quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Os Outros Arabes Loucos - feiticeiros dos Mythos no Oriente Médio

Os conhecedores dos Mythos de Cthulhu sabem muito bem quem é o infame Abdul Al-Hazred

Apesar desse personagem peculiar jamais ter aparecido em pessoa nas histórias de seu criador H.P. Lovecraft, é inquestionável que ele seja considerado um dos mais importantes. O Velho Abdul, que também responde pela alcunha de "O Árabe Louco" não é outro senão o autor do igualmente infame Al-Azif. Por sua vez, esse tratado de magia negra e feitiçaria, considerado como o depositário de todo conhecimento blasfemo dos Mythos ancestrais, entraria para a história através de seu título em grego - Necrononicom.

Do momento em que foi citado pela primeira vez por Lovecraft no conto The Hound em 1922, Al-Hazred e seu livro profano se tornaram nomes associados a toda mitologia lovecraftiana. É tamanha a conexão que Al-Hazred se converteu numa espécie de porta-voz do Mythos, o sujeito que detinha maior saber sobre esse terrível tema, e quem o difundiu através dos séculos vindouros. No cânon de Lovecraft, quando o árabe louco deitou sua pena sobre as páginas criando seu tomo, o mundo jamais seria o mesmo. Quanto mais se tentou deter esse conhecimento, mais ele se espalhou - trazendo com ele loucura.

Entretanto, embora Al-Hazred seja com certeza o mais conhecido Profeta do Mythos ele seguramente não é o único. Ele sequer é o único "árabe louco" associado ao Mythos.

Há outros personagens fascinantes ligados ao estudo soturno dos Deuses e Entidades Ancestrais.  Alguns se notabilizaram pelos feitiços que levam seus nomes ou pelos tomos que escreveram. Alguns são bastante obscuros, reconhecidos por apenas alguns poucos estudiosos do Mythos, que encontraram textos com suas obras e fragmentos de sua pérfida biografia.

Nesta série de artigos seremos apresentados a alguns destes "árabes loucos": pensadores, teóricos e feiticeiros que detinham um saber atroz.

BARZAI


Chamado de "O Grande" pelas suas muitas façanhas místicas, Barzai nasceu em um pequeno vilarejo da Arábia Saudita em meados do século oitavo da era cristã. Membro de uma família de posses, ele era o quarto filho na linha sucessória, o que lhe permitiu devotar seu tempo para atividades acadêmicas que o levaram a estudar na prestigiosa Universidade de Al-Azhar. Há indícios de que Barzai chegou a estudar teologia e se graduar em filosofia islâmica, até que em algum momento sua atenção foi atraída para disciplinas menos ortodoxas.

Supõe-se que em algum momento durante seus estudos, Barzai tomou conhecimento das práticas profanas de feiticeiros que operavam nos bastidores da universidade. Não se sabe quem instruiu Barzai no universo do Mythos, mas sabe-se que sua ascensão foi meteórica, tão notável que aos 40 anos ele havia se tornado uma espécie de mestre entre os seus pares. O título "O Grande" lhe foi atribuído dentro dessa mesma Sociedade Arcana clandestina quando ele se converteu em seu líder.

A exemplo do célebre Al-Hazred (nascido quase um século depois), Barzai não foi um cultista devotado a Entidades ancestrais, embora tivesse interesse nos Deuses Exteriores Yog-Sothoth e Azathoth. Ele leu os Manuscritos Pnakóticos e os Sete Livros Crípticos de Hsan em suas versões originais e escreveu dissertações sobre eles. Barzai via os Mythos como um instrumento para obter poder e influência na sociedade do período e foi um mestre nisso. Um talentoso arcanista, Barzai forjou portentosos feitiços, sendo o mais famoso aquele conhecido como Cimitarra de Barzai que possui um capítulo no próprio Necronomicon. 

Com idade avançada, Barzai se retirou do Mundo Desperto para a Terra dos Sonhos radicando-se na cidade de Ulthar próximo do Rio Skai. Lá ele expandiu seu conhecimento arcano investigando tomos que existiam apenas na dimensão onírica. Seu desejo por saber proibido, no entanto foi a sua perdição.  Barzai empreendeu uma árdua jornada rumo ao topo do Monte Hatheg-Kla, a suposta morada dos deuses e onde Eles se reuniam para executar sua dança. Barzai jamais retornou dessa expedição, mas suas anotações foram reunidas por Atal, seu aprendiz, que nos anos posteriores copiou suas palavras numa coleção de pergaminhos que só existe no lendário Templo dos Antigos Deuses de Ulthar. Muitos feiticeiros tentaram obter acesso a esses documentos, mas até onde se sabe, Atal, já em idade venerável raramente concede aos postulantes o direito de folhear essas páginas.

Barzai é conhecido pelos estudiosos do Mythos graças ao já mencionado feitiço da Cimitarra de Barzai que cria uma espada de bronze usada para inscrever símbolos mágicos e afastar espíritos malignos. Abdul Al-Hazred considerava Barzai um dos maiores feiticeiros do Oriente Médio.     

AKBAR IBN-BADAWI


Pouco se sabe à respeito de Akbar ibn-Badawi, além do que foi reunido pelos biógrafos que preservaram sua obra mais famosa o tratado Kitab Rasul Al-Akbarin (O Livro do Emissário Akbar). Atualmente sabe-se da existência de apenas três destes tomos guardados cuidadosamente em bibliotecas do Mundo Islâmico e tratados como livros de fábulas e gnosticismo medieval. É possível, entretanto que outras cópias constem em coleções particulares ou em prateleiras de instituições sob nomes falsos.

Diferente do que aconteceu com outros acadêmicos islâmicos que se debruçaram sobre o indigesto tema do Mythos, o Rasul Al-Akbarin sofreu menos censura e perseguição que outros livros, como o próprio Al-Azif cujas cópias foram sistematicamente destruídas. É possível que o tratado tenha sobrevivido graças a providenciais censuras realizadas pelos assistentes que compilaram versões mais suavizadas do tomo. Acredita-se na existência de volumes completos que não poupam o leitor de detalhes gravosos sobre os Grandes Antigos, em especial o obscuro Deus Huitloxopetl.

Um dos volumes remanescentes, presente no acervo da Biblioteca na Universidade al-Qarawiyyin em Fez, Marrocos fala brevemente sobre a vida de Ibn-Badawi num trecho ausente em outras edições. O autor teria nascido em algum ponto do Norte da África no século XIII na época sob  controle do Mundo Islâmico. A biografia atesta que ele estudou sob a tutela de renomados filósofos muçulmanos do período. Há insinuações de que ibn-Badawi teria lecionado no Cairo onde teve contato com fragmentos do Al-Azif que sobreviveram aos expurgos teocráticos dos imanes. Ele teria traduzido alguns capítulos e incorporado trechos ao seu livro, sem citar a fonte original.

Numa esfera pessoal, Akbar ibn-Badawi teria sido perseguido por autoridades religiosas e preso no Egito sob a acusação de heresia. Ele foi libertado das masmorras cairitas graças a simpatizantes que o levaram para Damasco onde ele se estabeleceu até seu falecimento. O biógrafo assume que ele tenha se envolvido em uma tentativa de reunir partes perdidas do Al-Azif. Ele teria auxiliado no envio do livro para a Grécia onde o Compêndio Esotérico foi traduzido por Theodorus Philletas para o idioma helênico sob o título de Necronomicon.

Rumores sobre ibn-Badawi mencionam que ele possuía um estranho dom sensitivo que lhe permitia contatar os mortos. De fato, os boatos dão conta de que ele ouvia as palavras dos mortos sendo sussurradas para que ele as copiasse laboriosamente. Um dos fantasmas envolvidos seria o do próprio Abdul Al-Hazred, morto 200 anos antes em Damasco. Não há como atestar se essa informação é verdadeira ou mera invenção.

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Mas há outros feiticeiros, bruxos e estudiosos do Mythos como descobriremos nos próximos artigos. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Louco feito um Chapeleiro - Uma inesperada profissão de altíssimo risco

Quando se pensa em trabalhos perigosos as pessoas quase sempre lembram de soldados que arriscam suas vidas em campos de batalha. Lembram também de médicos e profissionais de saúde que se arriscam para tratar de vítimas de doenças contagiosas e letais. Há ainda os que vivem em alto mar, que exploram as profundezas oceânicas ou que voam em foguetes rumo ao espaço.

Quando se fala em trabalhos perigosos nos dias atuais, dificilmente alguém citaria o Milliner, uma profissão que desapareceu ao longo das últimas décadas. Um Milliner era basicamente alguém que trabalhava no ramo da confecção de chapéus - em bom português, um chapeleiro.

Pode ser uma surpresa para muitas pessoas, entretanto a profissão de chapeleiro era considerada tão perigosa no século XIX que gerou até mesmo um ditado: "mad as a hatter" (algo como "louco feito um chapeleiro"). A expressão era usada para se referia a pessoas que aceitavam fazer trabalhos arriscados por pequenas recompensas. 

Mas por que esse aparentemente tranquilo trabalho era considerado uma profissão de alto risco? 

A resposta carece de certo contexto histórico.

No século XV a sociedade europeia adotou um novo código de vestimenta que incluía uma peça que se tornou comum em todas as camadas sociais. Do mais bem nascido nobre, ao mercador e mais simples aldeão, todos queriam adornar suas cabeças com chapéus. Essa peça de vestimenta se tornou tão difundida na Europa e posteriormente no restante do mundo que era praticamente impossível uma pessoa sair de casa sem cobrir sua cabeça. 

No início os chapéus eram caros e difíceis de serem obtidos, mas dada a demanda do artigo logo começaram a surgir chapéus de todos os preços. Quando as nações europeias se lançaram ao mar e dominaram colônias nas Américas, isso deu ao chapéu um impulso notável. As pessoas desejavam chapéus de pele de animais do novo mundo. Não é exagero dizer que uma indústria inteira nasceu com essa necessidade.

Animais eram abatidos nas Américas e suas peles arrancadas e enviadas para a Europa para serem curtidas, tratadas, preparadas e finalmente moldadas no formato de chapéus. Todo esse processo era realizado pelo Milliner, o chapeleiro.

Ok, mas o que há de tão perigoso nisso?

Bem, com a demanda para uma produção cada vez maior, era importante confeccionar os chapéus o mais rápido possível. Um método rápido que permitia separar o pelo da pele dos animais envolvia mergulhar a matéria prima em uma banheira com produtos químicos. Isso reduzia o tempo consideravelmente, mas o principal ingrediente para essa mistura era o mercúrio.

Acontece que o mercúrio emana um vapor altamente tóxico que se inalado de forma recorrente acaba causando uma doença chamada eretismo.

O eretismo é uma condição grave que nos estagios iniciais causa apatia, irritação, depressão e insegurança. Os efeitos são em sua maioria neurológicos, com a exposição frequente a pessoa exposta começa a apresentar um agravamento e efeitos colaterais cada vez mais complexos.

A exposição aos vapores do mercurio pode provocar tremedeira, tics nervosos, euforia, e finalmente delírios. Os chapeleiros passavam horas expostos a grandes tanques com mercurio, mexiam nas peças ensopadas e manipulavam tudo aquilo sem qualquer proteção. Poucos meses nessa atividade podiam ser o bastante para causar o eretismo.

Não era raro que os Milliner manifestassem sintomas bizarros. Alguns apresentavam tremores que os impediam de trabalhar, tinham tremores faciais que quase os deformavam, ouviam coisas, sentiam gostos e cheiros estranhos e chegavam a experimentar alucinações absolutamente reais. Em Londres no ano de 1786 um famoso Milliner foi preso depois de assassinar a esposa e seus dois filhos afogando-os em uma tina em sua oficina. O incidente causou enorme comoção e consolidou a relação entre os chapeleiros e a loucura.

Muitos chapeleiro começaram a ser vistos como pessoas peculiares e dadas a comportamento excêntrico. Não se  entendia exatamente o que causava aquilo e embora muitos suspeitassem do Vapor de Mercúrio essa era apenas uma suposição que não justificava sua substituição. 

As pessoas definiam o Eretismo como o "Mal dos Chapeleiros" e logo a expressão "louco feito um Chapeleiro" acabou pegando. Estima-se que um em cada quatro Milner acabava desenvolvendo algum grau de eretismo, sendo que muitos terminavam seus dias trancafiados em asilos ou manicômios dado seu estado mental deteriorado. O Eretismo avançado não tinha cura e mesmo se afastando do trabalho insalubre as pessoas continuavam manifestando a doença.

No final do século XIX um estudo realizado pela Academia Médica de Paris determinou a relação direta existente entre os vapores do mercúrio e a misteriosa loucura dos chapeleiros. Um novo composto químico baseado em ácido hidroclorídrico passou a ser empregado em substituição ao mercúrio o que reduziu os riscos da profissão. Curiosamente nos Estados Unidos os profissionais da área substituíram o uso do mercúrio por cloro hidratado no tratamento de peles, somente na década de 1940.

A loucura do Chapeleiro foi imortalizada pelo escritor Lewis Caroll que criou o personagem Chapeleiro Louco para sua obra mais famosa "Alice no País das Maravilhas". Acredita-se que Caroll se inspirou em Theophillus Carter um chapeleiro que vivia perto de sua casa e que era um tipo dado a comportamento peculiar.

É notável como a loucura prolifera nos meios mais insuspeitos, assim como o Caos, ela parece simplesmente surgir onde menos se espera.