema e a televisão sempre se mantendo em dia. Há uma atmosfera de mistério, medo e pavor que geralmente é associada a cenários sombrios e suntuosos.

As histórias de Horror Gótico apresentam elementos sobrenaturais clássicos: fantasmas, vampiros, lobisomens, entre outros. Elas são ambientadas em um passado distante ou em lugares isolados e exóticos sempre com decadência.

O Horror Gótico na literatura é marcado por uma escrita elaborada e rebuscada, com descrições detalhadas de paisagens e cenários, além de personagens complexos e psicologicamente perturbados. Ele é influenciado pelo movimento romântico, que valorizava a emoção à flor da pele e a imaginação. Por vezes, o gênero não mostra; apenas sugere o terror maior, deixando o leitor/espectador imaginando o que os protagonistas estão experimentando.

Livros e Romances sobre Horror Gótico:

"O Médico e o Monstro" de Robert Louis Stevenson
"Frankenstein" de Mary Shelley
"A Queda da Casa de Usher" de Edgar Allan Poe
"A Volta do Parafuso" de Henry James
"O Castelo de Otranto" de Horace Walpole
"Carmila, a Vampira de Karnstein" de Sheridan Le Fanu 

Filmes e Seriados sobre o Horror Gótico

"A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" (Sleepy Hollow), de Tim Burton
"A Colina Escarlate" (Crimson Peak) de Guilhermo del Toro, 2015
"A Mulher de Preto" (The Woman in Black) de James Watkins, 2012
"Do Inferno" (From Hell) de Albert e Allen Hughes, 2001
"Dracula de Bran Stoker", de Francis Ford Coppola, 1992
"Sweeney Todd" de Tim Burton, 2007
"Penny Dreadfull"

E com isso completamos nossa série sobre as diferentes encarnacoes do Terror. 

Espero que tenham gostado.

sexta-feira, 17 de março de 2023

Dia de St. Patrick - A Ilha Esmeralda, Serpentes e o Mythos


Antes que perguntem, SIM!

Esse artigo está sendo REEDITADO e já foi publicado anteriormente aqui no Mundo Tentacular. Mas como é Dia de St. Patrick não custa nada lembrar dele.

*     *     *

Hoje 17 de março, é dia de São Patrício (ou St. Patrick)!

Há muitas lendas à respeito desse Santo da Igreja Católica, conhecido por ser o Padroeiro da Irlanda.

O pouco que se sabe à respeito da vida e trabalho de São Patrício vem de suas próprias escrituras em latim. Na coleção de manuscritos chamada Confissões, Patrick afirma ter nascido na Britânia dominada pelos romanos, o filho de Calpurnius, um diácono no vilarejo de Bannaven. Patrick teria sido capturado após um ataque de saqueadores irlandeses aos 16 anos, levado para a Irlanda, foi vendido como escravo. Ele serviu como pastor de ovelhas nas montanhas de Slemish, a serviço do chefe guerreiro Milchu. Nessa época, seus seguidores contam que ele já era capaz de falar com Deus e operar pequenos milagres.

Depois de seis anos de cativeiro, Patrick escapou e retornou para sua casa onde expressou o desejo de seguir carreira religiosa. Não se sabe ao certo onde ele recebeu sua educação, mas acredita-se que ele tenha abraçado o sacerdócio sob a tutela de St. Germanus de Auxerre.

De acordo com a crônica de Patrick, ele teve uma visão divina que o instruiu a retornar para a Irlanda a fim de converter os povos que lá viviam. Nesse ponto lenda e história se fundem para criar uma personagem capaz de realizar milagres grandiosos e de praticamente sozinho converter todo um povo ao catolicismo, crença que se mantém até os dias de hoje.

Bom, nesse momento você deve estar pensando: "Tudo bem, legal, mas o que isso tem a ver com o tema desse Blog?".

Muito justo perguntar. Há uma história interessante à respeito de St. Patrick.

Entre as grandes realizações do padroeiro da Irlanda consta um feito que ficou conhecido como "A Expulsão das Serpentes da Irlanda". E a coisa é tão marcante que as imagens de St. Patrick em geral vem acompanhadas de serpentes aos seus pés.

Segundo a tradição, certo dia Patrick, foi convocado para ir até um vilarejo a fim de confortar uma família que havia perdido a filha, vítima da picada de uma serpente venenosa. Compadecido pela tragédia, Patrick decidiu que a Irlanda se veria livre desses animais peçonhentos. Ele teria então realizado um grande milagre que fez com que todas as serpentes deixassem a Ilha. A lenda diz que St. Patrick encantou as serpentes com sua voz e cantando hinos religiosos marchou decidido até a costa seguido por um tapete vivo, composto de milhares de répteis venenosos. Ao chegar ao litoral, comandou as serpentes a entrar no mar, livrando assim a Ilha Esmeralda de sua presença.

É uma bela história e por muitos séculos ela foi tida como verdade, reforçada pelo fato de realmente não haver ofídios na Irlanda.

Em verdade, St. Patrick não expulsou as serpentes da Irlanda -- répteis não se adaptam ao clima frio, e o severo inverno irlandês sempre os afugentou. Na realidade, quando a lenda diz que St. Patrick expulsou as "serpentes" da Irlanda, estas são uma metáfora aos cultos que existiam lá até então.

Os povos que originalmente habitavam a Irlanda possuíam raízes pagãs. St Patrick converteu tribos e clãs inteiros, sem derramamento de sangue ou revoltas. Conforme os registros históricos, crenças muito antigas foram sistematicamente abandonadas e houve conversões em massa. Em pouco menos de 30 anos, a Irlanda se rendeu incondicionalmente ao Catolicismo, um feito impressionante.

Ainda assim, o que isso tem a ver com o Mythos?

Pois bem, faz alguns anos li uma matéria à respeito de mitos irlandeses e é incrível como certas coisas se encaixavam perfeitamente na mitologia lovecraftiana. Não apenas os Fomorian (diabos do mar) e a lenda de Balor olho maligno, há mais no folclore irlandês que clama para ser reconhecido como puro Lovecraft.

Nesse contexto, que tal supor que St. Patrick realmente expulsou as serpentes da Irlanda e que além disso foi o responsável por banir os cultos pagãos existentes. Sob uma ótica do Mythos é possível juntar essas informações em uma mesma conclusão:

St. Patrick teria expulsado o Culto do Povo Serpente na Irlanda.

Uma das coisas que eu realmente gosto é de interpretar fatos históricos e lendas sob um ponto de vista do Mythos. Se essas criaturas existissem como elas teriam influenciado acontecimentos históricos?

Podemos inferir que o Povo Serpente -- uma antiquíssima raça humanóide de homens com cabeça de serpente provenientes de eras antidiluvianas -- estava presente na Irlanda do século IV. De fato, as estórias mais clássicas sobre essas criaturas situam suas bases, nas Ilhas Britânicas (sobretudo Gales e Escócia), e não seria de todo impossível que eles habitassem também a Irlanda.

Talvez as lendas sobre serpentes afligindo o bom povo da Irlanda, se referissem não a répteis de verdade ou cultos pagãos, mas a coisas muito piores. O povo serpente é capaz de se misturar a população, assumindo a forma humana, dessa forma poderiam impor suas crenças nefastas e dominar as pessoas. Para piorar as coisas, eles veneram Yig, um dos Grandes Antigos, chamado de Pai das Cobras. Yig é uma divindade que demanda constantes sacrifícios e rituais macabros por parte de seus seguidores. Sua ira mortal se traduz na visita de serpentes venenosas na calada da noite.

Ao descobrir que a Irlanda era assolada pela presença de criaturas não humanas, Patrick deve ter ficado horrorizado. É possível que no contexto do Mythos ele tenha organizado a população local a enfrentar essa ameaça. Talvez ele tenha se tornado um líder que enfrentou as criaturas e cujo sucesso se traduziu na destruição completa do culto e de seus líderes. Quem sabe, Patrick conhecia alguma maneira de enfrentar as criaturas, visto que existem encantamentos capazes de revelar sua forma real. Seja como for, o culto foi derrotado. Como reconhecimento a sua façanha, o povo da Irlanda se converteu, acolhendo as suas crenças.

As histórias sobre os feitos de Patrick foram levadas através da Europa, em algum momento a verdadeira (e terrível) história perdeu seu contexto. A luta contra o povo-serpente se tornou a expulsão de serpentes normais. É possível entretanto, que a crônica desses fatos tenha de alguma forma sobrevivido em algum manuscrito em poder da Igreja, algo mantido trancado nos arquivos eclesiásticos.

O dia de St. Patrick é bastante popular na Europa, nos Estados Unidos e é claro, na Irlanda.

Saint Pat's Day é uma data festiva em que todos se vestem de verde (a cor da Irlanda) e usam broches "Kiss me, I'm a Irish" (beije-me, eu sou irlandês). Dizem que nessa data, beber cerveja pintada de verde garante que não vai faltar bebida o ano todo.

Talvez Patrick tenha sido também um inimigo do Mythos... quem sabe.

Mas para garantir, saúde!

terça-feira, 14 de março de 2023

Todas as Faces do Terror - Os Doze Subgêneros que formam o Horror (parte 2)


E dando sequência nossa viagem através de todas as vertentes do Terror, temos a segunda parte do artigo no qual analisamos mais quatro subgêneros que fazem a alegria dos fãs.

Terror com Criaturas


O Horror com Criaturas se concentra exatamente nisso: Monstros, seres sobrenaturais ou mutantes, como elemento principal do enredo. Essas criaturas podem ser baseadas em lendas populares, mitologia, ficção científica ou simplesmente terem sido inventadas pelo autor, brotando de sua imaginação. Os monstros mais bizarros e as criaturas mais atrozes fazem parte desse subgênero que apela ao nosso incômodo diante do inesperado e do desconhecido. Ele se difere de outros gêneros ao se referir diretamente a horrores incompreensíveis e fora do mundo natural.

As histórias de Horror com Criaturas geralmente apresentam seres horríveis, perigosos e muitas vezes letais que ameaçam a vida e a segurança dos personagens principais. Essas criaturas podem ser o resultado de experimentos científicos, de uma maldição ancestral, de um mal primordial ou ainda vir de outros planetas. Eles assumem uma ampla variedade de formas, muitas delas bizarras e perturbadoras.

O Horror com Criaturas frequentemente evoca sentimentos de medo e repulsa no leitor ou espectador, à medida que as criaturas são retratadas como ameaças implacáveis capazes de causar danos extremos. Um dos cânones do subgênero é que jamais estamos preparados para enfrentar esse horror e que ele sempre se mostra incompreensível. O enredo muitas vezes envolve personagens tentando sobreviver às criaturas enquanto buscam descobrir suas origens e encontrar uma maneira de destruí-las. Toda condução da história gira em torno dessa luta incessante contra o desconhecido e contra uma força misteriosa encarnada num ser.

O terror com criaturas é uma das vertentes mais clássicas do Horror e uma das mais antigas. A mitologia clássica nos deu entidades assustadoras, mas que, ao mesmo tempo que nos aterrorizam, também exercem inegável fascínio. É difícil explicar as razões que nos compelem a querer ver tais criaturas perseguindo, alcançando e matando suas vítimas, mas é fato, que esse sentimento é muito antigo.   

Livros e Romances sobre Terror com Criaturas: 

"Drácula" de Bram Stoker
"Pandora" de Joshua Grant
"The Only Good Indians" de Stephen Graham Jones
"The Forgotten Island" de David Sodergren
"The Hatching" de Ezekiel Boone
"Necroscope" de Brian Lunley

Filmes e Seriados sobre o Terror com Criaturas:

"Alien, o 8º Passageiro" (Alien) de Ridley Scott, 1979 
"O Ataque dos Vermes Malditos" (Tremors) de Ron Underwood, 
"O Enigma do Outro Mundo" (The Thing) de John Carpenter, 1982 
"O Labirinto do Fauno" (Pan´s Labyrinth) de Guillermo del Toro, 2006
"O Monstro da Lagoa Negra" (Creature of the Black Lagoon) de Jack Arnold, 1952
"King Kong" de Merian C. Cooper, Ernest B. Schoedsack, 1933
"A Bolha Assassina" (The Blob),  Irvin Yeaworth, Russell S. Doughten, 1958

Horror de Sobrevivência


Enquanto o objetivo dos protagonistas na maioria das mídias de terror é sobreviver à provação, o Horror de Sobrevivência (survival horror) leva esse conceito a novos níveis. Os livros e filmes desse subgênero enfatizam nossa vulnerabilidade diante do terror. Ele também aborda a questão fundamental de "até onde estaríamos dispostos a ir para sobreviver" e "do que seriamos capazes".

Essas obras colocam o homem contra a natureza, mas ao contrário do terror ecológico, não há nada de extraordinário no meio ambiente - ele mostra o mundo como mortal, em decorrência de algum desequilíbrio ocorrido ou circunstância absurda. Isso significa que, embora possa haver um serial killer perseguindo o protagonista ou uma horda de zumbis famintos, a verdadeira ameaça serão as temperaturas abaixo de zero, os obstáculos de uma montanha ou os túneis de uma caverna profunda.

O Horror de Sobrevivência é um subgênero de terror que se concentra em situações de extrema sobrevivência, em que os personagens principais enfrentam ameaças perigosas e até sobrenaturais e precisam lutar para sobreviver. Muitos dos protagonistas não parecem ter a força necessária para perdurar, mas um dos cânones centrais é que eles a encontram onde menos se espera.

Esse subgênero geralmente envolve situações em que os personagens se encontram isolados ou presos num ambiente hostil. Qualquer cenário funciona, de uma ilha deserta, uma floresta misteriosa ou até num planeta deserto. Os protagonistas são submetidos a condições adversas e ameaças que os testam até os limites, levando-os a tomar decisões difíceis.

O Horror de Sobrevivência frequentemente evoca sentimentos de tensão, medo e ansiedade no espectador ou leitor, já que o desfecho do drama é incerto. O enredo muitas vezes envolve a busca por recursos limitados, o desenvolvimento de habilidades de sobrevivência e o confronto com desafios morais, como sacrificar outros para salvar a si próprio.

Livros e romances sobre Horror de Sobrevivência 

The Hunger de Alma Katsu
The Last One por Alexandra Oliva
One by One por Ruth Ware
The Troop por Nick Cutter  
The Abominable por Dan Simmons

Filmes e Seriados sobre o Horror de Sobrevivência

"The Walking Dead" de Robert Kirkman 
"Amargo Pesadelo" (Deliverance) de John Boorman, 1979
"Abismo do Medo" (The Descent), de Neil Marshal, 2005
"A Bruxa de Blair" (Blair Witch Project) de Daniel Myrick and Eduardo Sánchez, 1998
"Um Lugar Silencioso" (A Quiet Place) de John Krasinski, 2018
"Jogos Mortais" (Saw) de James Wan, 2004
"Extermínio" (28 Days Later) de Juan Carlos Fresnadillo, 2007

Terror Social


Embora o Terror Social seja um subgênero que pode dialogar com qualquer outro subgênero, ele é um fenômeno surgido com força nas últimas décadas. Ele se vale das convenções do horror para fazer uma declaração social, apoiando uma causa específica. Embora muitos livros e filmes de terror possam tecer ideias sociais avançadas, as obras inseridas no Horror Social tornam a declaração em questão a força motriz por trás da trama. Essas obras podem cobrir questões tão amplas quanto o sexismo e racismo ou tão particulares quanto a transfobia.

O Horror Social também se debruça sobre questões relevantes como desigualdade, opressão, preconceito, violência doméstica, abuso infantil, corrupção, entre outros temas. A narrativa utiliza o terror como uma forma de chamar a atenção para essas questões e denunciar situações de injustiça e desigualdade premente.

Ao contrário de outros subgêneros de terror que se voltam para os horrores sobrenaturais, o Horror Social utiliza situações e experiências do mundo real para criar um senso de medo e apreensão entre os protagonistas que são parte de uma minoria. Nesse caso, os maiores vilões são outras pessoas de carne e osso, tão, ou até piores que as criaturas, monstros e seres bizarros. O enredo geralmente apresenta os protagonistas tendo que lidar com questões sociais de maneiras aterrorizantes e perturbadoras, o que pode gerar reflexões e debates sobre esses temas.

O Horror Social também pode ser usado como uma plataforma crítica de eventos políticos e culturais atuais. Por exemplo, um filme de terror que aborda a opressão da mulher, pode ser usado para gerar discussões sobre a injustiça social e a necessidade de mudanças. O gênero também tende a se voltar para o passado, analisando as relações e a estrutura existente em diferentes épocas ou se vale de realidades distópicas para analisar sociedades desestruturadas.  

Livros e romances sobre Horror Social

Território Lovecraft (Lovecraft Country) de Matt Ruff
"Maus" de Art Spiegelman
"O Conto da Aia" (The Handmaid's Tale) de Margaret Atwood.
"Mexican Gothic" de Silvia Moreno-Garcia 
"The Stepford Wives" de Ira Levin
A Balada de Black Tom de Victor LaValle

Filmes e Seriados sobre o Horror Social

"A Síndrome de Stendhal" (Stendhal Syndrome) de Dario Argento
"O Babadook" (The Babbadook) de Jennifer Kent
"Corra!" (Get Out!) de Jordan Peele
"Nós" (Us) de Jordan Peele
"O Mistério de Candyman" (Candyman) de Bernard Rose, 1992 
"A noite dos Mortos Vivos" (Night of the Living Men), 1968

Terror Folclórico


O Folk Horror invoca todo o pavor das velhas tradições e do isolamento rural. Essas histórias geralmente utilizam rituais pagãos e crenças comunais arcaicas que foram descartadas ao longo do progresso e crescimento das comunidades. A constatação de que tais práticas ainda são usadas e a estranheza diante delas se torna o fio condutor dessas tramas. Elas podem incluir elementos sobrenaturais ou permanecer com os pés fincados no horror praticado por indivíduos comuns ligados a essas superstições. De qualquer forma, o subgênero explora o choque de culturas e observa o conflito existente entre o velhos e o moderno.

As histórias se concentram em elementos folclóricos e culturais específicos de uma região ou grupo étnico. Ele utiliza mitos, lendas, crenças e tradições populares para costurar as histórias de terror que são exclusivas de uma determinada região e do povo que ali vive sejam eles nativos americanos, japoneses, esquimós ou habitantes de uma ilha isolada.

O Horror Folk tende a extrair do mundo real os elementos que constroem o senso de medo e apreensão. Ele pode incluir personagens folclóricos, como lobisomens, bruxas, duendes, espíritos vingativos e outras entidades populares na cultura local. Nas obras desse subgênero, o terror é apresentado à princípio como mera superstição, mas aos poucos, ela se mostra algo real e perturbador.

Um dos aspectos mais interessantes do Horror Folk envolve explorar a relação entre o ser humano e o mundo natural, e examinar os medos e as ansiedades que surgem em torno da vida rural, das tradições antigas e dos costumes enraizados num grupo. As histórias de Horror Folk podem muitas vezes incluir temas como sacrifício, rituais macabros, regras rígidas e punições severas. Os protagonistas são confrontados com essa realidade à medida que tentam sobreviver aos ataques e derrotar algum culto, sociedade ou cabala que serve a um interesse superior.
 
Livros e romances sobre Horror Folclórico

Harvest Home por Thomas 
The Ritual por Adam Nevill
Hex por Thomas Olde Heuvelt
The Fisherman por John 
The Great God Pan por Arthur Machen
Pine por Francine Toon

Filmes e Seriados sobre o Horror Folclórico

"O Sétimo Selo" (The Seventh Seal) de Ingmar Bergman
"A Bruxa" (The Witch) de Robert Eggers, 2017
"O Homem de Palha" (The Wicker Man) de Robin Hardy, 1973
"A Maldição dos Mortos Vivos"(The Serpent and the Rainbow) de Wes Craven, 1988
"Midsomnar, a Morte não espera a Noite" (Midsomnar) de Ari Aster, 2017 
"Kill List" de Ben Wheatley, 2011

E essa foi a segunda parte nessa série...

Espero que tenham gostado e fechamos na próxima com os últiomos quatro subgêneros que compõem o terror clássico.

Fiquem conosco...

sábado, 11 de março de 2023

Descanso Interrompido - Os corpos mumificados de Portugal


"A grande ironia humana é que 
o maior mistério de nossas vida se inicia com nossa morte

Há falta de espaço para cemitérios e sepulturas em Portugal… isso não é exatamente uma novidade, mas a causa tem pouco a ver com a superpopulação e o aumento de mortes entre os vivos. Portugal tem cadáveres se acumulando nas morgues porque os que já estão mortos estão se transformando em múmias. É isso mesmo, os corpos não estão se decompondo da maneira esperada. 

Se isto soa como uma nova reviravolta no apocalipse zombie ou na crença católica de que os corpos de alguns santos não se decompõem, os investigadores estão abertos a sugestões, pois não têm ideia da razão pela qual os mortos se mumificam misteriosamente em Portugal. E isso está causando sérios problemas para cemitérios, necrotérios e famílias dos falecidos.

"Isso tem um impacto social, o que é muito importante para a sociedade portuguesa."

“Isso”, segundo Ângela Silva Bessa, antropóloga forense da Universidade de Coimbra que faz pesquisas sobre os cemitérios portugueses, é uma combinação de fatores, a começar pela falta de espaços funerários no país, que se tornou tão grave no final dos anos 1950 e início dos anos 1960 que uma prática chamada “levantar os ossos” foi introduzida em 1962. Como a maioria dos outros países europeus, os portugueses há muito enterravam seus mortos em pequenos cemitérios de igreja e os paroquianos tinham um entendimento - quando novos corpos eram adicionados a um lote familiar, os antigos eram removidos e colocados em um ossuário ou túmulo comum. Antigamente, podiam se passar décadas antes que surgisse a necessidade de exumar, mas a escassez de espaços tornou-se tão grave que, igrejas e cemitérios foram autorizados a tratar sepulturas como temporárias, com um limite de ocupação de 3 a 5 anos. Transcorrido esse prazo, os restos eram removidos automaticamente para o ossuário comum – que podia ser um nicho nas paredes do cemitério ou cremados, prática menos comum em Portugal. Mórbido sim, mas a sociedade aceitou tal coisa e a prática de “levantar os ossos” deu certo... até que a procura por espaços ficou ainda maior. Isso levou a outro impacto social mais mórbido.

Uma pesquisa nos cemitérios do Porto, a segunda maior cidade de Portugal, constatou que entre 55% e 64% dos corpos enterrados entre 2006 e 2015 não foram totalmente decompostos após a primeira exumação.


Quanto menos tempo um cadáver passa em uma cova, menos tempo ele tem para se decompor. Como as famílias são notificadas para que possam estar presentes quando os membros da família são exumados e transferidos, eles podem ver os restos mortais de entes queridos quase em perfeito estado. A prática se torna emocionalmente desgastante para os familiares. Com os corpos nesse estado é impossível transferir os restos e a solução é esperar mais algum tempo...  

"É surpreendente. Na mesma seção do cemitério, tem-se múmias quase perfeitas e que não apresnetam quase nenhuma deterioração", surpreende-se a especialista em sepulturas.

Imagine ir ao túmulo de um parente próximo para realizar uma exumação e transferência e encontrá-lo completamente preservado muitos anos após sua morte. Isso não é exatamente “incorruptibilidade” – a crença católica de que os corpos de algumas pessoas santas não se decompõem por causa de um milagre da intervenção divina. É algo totalmente diferente e que vem interferindo na rotação dos espaços funerários.

Especialistas apontam que o estado dos cadáveres em nada se assemelha à mumificação intencional praticada no antigo Egito – um processo complexo que demandava vários estágios. No entanto, o tipo de mumificação ocorrido em Portugal encontra semelhanças ao que ocorre no Peru e em outros países da América do Sul, onde o ar seco das montanhas desidrata rapidamente os corpos de forma natural os deixando preservados. No entanto, o curioso é que o fenômeno é algo novo!

Não há nada assim registrado na história de Portugal e não se sabe as razões para estar acontecendo nesse momento em particular. 

"Os corpos estão mumificando total ou parcialmente, e em taxas diferentes no mesmo ambiente. Não há um padrão que tenhamos reconhecido ou razões que tenhamos detectado. Sinceramente, imaginei que encontraria uma relação entre as propriedades do solo e o estado da composição dos corpos. E nem isso encontrei.". Explicou Ângela Bessa.


A decomposição do corpo humano já foi muito estudada, mas ainda é um processo intrigante. Os quatro estágios de decomposição são aceitos como autólise ou autodigestão (as células se quebram e o rigor mortis se instala), inchaço, decomposição ativa e esqueletização. No entanto, o cronograma para que isso aconteça pode variar em certos casos. 

Tristan Krap, professor de ciências forenses na Universidade de Maastricht, na Holanda, aponta que três anos não é tempo suficiente para a decomposição completa até o estágio esquelético. Ele também observa que muitos estudos são feitos por cientistas forenses com foco nos corpos de vítimas de crimes ou em fazendas de decomposição onde os corpos se decompõem acima do solo. "Sabemos relativamente pouco sobre como os corpos se decompõem no subsolo – especialmente porque existem tantas práticas funerárias diferentes em todo o mundo.

Uma das suposições levantadas por Krap sobre a situação em Portugal é que corpos estão mumificando por conta de variações de tamanho, massa muscular e teor de gordura. Outra possibilidade poderia ser as variações no complexo ecossistema que está no solo em diferentes locais em um cemitério (sob as árvores; em uma colina ensolarada; em uma área de drenagem pobre) e entre diferentes cemitérios. Por fim, o estilo de vida das pessoas, que pode ter apressado a morte, também pode influenciar no pós-morte – a decomposição e a mumificação podem estar relacionadas ao que a pessoa comeu, se fumou ou tomou certas medicações.

"A continuar essa situação, nós estaremos diante de um quadro grave dentre 5 e 10 anos", analisa Ângela Bessa com ares de preocupação.
 
Sim, a cremação definitivamente resolveria o problema do espaço e acabaria com o mistério da mumificação. Contudo, embora o número de crematórios tenha aumentado em Portugal nas últimas décadas de quatro para 38, o enterro ainda é o método preferido dos portugueses para cuidar de seus mortos.