quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

O Homem mais Procurado do Mundo - A vida e as muitas mortes do assassino em série Bela Kiss


Na Hungria, no início da década de 1900, Bela Kiss de 32 anos, mudou-se para uma casa alugada em Cinkota, uma pacata cidadezinha nos arredores de Budapeste.

Kiss era um homem simpático que logo ganhou a admiração de todos. Seus vizinhos imediatamente o viram como um sujeito amigável, o tratavam como alguém de respeito, um cidadão acima de qualquer suspeita. As mulheres o achavam bastante bonito, com cabelos loiros brilhantes e olhos de um azul que parecia se iluminar quando demonstrava interesse. Seu grande bigode, cuidadosamente aparado parecia másculo e severo, mas Bela era gentil e muitos descreviam sua voz como cativante. 

Ele ganhava a vida como funileiro, uma profissão importante na época. Um funileiro era uma espécie de artesão em ferro que realizava conserto e serviços em objetos de metal, ofício que lhe garantia um salário regular. Para todos os efeitos ele tinha uma vida tranquila e com algumas regalias. 

Kiss também se destacava pela sua notável inteligência. Não apenas havia aprendido sozinho seu trabalho como se mostrou um artesão admirado pela habilidade. Clientes vinham de todo canto, inclusive da capital, trazer algum objeto para ele reformar. Mas Bela não se destacava apenas pela sua profissão, ele também era famoso por ser um leitor voraz. De fato ele devotava seus momentos de folga para a leitura que era sua atividade favorita. Ele tinha orgulho da vasta coleção de livros sobre os mais variados temas. Kiss era um conhecedor de arte, literatura e história antiga. Era capaz de dissertar à respeito de estilos de arte clássica, de falar sobre as vertentes do modernismo, fazer crítica sobre romances e tecer comentários à respeito da política internacional. Alguns amigos vinham até sua oficina apenas para conversar e ele os recebia sempre com um sorriso, satisfeito em trocar ideias sobre os últimos acontecimentos na Europa.

Sem nenhuma escolaridade formal, era notável como Bela conseguia cativar a todos, sendo capaz de discutir praticamente qualquer assunto com as pessoas mais inteligentes e instruídas da cidade. Ademais falava alemão, russo, checo e latim, além de entender o básico de grego e búlgaro. Os idiomas, se gabava de ter aprendido quando prestou o serviço militar e foi secretário de um General. Bela teria se destacado recebendo inclusive condecorações no serviço militar.

Ele também tinha fama de ser um bon-vivant com propensão a dar festas. Em mais de uma ocasião convidou amigos e conhecidos para festejar nas tavernas locais, pagando à todos refeições e bebida, o que lhe valeu a fama de ser generoso. Em resumo, todos gostavam de Bela Kiss e ele era considerado pelas mulheres o solteiro mais cobiçado da cidade.

Não particularmente ansioso para se casar, Kiss contratou a idosa Sra. Jakubec, como governanta para realizar as tarefas domésticas que uma esposa normalmente faria. Cinkota tinha uma escolha limitada de companheiras, então Kiss manteve um apartamento em Budapeste e publicou anúncios românticos em jornais de lá. As mulheres se correspondiam com Kiss que recebia muitas cartas. As fofocas na cidade davam conta de que ao longo dos anos um fluxo constante de mulheres de Budapeste passavam curtos períodos de tempo na casa de Kiss em Cinkota, mas ninguém na cidade, nem mesmo a Sra. Jakubec, foi apresentado a essas jovens que iam e vinham tão rapidamente.

Ele tinha 37 anos quando a Guerra Mundial eclodiu em 1914 e os reservistas húngaros foram convocados para defender o país. Bela não estava especialmente ansioso para retornar ao serviço militar, mas acabou se apresentando e foi reintegrado ao Exército nacional. Bela deixou sua casa fechada e oito meses de aluguel pagos em avançado. Ele esperava retornar em breve e continuar seguindo com seu trabalho como funileiro, retomando sua vida normal. Talvez por conta disso ninguém jamais poderia imaginar o horror que seria revelado cerca de dois anos após a sua partida.

Tudo começou de uma maneira bem simples. Certo dia o detetive-chefe Charles Nagy da polícia de Budapeste, recebeu uma ligação alarmante. Era o dia 16 de julho de 1916 e a pessoa do outro lado da linha se apresentou como morador de Cinkota. O tom era de afobação e ele parecia não falar coisa com coisa. 

Ele acreditava ter descoberto evidências de um assassinato ocorrido em sua propriedade.

O sujeito explicou que era o proprietário de uma casa na rua Kossuth que havia sido alugada a um soldado chamado Bela Kiss. O inquilino havia partido para a guerra e o contrato havia expirado.  Rumores mencionavam que ele se tornou prisioneiro de guerra ou até que possivelmente havia sido morto em batalha. De qualquer forma, não era provável que ele retornasse logo já que a guerra se arrastava.  

O proprietário foi até a casa para ver que reparos seriam necessários caso ele viesse a alugá-la novamente. No pátio nos fundos da casa se deparou com algo inusitado: vários tambores grandes de metal. Aquilo era esquisito pois o inquilino havia deixado aquelas coisas misteriosas sem mencionar o que seriam. Imaginando que poderia ser combustível estocado, o senhorio perfurou um dos tambores fazendo escorrer de dentro dele uma água escura de fedor nauseante. Um funcionário da farmácia ao lado disse que o cheiro era inconfundível e decretou se tratar de decomposição humana. 

O proprietário implorou ao Detetive Nagy que viesse com urgência já que haviam dezenas de tambores semelhantes e ele tinha um péssimo pressentimento sobre o que acontecia ali. Nagy reuniu dois de seus melhores detetives e correu para a pacata cidadezinha de Cinkota. Quando chegaram à casa da rua Kossuth, o proprietário e alguns vizinhos já aguardavam com olhares preocupados. A idosa Sra. Jakubec, que havia prometido proteger os pertences de seu patrão, ficou furiosa e gritou para os policiais deixarem a propriedade em paz.

Nagy a tranquilizou se responsabilizando por qualquer dano produzido. Ele então abriu um dos tambores de metal lacrado com solda. Isso confirmou as piores suspeitas do proprietário e dos moradores locais. Dentro havia o corpo nu de uma jovem morena com longos cabelos escuros. Também dentro do tambor de metal estava a corda com a qual ela havia sido amarrada. O fedor era tamanho que a vizinhança inteira se perguntava o que havia acontecido na casa do funileiro.

Ao ser questionada, a Sra. Jakubec ficou perplexa com o conteúdo das grandes latas de metal que Bela Kiss estocava em seu quintal.  Os poucos que haviam visto os tambores presumiram que se tratava de gasolina ou diesel estocada. Quando os detetives examinaram os outros tambores de metal, descobriram que cada um continha o corpo de uma mulher nua. Todas elas foram vítimas de abuso e estrangulamento, finalmente haviam sido mergulhadas em uma solução de álcool que as preservava.

Depois que os detetives isolaram a cena do crime um agente funerário foi chamado para recolher os cadáveres. A polícia também conduziu uma busca na casa de Kiss e nos arredores, encontrando mais corpos que haviam sido enterrados no terreno. Cada vítima, mesmo aquelas que foram enterradas, havia sido preservada com álcool. Os corpos ainda eram reconhecíveis e podiam ser identificados se tivessem alguns nomes com os quais trabalhar. O número de vítimas chegava a 15.

Diante do maior caso de sua carreira o Detetive Charles Nagy notificou imediatamente os militares que Bela Kiss, se ainda estivesse no front, tinha de ser preso como assassino. Em seguida, ele interrogou a governanta aterrorizada. Nagy acreditava que Kiss poderia ter um cúmplice, por isso notificou as autoridades postais e telegráficas das redondezas que deveriam reter quaisquer mensagens destinadas a Bela Kiss. A notícia da grande descoberta estava se espalhando rapidamente por Cinkota e logo chegaria aos jornais de Budapeste. Nagy queria ter certeza de que nenhum cúmplice receberia um aviso.

Vários fatos tornaram a investigação mais difícil do que o normal. Os nomes húngaros Bela e Kiss eram extremamente comuns no país. Era provável que houvesse muitos homens no exército chamados Bela Kiss de modo que a prisão do indivíduo correto seria complicada por fatores alheios a sua vontade. 

Nagy então se concentrou na identidade das vítimas que poderia ajudar a entender como aquelas mortes aconteceram. As pistas nos cadáveres eram escassas já que as vítimas estavam nuas e sem identificação. Contudo, dentro da casa que a senhora Jakubec manteve imaculada, a polícia encontro uma única porta trancada. "Essa é a sala particular do patrão", disse a criada ao detetive Nagy. "Ele me disse para nunca entrar e nunca deixar ninguém entrar". A Sra. Jakubec enfiou a mão no avental e tirou uma chave antiga que abriu a porta trancada a dois anos. Nagy percebeu imediatamente que a sala estava repleta de estantes cheias de livros e a única mobília era uma grande escrivaninha e uma cadeira confortável.

Os livros eram escritos em vários idiomas e versavam sobre os mais variados assuntos. No entanto, chamou a atenção de todos a quantidade enorme de livros versando sobe ocultismo, magia negra, feitiçaria e temas similares. Bela Kiss parecia alguém muito interessado no tema e dedicado ao que se convencionou chamar de Ciências Esotéricas. Os livros eram antigos, alguns manuscritos contendo todo tipo de conhecimento estranho.  

Numa gaveta trancada na escrivaninha a polícia encontrou um enorme volume de correspondência entre Kiss e várias mulheres. Também encontraram um álbum com fotos de mais de cem mulheres com as quais ele teria se correspondido ao longo de vários anos. Nagy começou a se preocupar com a possibilidade de o número de vítimas ser maior do que o de cadáveres descobertos na casa. As cartas foram arquivadas em pacotes para que a correspondência fosse separada por ano. As mulheres escreviam em resposta a anúncios publicados na seção de Correio Sentimental nos maiores jornais de Budapeste. Todas queriam casamento e achavam Bela Kiss um bom partido. Mais tarde foi revelado que Kiss havia recebido 174 propostas de casamento. A 70 dessas mulheres, ele ofereceu casamento e manteve correspondência regular com elas. Outra coisa ficou bastante clara, Bela Kiss estava enganando mulheres pegando empréstimos delas e enriquecendo. Algumas das cartas datavam de 1903.

A polícia se perguntava como era possível que Kiss pudesse se corresponder com tantas mulheres e trazer muitas delas para sua casa sem que ninguém suspeitasse de suas intenções. Era impossível que ninguém soubesse de alguma coisa.

Nagy suspeitava da Sra. Jakubec, já que ela era criada na casa há mais de uma década. Quando Nagy a interrogou, ela se mostrou aterrorizada com a possibilidade de ser acusada de participação nos crimes, ainda assim tentava defendê-lo à todo custo: "Ele era um homem muito bom. Todos gostavam muito dele na cidade. Ele era gentil com todos; não machucaria ninguém! Tenho certeza de que isso é um erro – ele não pode ter matado aquelas mulheres!"

A criada admitiu ter visto muitas moças entrando e saindo da casa vindo visitar Bela Kiss ao longo dos anos, mas alegou não saber seus nomes. "Eu quase nunca disse uma palavra a eles. Eu era apenas a criada e passava as noites em minha própria casa. O que Bela fazia com essas senhoras não era da minha conta. Eram todas senhoras da cidade, não camponesas como eu. Vinham num dia e depois iam embora."

Nagy e seus colegas questionaram os vizinhos de Kiss na cidade e os que o conheciam. Todos gostavam dele e não achavam incomum um solteiro bonito e amável receber a visita de várias mulheres. Os homens casados ​​da cidade o invejavam, as mulheres o admiravam. Quem poderia imaginar o que acontecia na casa? Quem poderia dizer que atos tão horríveis aconteciam ali, bem perto deles?

O detetive contatou os departamentos de polícia de todos os lugares onde encontrou uma mulher que havia se correspondido com Bela Kiss. Eventualmente, ele teve certeza de entender a técnica usada pelo assassino para atrair suas vítimas. Ele colocava anúncios nos jornais, buscando informações sobre os recursos financeiros da mulher. Quando recebia resposta ele a visitava, descobria sobre sua família e amigos. Ele se concentrava nas mulheres que não tinham parentes próximos e que não fariam falta se desaparecessem. Com o tempo as seduzia e conquistava sua confiança.

A maioria das cartas indicava que as mulheres lhe davam dinheiro, joias e às vezes tudo o que tinham, tamanha a habilidade dele em inventar histórias e razões absurdas para que elas o fizessem. Bela também dizia ser uma espécie de místico, bruxo ou vidente que auxiliava as mulheres oferecendo a elas meios de conquistarem o que desejavam. O homem era na verdade um charlatão, um falsário e um sedutor. Se ele achasse que havia algum risco de envolvimento da polícia, imediatamente providenciava um encontro no qual as eliminava. Dessa maneira ele aparentemente havia atraído dezenas de mulheres até sua casa ou até lugares onde poderia matá-las. Bela era um mestre no uso do garrote, aparentemente ele aperfeiçoou o método lendo e buscando informações em revistas policiais do período. Um auto de data, ele se gabava de ser capaz de matar com rapidez para não fazer a vítima sofrer demasiadamente: "Ao pegar de jeito, não há escape", escreveu ele. 

Analisando as cartas, a polícia obteve indícios de que Kiss havia assassinado pelo menos 30 mulheres, ainda que nem todos os corpos tivessem sido encontrados. As autoridades acreditavam que o número de vítimas poderia ser ainda maior, já que várias mulheres que lhe escreveram ao longo dos anos não foram localizadas e simplesmente sumiram em pleno ar.

Em 4 de outubro de 1916, a polícia recebeu uma mensagem de um hospital sérvio alegando que um soldado chamado Bela Kiss havia morrido de tifo em 1915. Foi seguido por outra mensagem que dizia que Kiss estava vivo e era um paciente no mesmo hospital. O detetive viajou imediatamente para o local, que estava então em mãos húngaras. "Acho que pegamos seu homem", informou o comandante militar pelo telégrafo. Nagy estava tomado pela excitação. Ele chegou ao hospital ao anoitecer, mas quando foi levado à enfermaria onde o criminoso estava se recuperando, ficou em choque. O homem na cama estava morto - enforcado, mas não era Bela Kiss. De alguma forma, ele foi avisado de que a polícia estava à caminho, matou um enfermeiro e colocou seu cadáver na cama.

As autoridades decidiram que toda a Hungria deveria saber sobre o Monstro de Cinkota e mandou imprimir milhares de cartazes com a foto de Bela Kiss. Dicas choveram de todas as partes do país. Seguiram-se muitos avistamentos em lugares díspares ao redor do mundo. Alguém alegou ter visto o serial killer andando por uma rua de Budapeste em 1919. Cinco anos depois, em 1920, um membro da Legião Estrangeira Francesa foi a uma delegacia de polícia para denunciar um colega legionário que ele acreditava ser Kiss. ​​O homem, que assumiu o nome Hoffman (um pseudônimo que Kiss usava) era famoso por usar o garrote de maneira letal. A polícia foi até a unidade para interrogar Hoffman apenas para descobrir que ele havia desertado dias antes.

Um soldado húngaro alegou que Bela Kiss foi preso na Romênia por enganar mulheres. Outro disse que ele morreu de febre amarela na Turquia. Com a notícia se espalhando, não demorou até Bela Kiss se converter no homem mais procurado da Europa. Nos anos 1920 até meados da década de 1930 ele foi procurado em vários países e considerado o inimigo público número. Cartazes com sua foto e descrição estiveram nas principais delegacias de polícia no continente. Ele foi o primeiro criminoso a ter seu nome incluído na Lista dos mais procurados da Interpol quando esta foi criada em 1923. De fato, uma das justificativas para a criação da Polícia sem Fronteiras na Europa foi capturar criminosos como Bela Kiss.

As informações sobre Kiss chegaram ao Novo Mundo. Um detetive de Nova York chamado Henry Oswald tinha certeza de ter prendido Bela Kiss em 1932. Ele usava outro nome e tinha alterado sua aparência, contudo ele não tinha dúvidas de que se tratava do fugitivo. Oswald tinha o apelido de "Olho de Lince" por sua memória extraordinária para rostos. Após ser liberado, ele acabou sumindo uma vez mais. O relatório fez muitos se convencerem de que Kiss, com quase 70 anos estaria morando em Nova York. Em 1936, novos rumores surgiram de que ele trabalhava como zelador num prédio de apartamentos. A polícia foi ao prédio para entrevistar o suspeito mas ele havia fugido e não deixou nenhuma informação.

Aos poucos ele foi deixando de ser notícia, desaparecendo para sempre e se tornando uma espécie de lenda. Muitos fatos sobre Bela Kiss jamais serão conhecidos, nem mesmo seu destino final. Ele se converteu em um verdadeiro mito, maior que a sua própria vida.

Uma questão importante é se Kiss parou de matar depois de encontrar um novo esconderijo e assumir outra identidade. Embora nenhum crime tenha sido atribuído diretamente a ele fora da Hungria, é pouco provável que um serial killer tenha parado repentinamente de matar. Bela Kiss aprimorou suas técnicas de sedução e assassinato ao longo de anos e aquilo se tornou parte de sua vida. Talvez ele tenha tentado se misturar com a população e ter uma vida normal, esquecendo seu passado, mas quando comparamos seus feitos com o de outros criminosos é difícil acreditar que ele tenha simplesmente desistido de seu modus operandi.

A verdade é que Bela Kiss, o Monstro Assassino e um dos homens mais procurados do mundo conseguiu ludibriar todos os seus perseguidores e jamais foi apanhado.    

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Os Outros Árabes Loucos III - Feiticeiros do Mythos no Oriente Médio

O terceiro e último artigo sobre os outros feiticeiros do Oriente Médio além do celebre Abdul Al-Hazred, o árabe louco original.

UMAR BIN-YAKTHOOB


Umar Ibn-Yakthoob, conhecido em alguns círculos apenas como Velho Yakthoob teve a dúbia honra de ser o primeiro Mestre de Abdul Al-Hazred no início de seu treinamento místico. Pouco se sabe à respeito de sua vida pregressa, mas o autor do Necronomicom creditava a seu mentor parte de seu interesse pela feitiçaria, chegando a referenciá-lo como o professor que instilou em sua alma o desejo pelo aprendizado das artes negras.

Supõe-se que Ibn-Yakthoob nasceu em Memphis no Egito e que pode ter sido um membro da infame Irmandade do Faraó Negro, um culto devotado a Nyarlathotep e mais especificamente ao seu avatar egípcio. Cronistas mencionam o feiticeiro como um favorito de Nitocris de quem ele teria obtido parte de sua instrução arcana. Verdade ou não, Yakthoob tinha grande influência e era tido como um dos feiticeiros mais poderosos do Egito. Em dado momento ele se retirou ou mais provavelmente, foi expulso da Irmandade por perseguir fontes de poder vedadas aos devotos do Faraó Negro. É possível que essa separação não tenha sido amistosa já que Al-Hazred afirmava que seu mentor sofria ameaças constantes de seus antigos companheiros e que temia sofrer atentados contra sua vida.

Ele se exilou no Vale de Hadoth, próximo das Colinas de Neb, possivelmente a leste da cidade de Tel el-Amarna. Com aproximadamente 50 anos ele aceitou instruir dois aprendizes o devasso Ibn-Ghazoul e o o prodigioso iemenita Abdul Al-Hazred, então com apenas 15 anos. Yakthoob ensinou aos seus dois aprendizes a base do estudo arcano, bem como a "invocar entidades malignas". 

O período de estudos de Al-Hazred com Yakthoob durou dois anos e se encerrou abruptamente quando o feiticeiro foi devorado por um demônio que ele próprio invocou. A entidade deveria ter sido controlada graças a uma poção mágica obtida na Babilônia pelos aprendizes. Contudo, Ibn-Ghazoul forneceu a seu mestre um elixir falso uma vez que gastou o dinheiro dado para comprá-lo em um bordel. A morte de seu mestre foi um choque para o jovem Al-Hazred que rompeu sua amizade com Ibn-Ghazoul depois do ocorrido. Ele prometeu que jamais tomaria para si próprio a responsabilidade de instruir discípulos após o trágico destino de seu Yakthoob. Ironicamente, o próprio Hazred teria uma morte que espelhou a de seu mestre, despedaçado por uma entidade invisível em Damasco.

O nome de Yakthoob é mencionado várias vezes nas páginas do Al-Azif, inclusive em um capítulo que narra sua horrível morte. Ele também é citado como um dos mais experientes feiticeiros na arte da invocação de entidades de planos distantes - dimensões. 

XUTHLTAN


Dos Feiticeiros do Oriente Médio que se destacaram em seu envolvimento com o Mythos de Cthulhu, talvez Xuthltan seja o mais abominável. Não se sabe muito sobre seu passado, mas supõe-se que ele tenha nascido em Gandara, no atual oeste do Paquistão, à época parte do vasto Império Persa

Há boatos de que Xuthltan se envolveu com o Culto Bestial de Carniçais que operava no submundo do Império e que gozava de enorme influência entre alguns aristocratas entediados. Ele teria partilhado dos rituais desses seres e se envolvido em atos de necrofilia e canibalismo. O contato íntimo com tais criaturas e suas práticas iniciou em seu corpo a transformação profana que eventualmente faria dele um Carniçal.

Xuthltan foi um hábil feiticeiro, supostamente um dos favoritos do infame Pai dos Carniçais, Naggoob que lhe agraciou com vários presentes e conhecimento. Em dado momento de sua vida, já quase inteiramente transformado, ele empreendeu uma jornada aos recessos de um complexo subterrâneo de onde retornou com um importante artefato, a joia mística conhecida como Fogo de Asshurbanipal. O feiticeiro deveria ter entregue o artefato ao seu benfeitor Naggoob, mas ao invés disso decidiu tomar a pedra para si próprio. 

Ele fugiu para a cidade de Kara-Shehr onde ofereceu suas habilidades ao Rei daquela terra que se impressionou com as suas proezas mágicas. Por muitos anos ele foi um conselheiro místico e vizir na corte usando uma máscara que disfarçava sua terrível aparência. Contudo, o Rei foi consumido pela cobiça que o levou a ordenar a prisão do Feiticeiro afim de se apoderar da magnífica joia. Xuthltan foi torturado na masmorra e acabou revelando a localização do Fogo de Asshurbanipal pouco antes de ser esquartejado.

Diz a lenda que em seu último fôlego o Feiticeiro lançou uma maldição sobre Kara-Shehr, seu povo e seu Rei. A cidade foi varrida pela doença, pela loucura e finalmente pela morte. Os poucos sobreviventes que escaparam dessa calamidade abandonaram a cidade que foi coberta pelas inexoráveis areias do deserto.

O FOGO DE ASSHURBANIPAL


Descrita como uma das mais formidáveis gemas de que se tem notícia, o Fogo de Asshurbanipal tem fascinado e atraído homens para sua perdição há milênios.

A origem da gema é obscurecida por lendas, mas supõe-se que ela teria sido criada por um poderoso feiticeiro da mítica Atlântida que extraiu da Terra dos Sonhos a matéria prima para sua construção. Fisicamente a pedra é uma gema do tamanho de um ovo de galinha com coloração vermelho alaranjada com raias amarelas. Ela parece emanar um brilho próprio que reflete a luminosidade criando um efeito hipnótico similar a chamas dançando. Aqueles que contemplam a joia acabam desenvolvendo um incontrolável desejo de tê-la apenas para si.

A pedra teria sido perdida milênios atrás em um complexo subterrâneo onde ficou sob os cuidados de  uma entidade diabólica devotada a ela. Quando o Feiticeiro Carniçal Xuthltan conseguiu reavê-la precisou enfrentar e derrotar esse guardião, uma notável façanha.

O artefato é obviamente mágico e possui vários poderes sobrenaturais. O maior deles diz respeito ao prolongamento da vida. Ela também poderia ser usada para estabelecer conversa com os Espíritos Flamejantes dos Efreet (possivelmente uma alegoria para as criaturas conhecidas como Vampiros de Fogo). Finalmente, concentrando-se sobre a superfície cristalina da gema um feiticeiro pode observar outros lugares, planos e dimensões, tendo um vislumbre da grandeza do universo.

Após a devastação de Kara-Shehr a pedra se perdeu uma vez mais. Ela supostamente foi enterrada com seu último detentor um Rei maldito cuja cobiça condenou sua nação. Nômades que exploraram a cidade perdida afirmavam que na tumba real havia uma múmia com uma joia de rara beleza. Ela teria sido roubada, mas repetidas vezes retornou a esse local. Nos anos 1930, um explorador americano e seu associado chegaram a relatar a descoberta do Fogo de Asshurbanipal nessa exata câmara funerária. Apesar da tentação de tomar para si o artefato, ele teria resistido e deixado a pedra naquele local.

Seu paradeiro atual é desconhecido.

quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

RPG do Mês - PIRATE BÖRG - Ação, Terror e Pirataria no Caribe Sombrio


Eles vieram pela liberdade do Novo Mundo. Vieram pela riqueza do clima e pela beleza das ilhas. Eles vieram pelo saque dos grandes navios transportando lingotes de prata roubada das Américas e levada para a metrópole espanhola. Às vezes, eles recebiam permissão para atacar e roubar navios. Em outras, eles eram perseguidos pelos mares como criminosos comuns e quando pegos, enforcados até o último homem. Era uma vida de ação, emoção e aventura!

Então veio o Flagelo. 

Os corpos de marinheiros mortos começaram a levantar e andar, fantasmas daqueles expulsos de seus lares ancestrais, esqueletos cobertos de alga e limo marinho, zumbis apodrecidos e monstruosidades nascidas nas profundezas. Esses horrores visitaram as cidades e vilarejos trazendo consigo loucura, morte e deixando um rastro de destruição. Os sobreviventes fortificaram as muralhas, fecharam os portos e municiaram os canhões. A batalha pela sobrevivência contra as hordas de mortos vivos foi feroz.

No fim, restaram os fortes, os bravos e aqueles que estavam dispostos a qualquer coisa para sobreviver.

Em meio a esse pesadelo, a mais estranha descoberta foi feita! As cinzas desses cadáveres inquietos, quando queimadas e moídas criavam uma substância rara. Uma vez consumida, ela podia debilitar e destruir corpo e mente, tornando seu utilizador um escravo do vício, mas havia um outro lado. Ela também permitia alcançar milagres inenarráveis: era possível despertar sentidos adormecidos, obter poderes inimagináveis e até mesmo se tornar consciente do universo. Eles chamaram isso de ASH (cinza), uma droga vendida por uma fortuna e que estabeleceu seu próprio mercado negro, causando discórdia e conflito em toda a região. 

A fonte mais notória de ASH é a Cidade murada de Nassau. Nas ruínas da outrora orgulhosa capital de New Providence, agora existe um gueto de madeira e tendas de lona que abriga os Irmãos da Costa - piratas, rebeldes, ladrões e vagabundos. Eles são aqueles que sobreviveram ao Flagelo e que aprenderam a conviver com ele. Eles não são heróis, são a pior escória que já navegou os sete mares. 

Após o Flagelo o contato com o velho mundo ficou comprometido. Não existe rota segura para a Europa ainda que alguns façam a arriscada travessia. Lord Hamilton, governador da colônia britânica da Jamaica, passou a empregar tripulações piratas para proteger os interesses ingleses. Mas há grande rivalidade e facções cujos agendas colidem de forma violenta. A poderosa Companhia das Índias Ocidentais mantém seus grandes mercantes singrando os mares, escoltados por navios cheios de canhões e mercenários. As Índias Francesas caíram na indolência e na incompetência, dominada por sindicatos criminosos cruéis e cultistas vis. Já o Vice-Reino da Nova Espanha, com capital em La Habana, enriqueceu com o transporte de prata e ash, mas treme sob o olhar atento dos fanáticos da Inquisição. Cada nação dirige seus olhos ávidos e estende sua mão cobiçosa para espremer até a última moeda do novo mundo.

Nas tavernas há boatos sobre cidades perdidas de ouro engolidas pela selva. Lendas sobre mapas que levam até tesouros ocultos e riqueza jamais sonhada. Os ambiciosos arriscam suas vidas em expedições à Península de Yucatán e a Flórida; mergulham nas florestas escuras repletas de doenças, nativos hostis e horrores desconhecidos. Buscam por templos em ruína repletos de jóias que comprariam a alma de mil homens. Por vezes alguém fica rico alimentando o sonho, mas a grande maioria jamais retorna. 

Em todo canto, em cada viela e beco sórdido, cultistas espreitam, adorando seus deuses imundos, os Grandes Antigos, conforme descrito nas páginas terríveis do Necronomicon. Eles saúdam seu tenebroso Profeta - O Deus Afogado. A cada Solstício conduzem festivais e orgias para celebrar o Flagelo ansiando para que "O Fim dos Dias" chegue de uma vez. Quando as bestas das profundezas virão ao mundo dos homens para arrastá-los até o Abismo. E quem é capaz de dizer que esse dia não está cada vez mais próximo? 

Bem-vindo, marujo, ao Caribe Sombrio!

O Caribe Sombrio é o cenário de Pirate Borg. Publicado pela Limithron por intermédio da Free League após uma campanha bem-sucedida no Kickstarter, a ambientação é baseado em Mörk Borg, o RPG sueco estilo Old School Renaissance. Mörk Borg é notório por seu estilo e layout Artpunk, com cores vibrantes e arte bizarra que cria uma identidade própria. 

Pirate Borg tem uma apresentação menos agressiva com cores e layout mais suaves, mas isso não significa que esse seja um livro convencional. Ele é inegavelmente um derivado à altura do selo BÖRG transbordando com violência, bizarrice e muito gore. É algo que você não espera encontrar num cenário limpinho de D&D ou Pathfinder. Aqui tudo é sujo, doentio e brutal.

Como todos os produtos BORG, espere encontrar muitas tabelas aleatórias e rolamentos para definir características dos personagens. Em Pirate Borg, no entanto isso é levado ao extremo! Quase tudo depende do que os dados (e o destino) ditarem. O livro é recheado de tabelas de informações e listas que são úteis para familiarizar o leitor com o clima caótico do jogo.

Um elemento que Pirate Borg compartilha com Mörk Borg é que ambos são RPGs apocalípticos em que o mundo está escorregando na direção de um fim inevitável. A desgraça paira no futuro de todos, não como uma possibilidade, mas como uma certeza. Os habitantes do Caribe Sombrio sabem que tudo está chegando ao fim. Há uma sensação de destruição iminente e desesperança que permeia tudo e todos. O que se pode fazer é viver intensamente antes que tudo acabe. É claro, o Narrador é livre para escolher o que quer usar da ambientação e ignorar o que não agrada, mas a atmosfera é sempre pessimista.

Em Pirate Borg, os Personagens Jogadores são membros de uma tripulação, aventurando-se pelo Caribe Sombrio em busca de fama, riqueza ou algo mais soturno. Cada personagem é definido por uma lista de Habilidades, Classe, equipamento e um delicioso atributo chamado Sorte dos Diabos. As cinco Habilidades são Força, Agilidade, Presença, Resistência e Espírito, cada uma classificada entre "-3" e "+3". Para fazer um rolamento se usa o d20 e se soma o valor da Habilidade, o número alvo geralmente é 12, mas pode variar para mais ou menos. A mecânica é simples, um requisito essencial nesse tipo de narrativa Old School.

Existem seis Classes básicas e mais duas classes opcionais. Cada uma fornece ajustes para Habilidades, Pontos de Vida e Sorte dos Diabos inicial. 

O Bruto é um lutador corpo a corpo furioso que obtém uma arma confiável como uma "Âncora de Bronze" ou "Arpão de Chifre". Ele é mestre nessa arma e causa com ela enorme dano e devastação. O Rapscallion é um patife furtivo e cruel, que utiliza um baralho de cartas de onde extrai suas habilidades. Ele começa com uma única especialidade, como por exemplo "Ladrão" ou "Bastardo Furtivo", mas vai acumulando especializações únicas que o tornam um canalha único. Já o "Bucaneiro" é um atirador de elite e caçador de tesouros, além de um rastreador habilidoso. Suas façanhas estão ligadas ao uso de armas de fogo, explosivos e pólvora negra. O Swashbuckler é um lutador impetuoso, que também pode ser um esgrimista e líder tático. Sua língua ferina corta tanto quanto a lâmina de sua espada e suas provocações causam ferimentos profundos. O Zelota é uma espécie de sacerdote com orações de Cura, Maldição e Proteção Sagrada, que são aprendidas aleatoriamente e podem ser lançadas várias vezes ao dia. Ele é a contraparte do Feiticeiro que extrai poder de espíritos sobrenaturais e fantasmas para conjurar magias como Possessão Espiritual, Clarividência e Ressuscitar os Mortos.

As classes opcionais ficam a critério do mestre aceitar o não. A Alma Assombrada é um fantasma, um condutor para espíritos inquietos ou mesmo um zumbi ou esqueleto que reteve sua consciência apesar da morte. Cada modalidade de tormento fornece um benefício e uma penalidade. Por exemplo, espíritos inquietos se comunicam constantemente com o condutor para conceder um Ritual Arcano aleatório que deve ser conjurado antes do amanhecer do dia seguinte ou o condutor sofre dano. Mas isso não é tudo! Ainda é possível personificar uma criatura incomum do Caribe Sombrio, seja uma sereia, um Tritão, um mutante aquático ou um animal com inteligência humana. Embora sejam classes opcionais, elas estão mais para Raças ou Espécies do que realmente ocupações. 

Há uma questão de desbalanceamento flagrante aqui, mas o jogo não parece se importar muito com isso! Algumas classes são muito mais poderosas que outras, alguns poderes são bem mais úteis e com efeitos muito maiores. Se você não gosta disso, a atitude do jogo é dizer "azar o seu"! Cabe salientar que essa não é uma ambientação para os aficionados do combo, já que muito do que seu personagem será capaz de fazer será proveniente do que o dado decidiu num rolamento aleatório. Então relaxe e deixe as coisas correrem...

Para criar um personagem, um jogador rola o valor de suas Habilidades, adiciona os modificadores de classe, sorteia o equipamento e a Sorte dos Diabos inicial. O equipamento inclui arma, roupa e um chapéu que define o estilo do personagem. Tabelas adicionais fornecem antecedentes, defeitos, marcas físicas, idiossincrasias, incidentes prévios, condições infelizes e coisas importantes que seu personagem possui. O narrador pode exigir rolamentos nestas tabelas ou permitir que o grupo escolha o que achar mais interessante. O ideal, no entanto é que as tabelas sejam usadas para construir o personagem de maneira mais aleatória possível. Isso é um atrativo extra dentro de Pirate Borg, o fato de nunca saber no que vai resultar seus rolamentos.

Mecanicamente Pirate Borg mantém tudo muito simples e fácil, como acontece com a matriz original, o Mörk Borg. O jogo flui sem grandes preocupações sobre tática e estratégia. É claro, as regras contemplam elementos para adequar o tema de pirataria o que funciona muito bem. Os testes são sempre realizados pelo jogador e o mestre raramente irá encostar nos dados, deixando os personagens atacar e se defender conforme a ação vai se desenrolando. A mecânica envolve um rolamento de d20, soma ou subtração de valores e a tentativa de chegar a um número alvo. Tudo é simples e ágil tornando os combates ligeiros e mortais. 

Armaduras ajudam a diminuir o dano e permitem a sobrevivência do personagem atingido ou ferido. No entanto todas armas e proteções são passíveis de desgaste que com o tempo vai torná-las inúteis. É interessante portanto mandar consertar o equipamento entre uma aventura e outra para evitar surpresas desagradáveis. Os sucessos críticos são devastadores permitindo infligir maior dano ou contra-atacar se a defesa é especialmente bem sucedida. Vale lembrar que os Pontos de Vida são poucos e que um ataque bem sucedido pode reduzir os pontos a zero o que causa um problema físico duradouro. Se os pontos caírem a negativo o personagem está morto. 

Para ajudar na sobrevivência do grupo felizmente existe a Sorte dos Diabos. Cada Classe recebe uma quantidade diferente dessa habilidade heroica. Os pontos podem ser gastos para infligir o máximo de dano possível em um ataque bem sucedido, para rolar novamente um teste em que se falhou, diminuir dificuldade, neutralizar um dano crítico sofrido ou mais corriqueiramente diminuir o dano para permitir ao seu pirata sobreviver a um ataque potencialmente mortal. A Sorte dos Diabos é a habilidade que permite aos heróis sobreviver enquanto os coadjuvantes tombam ao seu redor, mas quando ela acabar as coisas podem ficar muito feias.

Os Personagens também podem ter acesso a Rituais Arcanos estranhos e com efeitos inesperados que permitem conjurar animais espectrais, aterrorizar pessoas e fazer com que elas se afoguem com água salgada em seus pulmões. Existem Rituais Arcanos realmente desagradáveis ​​na lista. Por exemplo, a "Marca Negra", literalmente marca o alvo para morrer, enquanto "Liberte o Kraken" invoca uma monstruosidade marinha de proporções colossais. Se um Personagem falha ao realizar um ritual precisará fazer um rolamento numa tabela de revés mágico. Nesse caso, espere um efeito adverso indesejado. Outras modalidades de magia em Pirate Borg incluem tabelas que lidam com alquimia e uma lista de Relíquias Antigas pra lá de esquisitas, como a "Concha do Abismo", que permite ao portador fazer uma pergunta a um cadáver ou "Escamas de Sereia" que, quando engolidas concedem a habilidade de respirar debaixo d'água por algumas horas.

Sendo esse um RPG de pirataria não faltam regras para navios e combate naval. Cada embarcação possui uma identidade propria, com habilidades assim como personagens. Elas tem atributos como Integridade, Casco, Velocidade, Velas, Armas Pequenas, Aríete, Tripulação e Carga. A Integridade são os Pontos de Vida  do navio e da tripulação; Casco, é sua armadura; Velocidade o seu deslocamento em alto mar, Velas a capacidade de responder às condições climáticas, Armas Pequenas, o dano causado por armas leves e mosquetes; Aríete, o dano causado em uma ação de investida; e Tripulação, o número mínimo e máximo de membros que o navio pode transportar. O combate naval é conduzido em rodadas de trinta segundos, e nesse tempo, o capitão move o navio, os Personagens Jogadores realizam ações, e a Tripulação cumpre ordens como "Disparar", "Encher as Velas", "Preparar Abordagem" e assim por diante. É possível melhorar o navio com bônus proveniente de oficiais qualificados contratados para a função: Capitão, Contramestre, Feiticeiro ou Sacerdote de Convés, sao apenas algumas opções. As regras cobrem habilidade da tripulação, a moral, a carga levada, os reparos e, opcionalmente o clima. Ironicamente o que sobra em simplicidade no combate normal, tornasse meio complexo na batalha naval.

Uma seção anterior fornece uma lista de "canções de marinheiro" para elevar o moral da tripulação e ganhar benefícios condizentes. Além de tabelas para destroços e restos, encontros e eventos náuticos, há uma grande variedade de embarcações que vão de simples jangadas, botes e canoas a galeões, navios de guerra e vasos navais de linha. Somado a isso estão imensas fortalezas, navios fantasma, uma embarcação toda coberta de ossos e outra trazida das profundezas para navegar uma vez mais. A lista é bem interessante e abrangente concedendo várias opções ao narrador.

O bestiário é dividido em sessões sobre criaturas e animais típicos do Caribe Escuro. Somado a isso temos os mortos vivos que possuem um papel destacado, como os oponentes principais da ambientação. Temos esqueletos e zumbis de vários tipos específicos, fantasmas, espectros, vampiro e até Liches. Não faltam também animais mortos vivos e abominações. Os Mythos de Cthulhu estao representados na forma dos abissais, dos Shoggoth e outros seres multitentaculares.

De um modo geral, o livro fornece uma boa quantidade e qualidade de bestas e feras para serem incorporadas às aventuras, uma ótima seleção de criaturas, altamente temática e divertida.

Além de tabelas para gerar navios aleatórios, mapas de tesouros, enigmas, ilhas desconhecidas, trabalhos e missões, Pirate Borg inclui um mini cenário sandbox para os Personagens explorarem. Com o sugestivo nome "A Maldição do Pontal do Esqueleto" a história descreve uma típica ilha do Caribe Escuro, seus principais locais e NPCs importantes, ameaças e ganchos. A trama central envolve o desaparecimento da filha do governador local e uma recompensa para quem encontrá-la e devolvê-la em segurança. Mas é claro, as coisas não são tão simples pois há lugares assombrados, lendas, grupos interessados no que acontece na ilha e é claro, a tal Maldição do título. Cada localidade da Ilha, de Coral Town, ao antigo farol, passando por um castelo assombrado e o covil de uma bruxa no pântano são descritos detalhadamente para poderem ser usados. Há ainda masmorras para explorar e lugares para conhecer, o que torna "Pontal do Esqueleto" uma bela campanha introdutória. 

Fisicamente, Pirate Borg é um livro compacto e bastante completo. Ele possui uma miscelânea de tabelas e opções que podem ser deixadas ao alcance dos olhos para referencia. Como acontece em outros títulos Borg, a disposição do texto é o layout é um pouco caótico com fontes variadas e caixas de texto que lembram uma colagem. Pode levar um tempo para se familiarizar com esse estilo, mas não é nada comprometedor. Embora haja um índice, um segundo, dedicado às muitas tabelas do livro, teria sido bastante útil. Eu gostei da arte simples que casa muito bem com a ambientação. 

O livro não oferece um capítulo a respeito de conselhos para o Mestre do Jogo, ou qualquer coisa nesse sentido. Para alguns mestres menos experientes isso poderia ser útil. De toda forma, Pirate Borg é uma ambientação bastante aberta e acessível, cujo gênero será familiar para a maioria que assistiu a franquia de sucesso Piratas do Caribe. Ela não depende de prévio conhecimento historico da Era de Ouro da Pirataria embora isso possa conceder maior profundidade ao jogo. 

Pirate Borg é mais "simpático" do que Mork Borg, no sentido de que há mais espaço para ação, exploração e sucesso nas missões. Ainda que o Apocalipse esteja ali adiante, ele não paira sobre eles feito uma nuvem negra lembrando que tudo é em vão - como ocorre em Mork Borg.

Pirate Borg não é apenas fácil de jogar, mas também fácil de entender, o que o torna uma ótima opção para jogadores iniciantes. Como ambientação ele oferece suporte a tudo o que um mestre precisará para construir uma boa história de Pirataria e Horror num Caribe fantástico.

Não há previsão para seu lançamento em português, mas com o recente sucesso do Financiamento Coletivo de Mork Borg, é possível que vejamos esse livro em breve aportando em terras brasileiras. Vamos torcer, sem dúvida seria um ótimo título.


domingo, 15 de dezembro de 2024

Os Outros Árabes Loucos II - Cultistas e feiticeiros do Mythos no Oriente Médio

Continuando nossa série sobre outros feiticeiros do oriente Médio além de Abdul Al-Hazred.

IBN-GHAZI


Ibn-Ghazi é um nome conhecido nos círculos místicos. Muitos estudiosos das artes arcanas estão familiarizados com sua maior criação, a famosa poeira que permite tornar visível seres que normalmente são imperceptíveis para os nossos sentidos.

O feiticeiro tem a reputação de ter sido um magnífico alquimista, conhecendo segredos ancestrais da arte da transmutação de metais e destilação de poções, concatenações e filtros com propriedades mágicas. Sabe-se que ele foi atraído pelo conhecimento de Damasco onde se reuniam os maiores sábios do mundo Islâmico. É provável, contudo, que Ibn-Ghazi tenha nascido nas terras da Arábia no século sete.

O árabe se notabilizou pelo estudo das ciências físicas e da matemática. Acredita-se que ele seja o autor de numerosos tratados científicos que atestam seu brilhantismo em diversos campos da ciência. Supõe-se que ele tenha descoberto os Mythos de Cthulhu no período em que esteve em Damasco. Lá ele integrou sociedades secretas e possivelmente cultos devotados a Hastur, Cthugha e Shub-Niggurath

A reputação de Ibn-Ghazi é celebrada por Abdul al-Hazred no Al-Azif que possui um capítulo descrevendo a criação e uso da poeira que leva seu nome. Hazred comenta que Ibn-Ghazi teve a motivação de criar a famosa substância após uma experiência aterrorizante com um demônio invisível conjurado das estrelas - possivelmente um Vampiro Estelar.  O aperfeiçoamento da fórmula consumiu quase duas décadas de sua vida mas rendeu uma forma confiável de detectar e evidenciar a presença de certas criaturas.

A morte de Ibn-Ghazi é cercada de mistério e horror. 

No Al-Azif, Al-Hazred afirma que durante um ritual, Ibn-Ghazi obteve uma visão apocalíptica sobre o fim da humanidade. Os deuses negros negaram compreensão sobre o que ele havia contemplado e o feiticeiro os desafiou. Por sua ousadia, ele foi punido com grande severidade pelos seus companheiros de culto. Sua língua foi arrancada, sua boca costurada e finalmente sua cabeça foi cortada. Em outra versão de seu terrível destino, Ibn-Ghazi teria sido lançado nos recessos mais profundos das soturnas Câmaras de Zin onde habitam os nefastos Shoggoth.    

IBN-SCHACABAO


Conhecido como o Herege de Bagdá, Ibn-Shacabao foi um dos teóricos do Mythos mais importantes de sua época. Ele foi superado apenas por Abdul Al-Hazred seu aprendiz, que estudou consigo por um período de pelo menos cinco anos na capital da Mesopotâmia.

Shacabao, chamado também de Shayk Abol (Herdeiro de Abol) e Ibn-Muchacab (Filho daquele que Habita  Vazio) é citado em pelo menos quatro passagens do Al-Azif. Hazred afirma que seu mestre obteve a maior parte de seu conhecimento esotérico através de conversas com Djins que respondiam aos seus apelos e se manifestavam no vazio do deserto. Ele também se comunicava com entidades superiores utilizando um estranho artefato semelhante a uma lâmpada mística. Alguns teóricos acreditam que Ibn-Shacabao teve seu corpo cooptado por um ser da Grande Raça de Yith que o habitou com sua mente por anos. Nesse período ele teria vagado pelas terras do Oriente Médio empreendendo jornadas até a Cidadela sem Nome e ao misterioso Oásis de Kara-Sher. Ele teria realizado um poderoso ritual de invocação no Rub al Khali que lhe permitiu convocar o próprio Yog-Sothoth para uma audiência. Outra façanha notável foi resgatar um artefato da Raça Ancestral escondido em uma ruína da Caldéia.

Os críticos de Ibn-Shacabao o consideravam um "fanfarrão" em face das façanhas que ele próprio propagava no final de sua vida. Biógrafos afirmam que ele tinha mais de 100 anos de idade quando finalmente expirou em sua morada em Bagdá. As últimas palavras que passaram pelos seus lábios foram uma oração blasfema aos Grandes Antigos. Após sua morte o sol teria sido coberto em um súbito eclipse que causou grande consternação e terror na capital. 

Há grande debate à respeito do destino da lendária biblioteca pertencente a Ibn-Shacabao que possuía uma infinidade de tomos extremamente valiosos e raros. A coleção teria sido roubada por um de seus ajudantes logo após sua morte. O aprendiz ignorou as instruções de seu mestre de queimar os documentos e ao invés disso, carregou consigo inúmeros pergaminhos. Estes teriam sido vendidos para poderosos feiticeiros no Oriente Médio. O aprendiz, no entanto, foi vítima de uma terrível maldição que arruinou seu corpo lentamente - supostamente a temida Necrosis, o "Mal dos Feiticeiros". Abdul Al-Hazred teria recuperado alguns destes pergaminhos subtraídos que foram incorporados a sua coleção particular em Damasco.

Para saber mais:

Sobre Necrosis - 

Sobre Abdul Al-Hazred - 


Sobre o Necronomicon

Shoggoth

A Cidade sem Nome

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Os Outros Arabes Loucos - feiticeiros dos Mythos no Oriente Médio

Os conhecedores dos Mythos de Cthulhu sabem muito bem quem é o infame Abdul Al-Hazred

Apesar desse personagem peculiar jamais ter aparecido em pessoa nas histórias de seu criador H.P. Lovecraft, é inquestionável que ele seja considerado um dos mais importantes. O Velho Abdul, que também responde pela alcunha de "O Árabe Louco" não é outro senão o autor do igualmente infame Al-Azif. Por sua vez, esse tratado de magia negra e feitiçaria, considerado como o depositário de todo conhecimento blasfemo dos Mythos ancestrais, entraria para a história através de seu título em grego - Necrononicom.

Do momento em que foi citado pela primeira vez por Lovecraft no conto The Hound em 1922, Al-Hazred e seu livro profano se tornaram nomes associados a toda mitologia lovecraftiana. É tamanha a conexão que Al-Hazred se converteu numa espécie de porta-voz do Mythos, o sujeito que detinha maior saber sobre esse terrível tema, e quem o difundiu através dos séculos vindouros. No cânon de Lovecraft, quando o árabe louco deitou sua pena sobre as páginas criando seu tomo, o mundo jamais seria o mesmo. Quanto mais se tentou deter esse conhecimento, mais ele se espalhou - trazendo com ele loucura.

Entretanto, embora Al-Hazred seja com certeza o mais conhecido Profeta do Mythos ele seguramente não é o único. Ele sequer é o único "árabe louco" associado ao Mythos.

Há outros personagens fascinantes ligados ao estudo soturno dos Deuses e Entidades Ancestrais.  Alguns se notabilizaram pelos feitiços que levam seus nomes ou pelos tomos que escreveram. Alguns são bastante obscuros, reconhecidos por apenas alguns poucos estudiosos do Mythos, que encontraram textos com suas obras e fragmentos de sua pérfida biografia.

Nesta série de artigos seremos apresentados a alguns destes "árabes loucos": pensadores, teóricos e feiticeiros que detinham um saber atroz.

BARZAI


Chamado de "O Grande" pelas suas muitas façanhas místicas, Barzai nasceu em um pequeno vilarejo da Arábia Saudita em meados do século oitavo da era cristã. Membro de uma família de posses, ele era o quarto filho na linha sucessória, o que lhe permitiu devotar seu tempo para atividades acadêmicas que o levaram a estudar na prestigiosa Universidade de Al-Azhar. Há indícios de que Barzai chegou a estudar teologia e se graduar em filosofia islâmica, até que em algum momento sua atenção foi atraída para disciplinas menos ortodoxas.

Supõe-se que em algum momento durante seus estudos, Barzai tomou conhecimento das práticas profanas de feiticeiros que operavam nos bastidores da universidade. Não se sabe quem instruiu Barzai no universo do Mythos, mas sabe-se que sua ascensão foi meteórica, tão notável que aos 40 anos ele havia se tornado uma espécie de mestre entre os seus pares. O título "O Grande" lhe foi atribuído dentro dessa mesma Sociedade Arcana clandestina quando ele se converteu em seu líder.

A exemplo do célebre Al-Hazred (nascido quase um século depois), Barzai não foi um cultista devotado a Entidades ancestrais, embora tivesse interesse nos Deuses Exteriores Yog-Sothoth e Azathoth. Ele leu os Manuscritos Pnakóticos e os Sete Livros Crípticos de Hsan em suas versões originais e escreveu dissertações sobre eles. Barzai via os Mythos como um instrumento para obter poder e influência na sociedade do período e foi um mestre nisso. Um talentoso arcanista, Barzai forjou portentosos feitiços, sendo o mais famoso aquele conhecido como Cimitarra de Barzai que possui um capítulo no próprio Necronomicon. 

Com idade avançada, Barzai se retirou do Mundo Desperto para a Terra dos Sonhos radicando-se na cidade de Ulthar próximo do Rio Skai. Lá ele expandiu seu conhecimento arcano investigando tomos que existiam apenas na dimensão onírica. Seu desejo por saber proibido, no entanto foi a sua perdição.  Barzai empreendeu uma árdua jornada rumo ao topo do Monte Hatheg-Kla, a suposta morada dos deuses e onde Eles se reuniam para executar sua dança. Barzai jamais retornou dessa expedição, mas suas anotações foram reunidas por Atal, seu aprendiz, que nos anos posteriores copiou suas palavras numa coleção de pergaminhos que só existe no lendário Templo dos Antigos Deuses de Ulthar. Muitos feiticeiros tentaram obter acesso a esses documentos, mas até onde se sabe, Atal, já em idade venerável raramente concede aos postulantes o direito de folhear essas páginas.

Barzai é conhecido pelos estudiosos do Mythos graças ao já mencionado feitiço da Cimitarra de Barzai que cria uma espada de bronze usada para inscrever símbolos mágicos e afastar espíritos malignos. Abdul Al-Hazred considerava Barzai um dos maiores feiticeiros do Oriente Médio.     

AKBAR IBN-BADAWI


Pouco se sabe à respeito de Akbar ibn-Badawi, além do que foi reunido pelos biógrafos que preservaram sua obra mais famosa o tratado Kitab Rasul Al-Akbarin (O Livro do Emissário Akbar). Atualmente sabe-se da existência de apenas três destes tomos guardados cuidadosamente em bibliotecas do Mundo Islâmico e tratados como livros de fábulas e gnosticismo medieval. É possível, entretanto que outras cópias constem em coleções particulares ou em prateleiras de instituições sob nomes falsos.

Diferente do que aconteceu com outros acadêmicos islâmicos que se debruçaram sobre o indigesto tema do Mythos, o Rasul Al-Akbarin sofreu menos censura e perseguição que outros livros, como o próprio Al-Azif cujas cópias foram sistematicamente destruídas. É possível que o tratado tenha sobrevivido graças a providenciais censuras realizadas pelos assistentes que compilaram versões mais suavizadas do tomo. Acredita-se na existência de volumes completos que não poupam o leitor de detalhes gravosos sobre os Grandes Antigos, em especial o obscuro Deus Huitloxopetl.

Um dos volumes remanescentes, presente no acervo da Biblioteca na Universidade al-Qarawiyyin em Fez, Marrocos fala brevemente sobre a vida de Ibn-Badawi num trecho ausente em outras edições. O autor teria nascido em algum ponto do Norte da África no século XIII na época sob  controle do Mundo Islâmico. A biografia atesta que ele estudou sob a tutela de renomados filósofos muçulmanos do período. Há insinuações de que ibn-Badawi teria lecionado no Cairo onde teve contato com fragmentos do Al-Azif que sobreviveram aos expurgos teocráticos dos imanes. Ele teria traduzido alguns capítulos e incorporado trechos ao seu livro, sem citar a fonte original.

Numa esfera pessoal, Akbar ibn-Badawi teria sido perseguido por autoridades religiosas e preso no Egito sob a acusação de heresia. Ele foi libertado das masmorras cairitas graças a simpatizantes que o levaram para Damasco onde ele se estabeleceu até seu falecimento. O biógrafo assume que ele tenha se envolvido em uma tentativa de reunir partes perdidas do Al-Azif. Ele teria auxiliado no envio do livro para a Grécia onde o Compêndio Esotérico foi traduzido por Theodorus Philletas para o idioma helênico sob o título de Necronomicon.

Rumores sobre ibn-Badawi mencionam que ele possuía um estranho dom sensitivo que lhe permitia contatar os mortos. De fato, os boatos dão conta de que ele ouvia as palavras dos mortos sendo sussurradas para que ele as copiasse laboriosamente. Um dos fantasmas envolvidos seria o do próprio Abdul Al-Hazred, morto 200 anos antes em Damasco. Não há como atestar se essa informação é verdadeira ou mera invenção.

*     *     *

Mas há outros feiticeiros, bruxos e estudiosos do Mythos como descobriremos nos próximos artigos. 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2024

Louco feito um Chapeleiro - Uma inesperada profissão de altíssimo risco

Quando se pensa em trabalhos perigosos as pessoas quase sempre lembram de soldados que arriscam suas vidas em campos de batalha. Lembram também de médicos e profissionais de saúde que se arriscam para tratar de vítimas de doenças contagiosas e letais. Há ainda os que vivem em alto mar, que exploram as profundezas oceânicas ou que voam em foguetes rumo ao espaço.

Quando se fala em trabalhos perigosos nos dias atuais, dificilmente alguém citaria o Milliner, uma profissão que desapareceu ao longo das últimas décadas. Um Milliner era basicamente alguém que trabalhava no ramo da confecção de chapéus - em bom português, um chapeleiro.

Pode ser uma surpresa para muitas pessoas, entretanto a profissão de chapeleiro era considerada tão perigosa no século XIX que gerou até mesmo um ditado: "mad as a hatter" (algo como "louco feito um chapeleiro"). A expressão era usada para se referia a pessoas que aceitavam fazer trabalhos arriscados por pequenas recompensas. 

Mas por que esse aparentemente tranquilo trabalho era considerado uma profissão de alto risco? 

A resposta carece de certo contexto histórico.

No século XV a sociedade europeia adotou um novo código de vestimenta que incluía uma peça que se tornou comum em todas as camadas sociais. Do mais bem nascido nobre, ao mercador e mais simples aldeão, todos queriam adornar suas cabeças com chapéus. Essa peça de vestimenta se tornou tão difundida na Europa e posteriormente no restante do mundo que era praticamente impossível uma pessoa sair de casa sem cobrir sua cabeça. 

No início os chapéus eram caros e difíceis de serem obtidos, mas dada a demanda do artigo logo começaram a surgir chapéus de todos os preços. Quando as nações europeias se lançaram ao mar e dominaram colônias nas Américas, isso deu ao chapéu um impulso notável. As pessoas desejavam chapéus de pele de animais do novo mundo. Não é exagero dizer que uma indústria inteira nasceu com essa necessidade.

Animais eram abatidos nas Américas e suas peles arrancadas e enviadas para a Europa para serem curtidas, tratadas, preparadas e finalmente moldadas no formato de chapéus. Todo esse processo era realizado pelo Milliner, o chapeleiro.

Ok, mas o que há de tão perigoso nisso?

Bem, com a demanda para uma produção cada vez maior, era importante confeccionar os chapéus o mais rápido possível. Um método rápido que permitia separar o pelo da pele dos animais envolvia mergulhar a matéria prima em uma banheira com produtos químicos. Isso reduzia o tempo consideravelmente, mas o principal ingrediente para essa mistura era o mercúrio.

Acontece que o mercúrio emana um vapor altamente tóxico que se inalado de forma recorrente acaba causando uma doença chamada eretismo.

O eretismo é uma condição grave que nos estagios iniciais causa apatia, irritação, depressão e insegurança. Os efeitos são em sua maioria neurológicos, com a exposição frequente a pessoa exposta começa a apresentar um agravamento e efeitos colaterais cada vez mais complexos.

A exposição aos vapores do mercurio pode provocar tremedeira, tics nervosos, euforia, e finalmente delírios. Os chapeleiros passavam horas expostos a grandes tanques com mercurio, mexiam nas peças ensopadas e manipulavam tudo aquilo sem qualquer proteção. Poucos meses nessa atividade podiam ser o bastante para causar o eretismo.

Não era raro que os Milliner manifestassem sintomas bizarros. Alguns apresentavam tremores que os impediam de trabalhar, tinham tremores faciais que quase os deformavam, ouviam coisas, sentiam gostos e cheiros estranhos e chegavam a experimentar alucinações absolutamente reais. Em Londres no ano de 1786 um famoso Milliner foi preso depois de assassinar a esposa e seus dois filhos afogando-os em uma tina em sua oficina. O incidente causou enorme comoção e consolidou a relação entre os chapeleiros e a loucura.

Muitos chapeleiro começaram a ser vistos como pessoas peculiares e dadas a comportamento excêntrico. Não se  entendia exatamente o que causava aquilo e embora muitos suspeitassem do Vapor de Mercúrio essa era apenas uma suposição que não justificava sua substituição. 

As pessoas definiam o Eretismo como o "Mal dos Chapeleiros" e logo a expressão "louco feito um Chapeleiro" acabou pegando. Estima-se que um em cada quatro Milner acabava desenvolvendo algum grau de eretismo, sendo que muitos terminavam seus dias trancafiados em asilos ou manicômios dado seu estado mental deteriorado. O Eretismo avançado não tinha cura e mesmo se afastando do trabalho insalubre as pessoas continuavam manifestando a doença.

No final do século XIX um estudo realizado pela Academia Médica de Paris determinou a relação direta existente entre os vapores do mercúrio e a misteriosa loucura dos chapeleiros. Um novo composto químico baseado em ácido hidroclorídrico passou a ser empregado em substituição ao mercúrio o que reduziu os riscos da profissão. Curiosamente nos Estados Unidos os profissionais da área substituíram o uso do mercúrio por cloro hidratado no tratamento de peles, somente na década de 1940.

A loucura do Chapeleiro foi imortalizada pelo escritor Lewis Caroll que criou o personagem Chapeleiro Louco para sua obra mais famosa "Alice no País das Maravilhas". Acredita-se que Caroll se inspirou em Theophillus Carter um chapeleiro que vivia perto de sua casa e que era um tipo dado a comportamento peculiar.

É notável como a loucura prolifera nos meios mais insuspeitos, assim como o Caos, ela parece simplesmente surgir onde menos se espera.