terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A Estrada do Inferno - Viajando pela assustadora Rota 666


Dirigir sozinho por uma estrada isolada e remota, através de um deserto, pode ser uma experiência enervante que nos atinge num nível profundo da nossa psique. A interminável e monótona paisagem se estendendo até onde os olhos alcançam instiga uma sensação esmagadora de solidão, como se a civilização não existisse além da estrada. Tudo que se vê são os cactos, areia, rochas e poeira do deserto. Além da sensação de desolação, é impossível afastar um sentimento de ameaça. Afinal, se algo acontecer nesse lugar deserto quem poderá me ajudar? Se o motor tiver uma pane ou se algum maníaco aparecer com a intenção de atacar, não haverá testemunhas. Nesse lugar deserto, nessa imensidão afastada de tudo e de todos, quem ouvirá seus gritos?

O isolamento completo desses lugares, por vezes cria um terror palpável que nos afeta em nossos medos mais íntimos.    

Lugares assim existem no todo mundo. Recantos afastados em que tudo que resta é a sensação incômoda de se estar absolutamente sozinho. Talvez nenhum outro lugar seja mais sinistro e com um ar de perigo pronunciado do que a região conhecida como "quatro cantos" que marca a fronteira entre estados norte-americanos. A reputação desse lugar foi construída a partir de incidentes estranhos, criando uma aura maldita e assombrada que lhe valeu o mórbido apelido de "A Estrada do Diabo".
  
Estendendo-se através do Colorado, Novo México, Utah e Arizona, a estrada batizada originalmente como U.S. Route 666 possui cerca de 320 quilômetros de trilhas acidentadas que cortam o deserto selvagem passando por territórios pertencentes à Nação Navajo e contornando as Montanhas pertencentes a Tribo Ute. Boa parte desse percurso é formado por um deserto agreste, com vastas estâncias áridas com pouco ou nenhum sinal de civilização. A rota é uma das mais conhecidas e notórias estradas da América e tem uma bizarra história que inclui estranheza, azar, acidentes, fantasmas, aparições e vários fenômenos inexplicáveis.    


A desagradável fama da Rota 66 como uma das estradas mais temidas da América começa pela sua infeliz numeração. Os oficiais da Associação Americana de Estradas determinaram seu número na década de 1920, e a estrada se tornou a sexta rota da então Grande Estrada 66, conhecida portanto como 666. Embora a escolha do número tenha sido completamente inocente e não intencional, não demorou para que as pessoas começassem a fazer associações entre a numeração e o infame "Número da Besta" ou "A Marca da Besta". A sinistra conotação foi agravada pelo fato de que estatísticas no período apontavam que essa estrada em particular era palco de alto índice de acidentes, boa parte deles fatais. A quantidade era considerada acima da média, particularmente no trecho atravessando o Novo México. Havia um número tão elevado de mortes na Rota 66 que ela passou a ser reconhecida como uma das mais perigosas estradas dos Estados Unidos. Embora existissem vários fatores que poderiam explicar os acidentes, como as más condições da estrada e o hipnotizante efeito da paisagem monótona nos motoristas, muitos estavam convencidos de que havia uma ligação direta entre os acidentes e o número satânico pelo qual a estrada era conhecida.

Além dos acidentes e mortes, muitos que dirigiam pela rota relatavam histórias estranhas. Descreviam uma pesada sensação de ansiedade, pavor e iminente ameaça. Havia ainda a enorme quantidade de veículos apresentando súbito mau funcionamento na Rota 66, com destaque para superaquecimento, pane no motor, pneus estourando, problemas elétricos e outros defeitos inesperados. Essa aura desagradável que a autoestrada invocava, a grande quantidade de problemas nos veículos e sobretudo os vários acidentes estranhos, alguns tão bizarros que ganharam status de lenda urbana, eram fatores suficientes para dissuadir motoristas de se aventurar pela estrada. Muitos simplesmente preferiam contornar através de caminhos mais longos do que trafegar na "Autoestrada do Diabo" ou "Via Expressa de Satã".               


À primeira vista, nada disso sugere um elemento sobrenatural. Afinal de contas, acidentes acontecem em qualquer estrada e dirigir através de uma região isolada à noite pode certamente causar arrepios, mas as estranhezas da Rota 666 não param por aqui. Além do estranho sentimento de ansiedade e pavor, existe uma imensa coleção de histórias macabras. Talvez algumas das mais intrigantes envolvam os espectros e assombrações que habitam esse trecho. Uma das lendas mais infames diz respeito a aparição de um ameaçador Sedan preto, por vezes referido como o "Sedan do Diabo", que supostamente persegue e aterroriza motoristas. Os relatos sobre o sedan compartilham de características semelhantes e normalmente seguem o mesmo roteiro. Um motorista segue pela autoestrada perto do anoitecer quando é acometido de uma sensação de inexplicável terror. Assim que o sol desaparece no horizonte e a escuridão toma conta do deserto, o motorista percebe atrás de seu veículo um par de faróis se movendo rápida e inexoravelmente cada vez mais perto. Isso tende a acontecer, segundo as testemunhas, logo depois do anoitecer e nas noites de lua cheia. Acelerar para tentar escapar parece não surtir efeito, já que o carro fantasma continua se aproximando não importa a velocidade que se siga.         
O que acontece quando o ameaçador sedan inevitavelmente chega, se difere de história para história. Alguns dizem que o misterioso carro realiza uma ultrapassagem perigosa, tentando tirar o motorista da pista, acelerando em seguida noite adentro até desaparecer na escuridão, por vezes buzinando loucamente. Outros afirmam que o sedan tenta bater e abalroar a traseira do carro perseguido antes de fazer a ultrapassagem. Enquanto algumas testemunhas descrevem manobras arriscadas e tentativas claras do sedan de causar um acidente violento e potencialmente fatal.

Os motoristas que tentaram ver quem está atrás do volante do sedan espectral forneceram uma descrição variada da figura. Alguns sugerindo que se tratava de um homem de olhar maníaco com olhos injetados de loucura e perversão. Outros afirmam ser um sujeito aparentemente comum, mas com um chapéu enterrado na cabeça de onde se projeta um par de chifres diabólicos. Na maioria dos relatos, contudo, os vidros do sedan são escuros e não permitem ver nada além de uma silhueta curvada sobre o volante. Algumas testemunhas afirmam que a placa do automóvel tem os números 666, que ele não apresenta nenhum arranhão mesmo depois de bater e que os faróis brilham com uma luminosidade estranha, quase espectral. Na maioria das versões, o Sedan negro desaparece depois de ultrapassar ou tirar o outro motorista da pista, com sorte, deixando-o no acostamento ofegante e confuso após a experiência. Alguns não tem a mesma sorte e a perseguição termina num acidente fatal, com capotagem e explosão. 


Mas o diabólico Sedan Preto não é a única aparição vagando pela Rota 666.

Outra lenda popular se refere a um caminhão fantasmagórico conduzido por uma entidade maliciosa e agressiva. O tal caminhão segue pela estrada em uma velocidade alucinante, perseguindo ou mesmo batendo em outros veículos buscando tirá-los da estrada e causar acidentes. Valendo-se de seu tamanho e de sua velocidade, o caminhão coloca a vida de outros motoristas em risco, avançando com determinação homicida sobre quem estiver no seu caminho.

A lenda diz que o caminhão é um espectro formado pelo acidente fatal de um motorista que costumava transitar pela Rota 666. O motorista continuou a trafegar mesmo após sua brutal morte em uma das curvas mais acentuadas da estrada e desde então ele guarda um profundo rancor dos vivos. A escritora Linda Dunning, que pesquisou extensivamente a respeito das lendas locais, descreveu um encontro dela e do marido com o caminhão fantasma em seu livro "Espectros: Histórias de Assombrações de Utah". Dunning contou como ela e seu marido, foram perseguidos por um trecho de quase 15 quilômetros por um caminhão à mais de 200 quilômetros por hora. O veículo perseguidor tinha faíscas voando de suas rodas e fumaça preta saindo de seu capô. O marido da escritora, que conduzia o carro, conseguiu escapar encontrando um trecho com acostamento e entrando nele em alta velocidade até frear por completo. O Caminhão então buzinou sonoramente como se estivesse furioso com o fato da perseguição ter se encerrado sem um acidente mais grave.


Motoristas demoníacos compartilham a estrada com uma multidão de criaturas espectrais e seres malignos. Uma das mais famosas figuras que assombram esse trecho do deserto é a aparição de uma jovem garota vestida de branco que aparece andando pelo acostamento sempre à noite. Quando um carro vem em sua direção, ela pede carona, por vezes ficando bem no meio do caminho. Sua aparente inocência e o fato dela estar em um lugar isolado sozinha, por vezes faz com que motoristas parem o veículo para saber se ela precisa de ajuda. Quando o fazem, percebem que a figura é transparente e começa a se desfazer como se de fato não existisse. Alguns acreditam que o fantasma pertence a uma garota que fugiu de casa e que vagou sem destino pelas estradas até ser atropelada ou capturada por um viajante que se aproveitou do fato de não haver testemunhas num raio de muitos quilômetros.

A garota teria sido morta e enterrada em algum ponto do deserto e seus ossos continuariam perdidos num lugar ermo, aguardando serem descobertos. Apenas quando isso acontecer ela poderá descansar. Apesar de não ser uma aparição maligna, a "Garota de Branco" se tornou uma aparição recorrente capaz de gelar o sangue dos que a encontram. A visão dela teria causado pelo menos meia-dúzia de acidentes, ocasionados sobretudo por motoristas que saem da pista para desviar da figura que surge bem diante deles.

Mais perigosos são os grupos de cães selvagens, também chamados de "Cães Infernais", que espreitam pela Rota 666. Esses animais supostamente vagam pela beira das estradas, vivendo em matilhas no deserto. Eles perseguem carros que passam em alta velocidade e se aproximam de quem estaciona ou para o veículo no acostamento, sobretudo aqueles que experimentam defeitos mecânicos. Motoristas que os encontraram descreveram os animais como enormes e extremamente agressivos cães de pelagem preta e olhos injetados de vermelho. Há relatos desses cães atacando motoristas trocando pneus ou caminhando pela estrada em busca de um posto de atendimento. 

Motoristas que abandonaram seus carros no acostamento e conseguiram carona se espantam ao retornar aos seus carros e os descobrir avariados com arranhões na lataria ou pneus mordidos por essas feras. Os Cães do Inferno são famosos por atacar sem aviso e por ter um apavorante rosnado. Acredita-se que a lenda tem um fundo de verdade, baseado na história de que vários cães foram abandonados no deserto no início do século XX e que estes, após gerações, teriam se tornado selvagens e extremamente territoriais.

Da mesma forma, motoristas que atropelam esses enormes vira-latas e param para ver o que aconteceu se descobrem cercados por uma matilha feroz surgida do nada, determinada a matar e vingar a morte de um dos seus. Com dentes afiados e uma determinação assombrosa, esses cães se converteram em uma das lendas mais frequentes entre motoristas. Vários acidentes e desaparecimentos são atribuídos a eles.   

Acrescentando números à estranha coleção de animais fantasmagóricos encontrados na Rota 666, existe uma presença aterrorizante que as tribos nativas da região se referem como "skinwalkers" (troca peles). A Autoestrada 666 corta através de uma Reserva Indígena e de vários trechos sagrados para os nativo-americanos, inclusive duas montanhas conhecidas como Montanhas Ute e um vulcão extinto apelidado de "Navio de Pedra". De acordo com as lendas nativas, os skinwalkers seriam espíritos pertencentes a xamãs malignos com a habilidade de magicamente se transformar em vários animais como coiotes, corvos e lobos. Uma vez assumindo forma animal, estes seres perseguem as pessoas com o intuito de matá-las e delas se alimentar. 

As criaturas seriam responsáveis por vários acidentes fatais na estrada e um número grande de desaparecimentos. Eles parecem seguir veículos com problemas e quando um desses motoristas para na estrada acaba sendo atacado pela fera. Conforme o mito dos Ute, o skinwalker ao devorar uma vítima não se alimenta apenas da carne desta, mas de seu espírito, que uma vez consumido se converte em um escravo espiritual. O xamã maligno pode então se valer desse escravo pela eternidade. Para se proteger da entidade os Ute se valem de objetos encantados, geralmente colares de contas usados em volta do pescoço. Se os restos de uma pessoa morta por um skinwalker receber um colar destes antes de ser enterrado, seu espírito não será escravizado, ou assim diz a lenda.

Outro bizarro fenômeno que surpreende os motoristas envolve um trecho em especial que parece mais longo e cansativo que os demais. Próximo do Arizona, essa extensão, conhecida como "Longa Marcha" compele vários motoristas a parar e esticar as pernas pois o percurso parece extremamente árduo e longo. Algumas dessas pessoas que estacionam no acostamento contam que acabam tomadas por um súbito esgotamento físico e mental que os compele a fechar os olhos e dormir por alguns minutos. Ao despertar esses motoristas experimentam perda de memória, mostrando-se confusos ao ponto de sequer recordar como chegaram ao local e o que estavam fazendo ali em primeiro lugar.

Relatos sobre esse fenômeno envolvem indivíduos afirmando categoricamente ter parado o automóvel em determinado ponto, acordando em outro a muitos quilômetros de distância, sem saber como chegaram lá. Há histórias ainda mais sinistras envolvendo motoristas que desaparecem por dias ou mesmo semanas e que ressurgem repentinamente sem lembrar onde estiveram ou o que aconteceu na sua ausência. Estes parecem sequer se dar conta do tempo que passou.

Estas pessoas que perdem o rastro do tempo ou reaparecem depois de um determinado período talvez sejam os que tiveram mais sorte. A Rota 666 possui uma altíssima taxa de desaparecimentos registrados anualmente, muito acima da média de qualquer outra estrada americana. São pessoas que supostamente atravessavam a estrada sozinhas e que simplesmente desapareceram sem deixar vestígios. Há um elevado número de automóveis abandonados achados em trechos vicinais ou mesmo no meio do deserto sem aparente motivo. Seus condutores apenas sumiram no ar e tudo que restou deles foi um automóvel vazio e perguntas sem resposta. 

Toda essa estranheza e os fenômenos paranormais se tornaram tão associados a rota 666 e ao seu número diabólico, que o governo eventualmente se convenceu a trocar a numeração em virtude de diversos pedidos. É inegável que a estrada sofreu com um estigma que afetou a economia em toda região. Não apenas os negócios foram afetados pela falta de viajantes e indivíduos dispostos a viajar pela estrada maldita , mas o desenvolvimento da área inteira se viu estagnado em face da aversão geral das pessoas. Com o intuito de diminuir a má fama da estrada como um lugar maligno, foi decidido rebatizar o trecho que se estende até o Arizona como U.S. 191 e como Rota 491 nos outros 3 estados a partir de 2003.

A maioria das pessoas não acredita que simplesmente renomear a Rota 666 tenha causado algum efeito benéfico ou uma redução significativa no número de fatalidades e acidente na estrada. Ao remover o infame “número da besta”, esperava-se anular a maldição. Alguns achavam que talvez fosse o número 666 o responsável por atrair forças obscuras para essa rota em especial. Longamente negligenciada e mantida com poucos reparos, a estrada viu poucas melhorias desde a mudança de seu número. Da mesma maneira, campanhas de conscientização e aumento da segurança de trânsito trouxeram poucos resultados para a economia e turismo. 

O início de projetos foi deliberadamente programada para coincidir com a alteração do nome. Na ocasião, até mesmo uma cerimônia de purificação realizada por xamãs nativo-americanos foi realizada com o objetivo de limpar a estrada dos espíritos malignos. Considerando todo o trabalho realizado supostamente deveria ter havido uma redução na frequência de estranheza na região, mas nada parece ter mudado. Histórias macabras, fantasmas, assombrações e desaparecimentos inexplicáveis continuam ocorrendo em alarmante proporção.  


A despeito do que a Rota 666 é chamada agora, ela preserva parte de sua mística e mistério como sempre teve. Seja lá o que acontece nessa estrada, muitos acreditam que algo poderoso, maligno e assustador espreita por esses caminhos e influencia tragédias e acidentes. 

Haveria algo antigo e não humano habitando esse trecho de deserto árido no coração dos Estados Unidos? Ou são apenas histórias sinistras e lendas urbanas fabricadas para nos assustar? Seja lá qual for a resposta para essas perguntas, estradas isoladas e escuras parecem ter um profundo efeito nos enervando e causando preocupação. 

É como se essas estradas penetrassem em nosso subconsciente e agitassem nossos medos primordiais. Todas as histórias bizarras e relatos arrepiantes sobre a lendária Rota 666 certamente tem um lugar de destaque em nossas aflições, vindo à tona sobretudo quando estamos sozinhos atrás do volante em uma noite escura.

Lembre-se disso na próxima vez que entrar no carro e pegar a estrada.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Natal Lovecraftiano - Boas Festas do Tempo de Yule para todos

Olá para todos, Feliz Natal!

Já que estamos em um blog dedicado a H.P. Lovecraft, o famoso Mestre do Horror do século XX e na época adequada, que tal analisar a relação dele com o festivo feriado natalino?

Pesquisei a magnífica biografia de Lovecraft, escrita por S.T. Joshi em busca de informações e encontrei alguns indícios sobre o que o Cavalheiro de Providence, um cínico materialista, pensava a respeito das festas natalinas e o que ele costumava fazer nessa época do ano. Surpreendentemente o ateu convicto tinha uma visão bastante simpática sobre o Natal. 

Vejamos o que temos a respeito.

H.P. Lovecraft cresceu em uma família que compartilhava uma visão bastante tradicional do feriado de Natal e o via como um evento. As correspondências de Lovecraft aos seus muitos companheiros de cartas deixam claro que ele gostava e aprovava essa visão. Ele demonstrava entusiasmo por certos elementos como a arrumação da casa para a data, com jardins e salas decoradas com motivos natalinos. Canções festivas também são algo típico no Natal de Providence e Lovecraft se mostrava simpático aos corais natalinos, muito embora deixasse claro que ele próprio não tinha talento algum para cantar. Lovecraft também elogia as tradicionais árvores de Natal que eram montadas na Mansão do avô e a troca de lembranças meticulosamente embaladas que ficavam aos pés do pinheiro. Foi a Ceia de Natal, no entanto, que mereceu mais destaque nas reminiscências de Lovecraft, conforme ele escreveu a um amigo: "A velha ceia de Natal com pudim de ameixas, tortas e tudo mais era o ponto alto das festividades". 

Seu banquete ideal seria algo como...

"Sopa Encantada e peru assado, apoteosado com molho de castanhas e todas as especiarias raras e ervas saborosas que caravanas de camelos com sinos retinindo trazem secretamente do oriente esquecido através dos desertos. Além do Oxus - couve-flor com molho cremoso de cranberry com a alma de pântanos de Rhode Island - saladas que os imperadores transformaram em realidade - batata-doce com visões de casas de plantação da Virgínia - molho pelo qual Apício se esforçou e Lúculo suspirou em vão - pudim de ameixa como Irving nunca provou em Bracebridge Hall - e para coroar o banquete, uma linda torta de carne moída bastante articulada com as lembranças das lareiras e adegas da Nova Inglaterra. Toda a glória da terra sublimada em uma refeição transcendente - a pessoa divide a vida em períodos de antes e depois de ter consumido - ou mesmo cheirado ou sonhado - tal refeição!

Lovecraft parecia ser bom de garfo, ou ao menos gostava de elogiar as qualidades de uma boa refeição (recorrendo é claro, à literatura). Para quem no fim da vida teve que se contentar com feijão frio enlatado, é uma lástima saber que ele tinha um apurado senso de gourmand.

O autor escreveu um longo poema em linguagem rebuscada chamado "Velho Natal" (Old Christmas) no qual recriava uma reunião de família na Inglaterra dos tempos da Rainha Ana. Ter recebido elogios de um correspondente britânico pela escolha de certos termos antigos, era motivo de orgulho para Lovecraft.

O autor também estava bastante ciente das profundas raízes romanas e pagãs do Natal, como evidencia um artigo sobre astronomia escrito por ele e enviado a um jornal em 1914. No ensaio intitulado "O Céu de Dezembro" ele comenta a respeito do solstício de inverno e que o festival cristão absorveu depois do século IV, "o antigo festival romano da Saturnália, que por sua vez decorria do mais antigo e primitivo festival da Brumalia." Sobre os costumes pagãos, igualmente costurados nas festividades cristãs, ele destaca no mesmo artigo que "muitos dos costumes presentes nas festas de Yule são derivadas de festivais criados pelos druidas e nossos ancestrais Saxões

Para Lovecraft o Natal e a véspera do Ano Novo eram um tempo para se dedicar a escrita, começando sempre com pequenas poesias que "serviam como aquecimento". Lovecraft aproveitava o feriado para redigir algumas cartas de congratulações e cartões natalinos. Aos amigos mais próximos (e aos seus gatos) ele dedicava cartas mais longas com poemas e versos, referindo-se comumente ao Natal pelo nome Yule, um termo pagão. Para os conhecidos, se limitava a desejos básicos de boas festas e de um feliz ano novo.

Em seus últimos anos de vida, Lovecraft escreveu que gostava de ir até a esquina da casa onde vivia para ouvir o coral natalino do Handicraft Club na College Street. Ele também gostava de comprar pessoalmente a decoração para a sala de jantar e surpreender sua tia com um pinheiro de Natal montado de surpresa. Essa tia, uma de suas últimas parentes, também era companhia frequente em jantares na Pensão Paxton que servia um jantar especial no feriado.   

Ironicamente para um autor dedicado ao horror, Lovecraft não era um grande fã da tradição inglesa de contar histórias de fantasmas na véspera de Natal. Ele achava os contos tradicionais de Dickens melosos e sentimentais demais e mesmo as histórias de fantasmas, na sua opinião, eram contaminadas por esse sentimentalismo enjoativo que demandava uma mensagem positiva. Quando criança, ele parecia mais afeito dessa tradição, ouvindo velhas histórias contadas pelo avô ao redor da lareira ou na grande Biblioteca da Mansão em que ele morou quando criança. "Tempos mais alegres e felizes", lembrava nostálgico.

Fui em busca de sua mais famosa história de Natal - que a bem da verdade não é exatamente uma história natalina, mas que se passa justamente nessa época.

"O Festival" (The Festival) foi publicada pela Weird Tales em 1925, e como muitos dos trabalhos de Lovecraft é uma peça de ficção que combina folclore local da Nova Inglaterra, cenas de horror e sua obsessão pessoal com o estranho e macabro.

A história tem início com um homem chegando a Kingsport, uma antiga cidade costeira da velha Massachusetts. É sua primeira visita ao lugar e ele está ansioso pelo que vai encontrar. Este narrador sem nome, relata que anseia se juntar a parentes distantes e participar de um tipo de celebração que a família mantém há séculos. Veja bem, não se trata de uma típica comemoração de Natal, ainda que ocorra no mesmo mês, mas de uma velha tradição da qual ele ouviu falar, mas de que sabe muito pouco - o tal Festival.

Lovecraft era um profundo conhecedor da história colonial da Nova Inglaterra, aquela região no extremo Leste dos Estados Unidos, rica em tradições e superstições. Ele provavelmente sabia sobre o que estava falando quando menciona "a época em que festividades eram proibidas". Puritanos, os austeros colonos que foram pioneiros na ocupação da região não celebravam o Natal. Eles não encontravam evidência do feriado na Bíblia e portanto não o consideravam como uma data festiva. De fato, o Natal só passou a ser celebrado como um feriado no Estado no final do século XIX.

Os antepassados do narrador sem nome, entretanto, não são descendentes dos Puritanos. Ele alega que eles vinham de outras terras e lugares indeterminados. Lovecraft sugere que as cidades costeiras da Nova Inglaterra receberam um fluxo de pessoas vindas de todas as partes e que portanto tinham uma origem mais diversa do que os assentamentos fundados pelos puritanos (ingleses natos). Lugares como a fictícia Kingsport atraíram mercadores e marinheiros de todo canto e com eles vieram estranhos costumes de suas terras de origem.


Sabemos que Lovecraft se inspirou em uma cidade real chamada Marblehead para criar a fictícia Kingsport. O escritor visitou essa pequena cidade litorânea repetidas vezes, atraído pela aura de antiguidade e pela rica história colonial que impregnava o lugar. Ele se encantava pela sua arquitetura, pelas acanhadas lojinhas de antiguidades, pelas praças com árvores centenárias e igrejas com túmulos igualmente seculares.   

Marblehead foi fundada no século XVII por pescadores e era uma cidadezinha isolada, escondida e cheia de pequenos atrativos para Lovecraft então com seus 30 e poucos anos de idade. Ao visitar Marblehead e caminhar pelas ruas tortuosas com calçamento de pedra, ele se perdia em pensamentos e deixava sua mente criativa imaginar o cenário para sua próxima história.  

Tudo parecia muito atraente. E de fato, Marblehead era um lugar bastante atraente, mas como "O Festival" é uma história lovecraftiana e não um filme natalino, nós sabemos que alguma coisa sinistra espreita nos porões escuros ou observa através das janelas parcialmente cerradas. Nosso narrador em sua visita natalina está prestes a encarar algo bem mais assustador que Panetone e arroz com passas. 

Ao visitar Marblehead na véspera do Natal de 1922, Lovecraft concebeu a trama central de "O Festival". Possivelmente ele se colocou no papel do narrador sem nome, incluindo no roteiro situado em Kingsport, prédios e paisagens, cenas e cores reais extraídas de Marblehead.

Chegando na casa de seu parente distante, o narrador descreve o lugar como um salão iluminado por uma enorme lareira. Prateleiras com velhos livros recobrem as paredes. Há até mesmo uma velha mulher manipulando um tear. O que poderia ser mais típico da Nova Inglaterra? Mas há algo macabro no lugar, a face do parente que o recebe amistosamente, a princípio tranquiliza o narrador, mas logo esse alívio dá lugar a uma suspeita já que a expressão do homem não muda e se assemelha a uma máscara de cera. Suas mãos cobertas por luvas são flácidas. E um dos livros na estante não é outro senão o proibido Necronomicon, o que é um péssimo sinal!

O narrador não tem tempo de analisar sua situação já que logo em seguida ele é escoltado para o lado de fora da casa pelos seus anfitriões. O estranho Festival que ele veio conhecer, está se iniciando e ele é convidado, quase coagido, a tomar parte dele. No caminho pelas vielas escuras ele cruza com pessoas estranhas, todas se dirigindo para a mesma celebração, como em uma macabra Missa de Natal que ocorre no subterrâneo de uma igreja abandonada. O lugar é iluminado por um pilar de chamas esverdeadas que não lança sombra e guarnecido por um rio negro e oleoso que se forma no fundo dessa caverna natural.


Lovecraft alude para a estranheza dos costumes locais aos olhos de um forasteiro. A forma como os costumes de um grupo podem ser peculiares, ou mesmo bizarros, para alguém que não está familiarizado com eles. O ritual descrito em O Festival envolve a invocação de horrendas criaturas aladas, monstros que servem como montaria para transportar os cultistas rumo a cavernas ainda mais profundas. Um dos anfitriões do narrador tenta convencê-lo a acompanhá-los mostrando um velho relógio e um anel que teria pertencido ao tatatataravô do narrador, que havia morrido em 1698 durante a caça às bruxas. O gesto indica que o narrador está sendo convidado por afinidade de sangue a participar da celebração na qual sua família está envolvida desde tempos imemoriais. 

Está em seu sangue tomar parte desse festival blasfema. É sua herança e seu direito! Por um instante parece que o narrador vai abraçar esse caminho, mas então a face do velho parente se revela acidentalmente - uma máscara - que escondia algo tão abominável que o narrador mergulha no rio para escapar ao horror.  

Ele acorda em um hospital, içado das águas e diagnosticado com um tipo de psicose nervosa. No final, ele tem a chance de ler um trecho do Necronomicom que leva a acreditar que tudo não teria passado de um delírio ou alucinação. O livro porém deixa claro que a alma de feiticeiros e bruxas podem criar novos corpos para habitar, usando como matéria prima para esse fim, os vermes que os devoraram no túmulo.

A conclusão bizarra e incerta fecha uma história que injustamente raramente é listada entre os melhores trabalhos de Lovecraft. Mas não obstante, O Festival, oferece uma espécie de história natalina filtrada através das obsessões macabras do mestre do horror cósmico. Nela temos elementos tipicamente natalinos: uma data festiva muito aguardada, uma celebração de cunho religioso, um ritual ancestral e um chamamento familiar para tomar parte e participar dos eventos. Tudo se encaixa na temática do Natal.

Não há nenhuma pista clara indicando que Lovecraft escreveu O Festival como uma visão distorcido da celebração da natividade cristã, mas conhecendo o provocador que ele era, a possibilidade existe.

Seja como for, "O Festival" merece uma nova leitura, quem sabe até um artigo examinando essa pequena joia mais à fundo. Por enquanto, ficamos por aqui.


ADENDO: Comecei esse artigo desejando a todos os leitores um "Feliz Natal", mas me dei conta agora que na tradição lovecraftiana me equivoquei na saudação.

Mas ainda há tempo de fazer a correção.

Feliz Tempo de Yule, sejam vocês investigadores ou cultistas.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Crias Estelares - Anatomia dos Xothianos o povo de Cthulhu


Quando a pavorosa entidade conhecida como Grande Cthulhu cruzou incríveis distâncias e chegou à Terra, ele veio acompanhado de quatro dos seus filhos mais importantes (Cthylla, Ghatanathoa, Ythogtha e Zoth-Ommog) e por uma horda de criaturas conhecidas como Crias Estelares (Star Spawns).

As Crias Estelares são súditos fiéis do Grande Cthulhu, devotados de corpo e alma a servir e proteger seu mestre. Muito se discute a respeito da natureza destes seres titânicos, qual sua relação com Cthulhu e por qual razão eles o acompanharam em sua migração cósmica. Acredita-se que eles possam ser os habitantes originais do sistema binário de Xoth, visto que são conhecidos comumente como Xothianos (pronuncia-se Zofianos), enquanto Cthulhu seria seu Deus máximo ou então Sumo-Sacerdote. Em outra suposição, eles seriam todos seus filhos, gerados à sua imagem e semelhança, devendo a ele obediência incondicional.

Seja como for, as Crias sempre acompanham o Grande Cthulhu acatando suas ordens e satisfazendo seus desejos. Quando seu Mestre se retirou para o Mausoléu submarino de R'lyeh, eles o seguiram retirando-se para as câmaras inundadas afim de hibernar. Seus sonhos reverberam das profundezas, gerando emanações psíquicas que chegam aos homens e moldam seus sonhos. Quando Cthulhu despertar, eles também irão acordar para submeter o planeta ao seu novo Senhor.


À despeito de muitos deles terem acompanhado Cthulhu no seu sono milenar, outros tantos se mantiveram despertos, habitando as trincheiras e abismos marítimos. Eles se movem sob as ondas, nas profundezas insondáveis, onde pressão estrondosa e escuridão opressiva são insuportáveis para nossa frágil constituição. Alguns deles habitam a periferia das cidades erguidas pelos Abissais, sendo venerados por estes e servidos por outros horrores aquáticos. Cavernas e grotões são o seu refúgio mais comum, ainda que eles também povoem arrecifes, paredes de coral e fendas grandes o bastante para acomodar seu tamanho colossal. 

Entidades similares às Crias Estelares ainda habitam as estrelas; seu lar original. Tais seres infestam o Lago de Hali em um planeta próximo da estrela de Aldebaran, em Touro. Outras esferas planetárias e luas também podem ser a morada de Crias Estelares. Civilizações não-humanas e povos alienígenas extintos ergueram no passado templos em homenagem a estes seres. Se um dia, a humanidade chegar às estrelas, estes monumentos serão encontrados, instalando terror e medo no coração dos pioneiros espaciais. Apesar da distância imensurável, estas Crias se mantém fiéis ao Grande Cthulhu. Supõe-se que estes serão convocados da imensidão cósmica para reunir-se ao seu mestre quando as estrelas estiverem certas.

As Crias um dia formaram as legiões de choque do Grande Cthulhu e foram usadas em suas conquistas planetárias. Milhões de anos atrás, quando desceram dos céus e se instalaram no continente primevo de R'Lyeh, as Crias abriram o caminho para a invasão. Na época, o planeta pertencia quase que em sua totalidade à Raça Ancestral, que havia estabelecido cidades tanto nos mares quanto nas massas continentais então existentes. O conflito entre estes dois poderes foi inevitável e fez tremer o então jovem planeta. 


As Crias Estelares se lançaram em seu plano de conquista, arquitetado pelo Grande Cthulhu e lançado à partir de R'lyeh. Várias cidades da Raça Ancestral foram devastadas por esses titãs alados que venciam as muralhas e reduziam as edificações de pedra à escombros. Para terror da Raça Ancestral, os Xothianos além da destruição desenfreada desenvolveram um gosto particular pela carne da Raça Ancestral, devorando-os aos montes. A devastação de suas cidades, arranhou o orgulho da Raça Ancestral que revidou à altura. Recorrendo à sua tecnologia avançada, empregaram artefatos nucleares e de perturbação molecular para se defender, contudo sua maior arma decorria de seu conhecimento genético: Os Shoggoth. Servos protoplasmáticos criados em laboratórios com a cepa de Ubbo-Sathla, os Shoggoth se tornaram sua arma principal. No início, eles não faziam frente às Crias Estelares que em matéria de força bruta e violência pareciam inigualáveis. Entretanto, aos poucos, os Shoggoth projetados para a Guerra (cada vez maiores e mais poderosos) foram descobrindo seus trunfos. O surgimento de cada vez mais dessas armas biológicas equilibrou a batalha que até então pendia para as forças do Grande Cthulhu. 

Sem um vencedor, a contenda parecia fadada a um incômodo impasse que só foi decidido pela conjunção estelar que obrigou o Senhor de R'Lyeh a hibernar nas profundezas. Uma vez que muitos Xothianos o seguiram, isso pôs termo às hostilidades, forçando um armistício.

Com efeito, a maioria das Crias Estelares abandonaram as hostilidades, simplesmente aguardando o dia em que as estrelas devidamente alinhadas apontarem para o momento propício de seu retorno.


Segundo alguns raros tomos de conhecimento arcano, há cinco Crias Estelares que se sobressaem diante de todas as outras. O decadente Necronomicon os chama de Observadores e afirma que sua função envolve antecipar os sinais que irão marcar o retorno de R'lyeh. Uma vez que os presságios forem reconhecidos, eles próprios irão despertar e juntos conduzir um ritual para romper o sono letárgico do Grande Cthulhu.

Essas cinco poderosas Crias Estelares se encontram adormecidas em localidades chave ao redor do globo. O tomo afirma que um deles dorme abaixo das Montanhas de Bayan Kara Shan na China central, outro sob as areias escaldantes que cobriram a Cidade sem Nome na Arábia, um abaixo das calotas de gelo da Groenlândia, o quarto em uma imensa caverna natural na Costa da Nova Inglaterra e o último na bacia do Rio Amazonas no Brasil. Supostamente a existência de tais seres jamais foi percebida visto que eles se encontram muitos quilômetros abaixo da superfície, enterrados ou submersos em localidades isoladas, em profundezas insondáveis.

Ainda segundo o texto, os Titãs adormecidos possuem capacidades psíquicas semelhantes ao Senhor de R'lyeh - ou seja, eles sonham. E seus sonhos podem ser captados pela humanidade e percebidos como um chamamento. Aqueles que ouvem esse chamado acabam de alguma forma cooptados para as fileiras dos Cultos que veneram o Grande Cthulhu. Verdade ou Mito, sabe-se que facções do terrível Culto de Cthulhu operam justamente nesses lugares. 


Na China o Culto do Adormecido existe há milênios, nascido em monastérios que pontuam as montanhas na fronteira com o Nepal. A Cidade sem Nome foi por séculos um destino buscado pelos iniciados nos segredos do Mythos, visitado inclusive pelo célebre árabe louco, Abdul al-Hazred que lá encontrou os resquícios de um antigo Culto devotado a Cthulhu. Embora na Groenlândia as populações humanas sejam raras, antropólogos se surpreenderam com a existência de grupos reunidos ao redor de bizarras divindades. Próximo de Boston, na decrépita vila pesqueira de Innsmouth, a Ordem de Dagon formada por híbridos com sangue abissal a correr em suas veias, conduzia rituais em homenagem a Cthulhu. Finalmente, tribos como os Okitos, habitantes da selva amazônica, próximo da fronteira entre Brasil e Venezuela praticam rituais sangrentos em honra de um Deus blasfemo que dorme aos seus pés.

Todos esses Cultos possuem princípios e ritos semelhantes que envolvem a adoração a entidades enterradas ou submersas que por sua vez estão fadadas a um dia acordar um Deus ainda mais poderoso.

A maioria das Crias Estelares permanecem em um estado de letargia perene, que pode ser confundido com a morte. Nos covis onde jazem imóveis, as eras transcorrem sem os afetar, visto que são vitualmente imortais pela passagem do tempo. Tampouco eles precisam comer ou respirar, pois as necessidades biológicas de outros seres, para eles, não possuem consequência. Os milênios vem e vão, mas durante todo esse tempo, as Cria Estelares sequer flexionam seus músculos ou permitem um bater de coração. Suas mentes, outrossim, continuam afiadas, vivas, sondando os arredores.   

 
Contudo, isso não significa que sob certas circunstâncias, as Crias Estelares não possam voltar à viver, caminhar e nadar como um dia fizeram antes do surgimento do homem. Afortunadamente, tal ocorrência é muito rara, ainda que os registros de Cultos contenham testemunhos de tais eventos e estes sejam muitíssimo aguardados pelos cultistas.

Há relatos ligando o despertar de Crias Estelares a incidentes naturais e intempéries como erupções, terremotos e maremotos. 

Semanas após o devastador terremoto que atingiu Lisboa em 1755, marinheiros teriam avistado uma criatura de dimensões absurdas ("como uma montanha andante") em algo mar. A criatura, semelhante, mas não inteiramente igual a um enorme polvo contornou a Costa de |Caparica como se estivesse observando a destruição deixada pelo terrível cisma que atingiu 9,1 na escala Richter. Na época, uma epidemia de pesadelos e paranoia varreu a capital portuguesa atingindo os já traumatizados sobreviventes da tragédia. 

Outro incidente marcante teria ocorrido em 1816, dias antes da acachapante erupção do Vulcão Tambora que decretou a destruição do povo Sumbawa que vivia naquela ilha. Rumores de indivíduos que estiveram na ilha semanas antes afirmavam que vários locais experimentaram o que se poderia compreender como sonhos premonitório sobre a tragédia que se aproximava. Mas além da eclosão do Tambora, tinham visões de entidades colossais que viviam sob a ilha e que eram venerada pelos seus antepassados em tempos remotos. Após a explosão que decretou a extinção do modo de vida dos Sumbawa, bem como de sua cidade e das 20 mil pessoas que lá viviam, houve rumores a respeito de uma criatura gigantesca avistada por embarcações passando perto da área atingida pela conflagração. "Enorme", "impossível", "monstruoso", foram algumas palavras usadas por quem viu a coisa para descreve-la.


Da mesma maneira, mais recentemente em 2010, após as erupções vulcânicas ocorridas na Islândia, uma criatura de dimensões absurdas teria sido avistada na costa de Eyjafjallajökull. A coisa, um "monstro marinho com cabeça de cafalópode" foi avistado pela tripulação do Kyllynis um navio de  bandeira cipriota que navegava pelo Atlântico Norte.

Alguns acreditam que o curioso incidente conhecido como "Bloop", um ruído submarino estarrecedor e sem explicação aparente, emanado nas profundezas oceânicas na Costa da Antártida possa ter sido motivado por uma ou mais Crias Estelares.

Qual a ligação, seja ela direta ou circunstancial, das Crias Estelares com esses eventos não se sabe. O que se cogita é que eles possam ser despertados por esses incidentes perturbadores ou, como sugerem outros, podem tê-los causado de alguma forma. 

Buscando em antigas lendas e mitos, não é difícil achar menções a monstros e criaturas marinhas responsáveis por enormes tragédias. Os Dragões do passado podem ser na verdade Crias Estelares e contribuíram para o surgimento destes mitos ancestrais.

Os Xothianos podem ser definidos por uma palavra: "colossais". Um típico indivíduo da espécie mede algo em torno de 20 a 25 metros de altura e centenas de toneladas, contudo alguns podem ser consideravelmente maiores, chegando aos 30 ou mais metros de altura, o equivalente a um prédio de 15 andares. Não se sabe no entanto de nenhum deles atingindo a estatura titânica do Grande Cthulhu que por sua registra mais de 40 metros.


O corpo das Crias Estelares consiste de uma substância maleável, tenra e untuosa absolutamente alienígena. Sua carne verde acinzentada é normalmente esponjosa e flácida, mas ela pode ser reforçada rapidamente assumindo uma consistência rija através do ajuntamento de células formando placas de tecido conjuntivo. Sua epiderme consiste de fibras de colágeno esticadas sobre os músculos. O sangue desses seres corre em vasos internos bombeados por um sistema de três corações branquiais. Eles possuem ainda um sistema respiratório pulmonar que lhes permite respirar tanto na água quanto na superfície. Seu sangue possui altíssima concentração de cobre que o torna viscoso e com uma cor escura oleosa.

Os Xothianos são humanoides, com pares de membros superiores (braços) e inferiores (pernas) unidos a um tronco massivo. Os braços tendem a ser longos e delgados, terminando em um conjunto de 4 dedos compridos dotados de garras afiadas ainda que flácidas e recurvas. Já as pernas são mais curtas, com pés achatados e dedos de formato quadrado também dotados de unhas. A criatura caminha ereta, mas parece mais à vontade na água, nadando com enorme desenvoltura. A maioria dos espécimes possuem um par de asas membranosas presas às costas que embora sejam descritas por muitos como "asas de morcego" são mais próximas de barbatanas adaptadas como as dos peixes voadores. Estas cumprem um papel importante no deslocamento submarino garantindo a eles enorme agilidade. As asas podem ser usadas para alçar voo na superfície e impulsionar o Xothiano pelo ar ainda que de forma desengonçada. Há conjecturas que as asas das Crias Estelares funcionam melhor no espaço, mas não há como julgar isso. As asas também auxiliam na movimentação da criatura, aumentando seu centro de equilíbrio. Em posição relaxada, as asas se dobram sobre as costas e permanecem fechadas até a criatura se mover, seja andando, nadando ou voando. As Crias de Cthulhu se movem de forma bastante rápida a despeito de seu imenso corpanzil e qualquer pessoa supondo que eles são lentos ficará surpreso com sua velocidade.

Não se sabe ao certo se Xothianos possuem uma divisão bem definida de gêneros masculino/feminino. É possível, no entanto, que eles sejam naturalmente hermafroditas, ainda que saibamos pouquíssimos detalhes sobre seu ciclo reprodutivo se é que ele funciona de uma maneira similar a algo em nosso mundo. De qualquer maneira se existem diferenças biológicas entre eles, estas não são imperceptíveis. Também não há registros de filhotes ou jovens da espécie.

Xothianos são combatentes formidáveis aliando força bruta com capacidade destrutiva condizente com seu tamanho e massa. Durante a Guerra empreendida contra a Raça Ancestral, eles foram capazes de devastar cidades inteiras reduzindo prédios e construções de rocha à ruínas. Sua notável resistência física também lhes permite resistir a ataques diretos e danos maciços como os que o armamento da Raça Ancestral podia causar. De fato, a arma mais confiável contra as Crias Estelares foram os Shoggoth que assim como eles, se valiam de força bruta. Comparativamente, mesmo hoje existem poucas armas criadas pelo homem, além de explosivos de alto impacto e artefatos nucleares, que podem ferir estes seres. Para tornar tudo ainda mais complicado, a estranha matéria que constitui esses seres possui propriedades protoplásmicas regenerativas. Em poucos minutos um Xothiano levado à beira da destruição pode sanar inteiramente ferimentos sofridos. À despeito disso, há rumores que uma Cria Estelar teria sido destruída por torpedos na Costa da Nova Inglaterra por ocasião da intervenção militar na cidade de Innsmouth. Feitiços e armas mágicas também são bastante eficientes contra os Xothianos.


Talvez a peculiaridade mais conhecida acerca das Crias Estelares diga respeito a sua bizarra cabeça. Os Xothianos possuem uma massa desproporcionalmente grande e bulbosa no topo de seu tronco. Essa cabeça é dotada de centenas de filamentos de diferentes tamanhos que pendem de sua "face", escorrendo pelo peito em enorme quantidade. Essa infinidade de tentáculos se agita e contorce como se tivesse vida própria. Os tentáculos agem como apêndices prenseis, especializados em agarrar e capturar o que estiver ao seu alcance. Cada um deles é forte como um cabo de aço, capaz de dobrar vigas e esmagar ossos com enorme torque. Apesar disso, alguns são capazes de manipulação táctil sensível e de realizar tarefas delicadas com enorme perícia.

Outra de suas funções é levar alimentos até a enorme cratera em forma de boca. Esta fica oculta sob a massa filamentosa, normalmente imperceptível, mas pode se revelar caso a Cria Estelar queira morder alguma presa. O aparato é dotado de glândulas salivares nas laterais, tentáculos bucais que auxiliam a empurrar a comida e uma faringe tubular através da qual os alimentos escorregam auxiliados pela saliva que corre em profusão. O tubo é repleto de dentes ocos afiados que retalham os alimentos enquanto estes descem pela sua garganta. Outra estrutura anatômica se assemelha a radula dos moluscos e gastrópodes terrestres, um longo órgão musculoso similar a uma língua pontuda com cerdas afiadas. A radula também empurra os alimentos goela abaixo para que os potentes ácidos estomacais façam o seu trabalho de decomposição. Xothianos são carnívoros e se alimentam de animais marinhos, engolidos por inteiro. Animais de maior porte, como baleias, lulas e tubarões podem, no entanto, ser mutilados por suas potentes mordidas.

Os olhos dos Xothianos são comparativamente grandes, arredondado e de coloração variando do verde musgo, ao amarelo baço e em alguns espécimes vermelho. Ele tende a emitir um brilho característico na escuridão. A visão dessas criaturas é bastante aguçada, perfeitamente adaptada à pouca luz das trincheiras oceânicas e do espaço profundo. As Crias estelares não possuem nariz ou orelhas, tendo somente fossas nasais e auriculares que lhe permitem cheirar e ouvir. Esses sentidos são bastante rudimentares, mas ele parece substituí-los com outras funções sensoriais exclusivas, para nós inconcebíveis.

Um adendo importante para compreender esses seres. Muitos que os observam os tratam como entidades embrutecidas, criaturas de mente simplória como o mítico Polifemo, dadas a arroubos de violência desenfreada. Nada poderia ser mais distante da realidade. Xothianos são criaturas dotadas de uma inteligência refinada, com capacidade cognitiva que lhes permite racionalizar e planejar. Eles não são monstros estúpidos, mas seres com uma mente analítica e memória de longa duração. Seus cérebros podem reconhecer objetos, associar indivíduos e aprender através da observação.

Os Xothianos são indubitavelmente uma das formas de vida mais perigosas existentes no planeta. É uma benção que a maioria deles esteja adormecida ou que mesmo ativos permaneçam na maior parte do tempo inertes à imagem de seu amo e senhor. No entanto, quando as Crias Estelares sentirem que o momento do Alinhamento Cósmico se aproxima, elas o reconhecerão de imediato. Tais Leviatãs se erguerão das suas sepulturas submarinas e se dirigirão objetivamente para a terra. 

E nesse dia, a humanidade conhecerá o Horror, pois o Grande Cthulhu estará próximo de despertar.



domingo, 20 de dezembro de 2020

Os Cabelos da Medusa - O Terror das lendárias Gorgonas


Na Mitologia Grega não faltam seres estranhos e apavorantes. Em meio a tantos deuses, semideuses, monstros e criaturas fantásticas, talvez caiba às Gorgonas o papel de serem os seres mais aterrorizante e também fascinantes.

As Gorgonas pertencem a uma raça de criaturas que surgiu nas lendas e no folclore da Grécia Antiga. A própria palavra deriva do termo "Gorgos", significando "terrível, "horrendo", "severo". Não por acaso é uma palavra que serve bem para definir a natureza macabra destas criaturas.

Os gregos respeitavam as lendas sobre as Gorgonas de tal forma que preferiam não mencionar o nome delas, acreditando que tal coisa poderia ser prejudicial ou capaz de atrair má sorte ou tragédias. Por outro lado, alguns acreditavam que colocar a imagem de uma gorgona na fachada de um prédio ou sobre um portão protegia aquela localidade contra invasores e contra ladrões. O princípio simples é que o lugar seria observado pelas criaturas e portanto estaria sob a proteção delas. Construções com a efígie dessas entidades temidas podiam ser encontradas em toda Grécia e nas nações influenciadas por essa civilização.

As primeiras e sem dúvida mais famosas Gorgonas formavam um trio de irmãs nascidas de pais divinos, os antigos Deuses Fórcis e Ceto que comandavam os mares e as ondas. Segundo as lendas, as três teriam nascido com características monstruosas. O folclore grego varia bastante ao conceituar os horrores das três mulheres reputando a elas uma aparência hedionda que incluía presas afiadas, pele escamosa, asas de morcego, olhos vermelhos e garras afiadas que as tornavam verdadeiros monstros grotescos.


As irmãs eram chamadas Euríale ("a que está ao largo") que seria a mais velha e violenta das três, Esteno ("a que oprime"), a irmã do meio, mais forte e poderosa e Medusa ("a Guardiã"), a irmã mais jovem e a única dentre elas com características dos mortais. 

Há no entanto, diferentes versões quanto a origem de suas deformidades e inerente maldade. Segundo uma lenda, as irmãs teriam sido amaldiçoadas por Atena que se ressentia que elas tivessem originalmente nascido tão belas quanto ela própria. Ofendida pela rivalidade e comparações, Atena teria transformado cada uma delas numa abominação indescritível. As lendas enumeram o horror de sua forma mencionando presas de javali, pele escamosa e mãos feitas de bronze. As três teriam então sido obrigadas a viver em uma ilha afastada chamada Ciméria (A Ilha da Noite Eterna) onde ficariam distantes dos homens que se desesperavam ao vê-las.

Em outra versão, as três eram princesas que serviam no Templo da Deusa Atena como suas sacerdotisas. De acordo com essa história, certa vez Poseidon visitou o Templo tencionando se encontrar com Atena, mas ao se deparar com Medusa, a mais jovem das princesas foi arrebatado pela sua beleza. Medusa cedeu ao Deus e aceitou fazer sexo com ele em um Jardim Florido considerado sagrado no templo, cometendo assim uma tripla transgressão: primeiro por ter rompido sua promessa de castidade, segundo por ter se deitado com um Deus inimigo de sua senhora e finalmente por ter profanado o Jardim. Como punição, Atena removeu a divindade de Medusa e a transformou em uma aberração com cabelos de serpente. Ela também decidiu punir as irmãs de Medusa, transformando-as em monstros uma vez que sabiam do encontro e tentaram ocultá-lo. 


Finalmente, há uma terceira versão ainda mais cruel na qual o caráter volúvel dos Deuses fica evidenciado. Neste, Medusa teria se negado a ceder às investidas sexuais de Poseidon que irritado a arrastou para o Templo e lá à estuprou diante de uma das Estátuas de Atena. Furiosa com a profanação de seu templo, a Deusa culpou Medusa ao invés de apontar Poseidon como responsável. Ela então a baniu, junto com as irmãs, mas não sem antes as transformar em monstros medonhos.

De uma forma ou de outra, todas as lendas concordam que as Gorgonas eram ou se tornaram horrendas e por conseguinte tão malignas e cruéis quanto sua aparência sugeria. No pensamento grego clássico beleza e virtude estão tão alinhados quanto feiura e vícios. O amargor das irmãs as contaminava de tal forma que sua aparência grotesca era capaz de afetar fisicamente as pessoas. Homens e mulheres que as viam envelheciam, perdiam o viço da juventude, a potência sexual e até os cabelos. O efeito mais conhecido, no entanto, veio através da descrição de Ovídio que reputou à Medusa, a outrora mais bela das irmãs, o poder de transformar, aqueles que vislumbravam sua face, em estátuas de pedra.

Apesar de ser a mais famosa das irmãs, Medusa nem de longe era a mais terrível já que segundo o mito grego, Esteno havia matado mais do que ela, enquanto Euríale havia feito mais vítimas que as duas juntas. As lendas afirmam que as Gorgonas mais velhas eram cruéis e se deliciavam com massacres e chacinas, promovendo verdadeiras orgias de violência. As duas dançavam entre os cadáveres e se banhavam no sangue quente, pois acreditavam que talvez assim pudessem voltar a ser belas. A loucura que as dominava era incontrolável e conforme o mito, elas também se entregavam ao canibalismo. O covil das duas, geralmente nas profundezas de cavernas, era repleto de ossos e restos humanos semidevorados. Detinham algum poder sobre os mares bravios. Como filhas de deuses oceânicos, faziam com que navios fossem lançados contra rochas para que seus sobreviventes sofressem em suas garras.


Já Medusa havia escolhido habitar uma antiga cidadela abandonada. Em algumas versões, esse lugar fica em numa ilha afastada no litoral da Líbia, em outras ela está na costa da Grécia. A morada de Medusa era triste e desolada, um lugar coberto de vegetação doentia e ruínas de um antigo povo que registrou sua história em afrescos desgastados pelo tempo. A cor se foi, junto com o calor e alento, tudo parecia coberto por uma aura de decadência e desespero. A característica mais marcante do covil de Medusa, eram as centenas de estátuas humanas espalhadas aqui e ali, sempre em poses de fuga e com expressões de horror. A petrificação ocorria com o mero vislumbre de sua face doentia, capaz de tornar a pele rígida e cinzenta em questão de segundos.

Medusa era uma reclusa. Deixava seu covil apenas para apreciar as estátuas que haviam sido pessoas e para chorar pela sua própria tragédia. Diziam as lendas que ela não tinha coragem de tirar a própria vida e que lamentava o fato de jamais poder se mirar num espelho, ação que transformaria ela mesma em uma estátua.

Segundo a mais famosa das lendas envolvendo Medusa, o herói grego Perseu teria sido enviado pelo Rei Polydektes de Sérifo para assassinar a Gorgona. Para ajudar em sua jornada, Hermes oferecia a Perseu um Elmo que lhe garantia invisibilidade, sandálias dotadas de asas que lhe permitem voar, uma foice que não perde o fio e um escudo de bronze cristalino como um espelho. Perseu visita uma caverna onde vivem três feiticeiras cegas que  compartilham do mesmo olho. Ele consegue enganá-las se apossando do objeto e ameaça destruí-lo se elas não revelarem onde vive a Medusa. Elas acabam aceitando contar o que Perseu deseja e o instruem que a única maneira de vencer Medusa é evitar de olhar em seus olhos.

Algumas narrativas dizem que Perseu entra furtivamente na cidadela da Ilha e que encontra Medusa chorando em desespero no pátio repleto de estátuas de pedra. Ele se esgueira para trás dela, e com um único golpe decepa a sua cabeça sem que ela sequer perceba sua presença. Outras versões afirmam que a Medusa não apenas detecta o invasor em seus domínios, como luta com ele tentando transformá-lo em estátua. Perseu entretanto usa uma estratégia vitoriosa, empregando o escudo como um espelho para atrair a gorgona. Quando ela vê seu próprio reflexo começa a gritar em desespero se transformando em pedra. Ele então tem tempo de atacar e arrancar-lhe a cabeça. Seja como for, Perseu derrota a Medusa decapitando-a e recolhendo sua cabeça em um pano que pertencia a uma ninfa, o único tecido que resiste ao seu sangue venenoso.


O Sangue da Medusa, por sinal, é tratado como uma substância possuidora de faculdades místicas poderosas. Em uma das lendas ele seria usado para irrigar o solo da ilha fazendo com que os ossos das pessoas enterradas naquele lugar se movessem como esqueletos. Em outra fábula, o sangue vertendo do corpo da Medusa teria dado origem ao Cavalo Alado Pégasus e ao Gigante Crisaor. Também existia a crença de que gotas do sangue da Medusa pingaram no mar e que este formou os corais existentes no Mar Vermelho.

Após usar a cabeça da Medusa para transformar o Rei Polydektes em pedra, Perseu decide entregar o funesto troféu à Deusa Atena que a usa como adorno para seu escudo. Da mesma forma, algumas gotas residuais do sangue acabam parando nas mãos de Asclepius que as utiliza para criar remédios e poções mágicas.

A título de curiosidade, embora tenha sido morta nessa famosa história, Medusa continuou a aparecer em diversas narrativas contadas pelos gregos. A fama da mais jovem das Gorgonas continuou inabalável nos séculos seguintes fazendo dela uma das figuras mais reconhecidas na mitologia helênica.

O Templo de Corfu no Mar Jônico possui uma representação de Medusa entalhada ali para proteger o prédio e impedir a entrada de indesejados. Uma estátua intacta do século sexto antes de Cristo representando Medusa foi encontrada em Parikias em 1993. Acredita-se que a estátua era colocada na entrada de um templo também como forma de proteção. E estes são apenas alguns exemplos de obras de arte na qual Medusa figura de maneira proeminente. Ela está presente em incontáveis máscaras, vasos, ânforas, afrescos e peças de decoração. Até mesmo em sepulturas, mausoléus e lápides, os símbolos associados a Medusa se tornaram muitíssimo usados, uma forma de afastar ladrões e preservar objetos valiosos e restos humanos. Nenhum ladrão afinal ousaria arranhar ou depredar algo sobre a proteção da Gorgona guardiã. 


Nos últimos séculos, os famosos "Olhos das Gorgonas" se tornaram amuletos usados comumente pelos gregos com o propósito de afastar o mal olhado e espíritos malignos. Ainda nos dias de hoje eles podem ser encontrados em todo país vendidos a turistas e visitantes. O símbolo composto de círculos concêntricos azuis e brancos se tornaram uma tradição em toda Grécia.

Os romanos também admiravam a Lenda das Gorgonas, em especial Medusa, e a incorporavam em várias representações artísticas. Escudos militares, brasões, bandeiras e estandartes trazendo a efígie de Medusa eram extremamente comuns, bem como pinturas e afrescos. Legiões do Exército de Roma que tinham Medusa como uma espécie de Patronesse ganharam grande fama.

Mesmo após a Queda do Império Romano, as Gorgonas continuaram sendo lembradas pelos eruditos que conservavam fragmentos da civilização decaída. Embora algumas estátuas de Medusa tenham inegavelmente sofrido depredação, algumas atravessaram a Idade das Trevas chegando ao Renascimento, convertendo-se em um tema recorrente entre artistas que recorriam ao Período Clássico como fonte inesgotável de inspiração para suas obras.

É curioso, mas assim como aconteceu com outros seres fantásticos (o Unicórnio e o Basilisco, para citar apenas dois recentemente visitados aqui no Blog), muitas pessoas na Idade Média acreditavam que as Gorgonas de fato haviam existido e que possivelmente tais seres poderiam ser encontrados em lugares isolados do mundo. 


Pensadores medievais debatiam a respeito de onde viviam as Gorgonas e qual seria a localização de seu refúgio. Entrementes, também se discutia a respeito do destino final da Cabeça da Medusa, e se o estranho troféu ainda estaria em algum lugar secreto, esperando ser encontrado por quem o reclamasse. Cogitava-se ainda se a cabeça manteria os poderes descritos na famosa narrativa de Perseu e se poderia ser usado como arma por quem a encontrasse.

Até o século XVII, a Medusa se manteve presente no imaginário popular e em várias representações ao longo da história. Sua efígie foi adotada como símbolo dos Jacobinos que influenciaram a Revolução Francesa e que tiveram papel central no período mais radical do movimento. No século XIX, Sigmund Freud usou a Medusa para aludir muitas de suas teorias que fundamentaram a Psicanálise. Mais recentemente a Medusa foi alçada a figura central do feminismo, interpretada como uma mártir do inconformismo.

De uma lenda que conjurava terror extremo, passando por símbolo de revolução, resistência e força, a Medusa fez um longo caminho e provavelmente continuará presente no mundo moderno por um bom tempo.  

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

O Culto Natufiano de Cthulhu - O trágico fim de uma Expedição da Universidade Miskatonic


Baseado no artigo de Bigford Works
"The Natufian Cthulhu Cult".

Em 1932, após a descoberta da Civilização Natufiana por Dorothy Garrod nas Montanhas da Judéia Ocidental no final da década de 1920, a renomada Universidade Miskatonic patrocinou uma expedição ao local. O objetivo: explorar e obter mais detalhes sobre a cultura desta sociedade pouco conhecida composta de caçadores-acumuladores, que teriam lançado as bases para a construção das primeiras fazendas de que se tem notícia. Também era interesse desvendar o papel dessa curiosa sociedade que vagou pela Terra Santa entre 12,500 e 9,500 a.C.

O Professor Harold Windsor do Departamento de Arqueologia da Universidade Miskatonic acompanhado de seu protegido o Sr. Albert Holmes, rumaram para a Grande Biblioteca do Líbano em Beirute para conduzir pesquisas preliminares. O alvo do Professor Windsor era localizar registros sobre um caminho que levava ao topo da montanha Har-Hermon que delimita a fronteira entre Síria e Líbano.

Windsor estava convencido que a chave para sua descoberta residia nas infames lendas a respeito das montanhas. A escarpada cadeira montanhosa era mencionada em numerosos textos religiosos, constando até mesmo no épico Gilgamesh que Windsor estava convencido era baseado em lendas ainda mais antigas. Várias culturas, hebráicas, gregas, romanas e muçulmanas, assim como grupos menos definidos, haviam adornado as montanhas com templos e lugares de culto. Deuses, seitas e religiões pareciam encontrar um solo fértil nessa parte do mundo antigo.

Contudo, o Professor Windsor tinha um interesse adicional em mente: um em que ele tencionava focar seus esforços. Investigando velhos documentos e estórias compartilhadas por tribos de beduínos que vagavam pela área há incontáveis séculos ele havia determinado a existência de um Platô. Um trecho peculiar nas Montanhas, tratado com um misto de medo e superstição. O lugar parecia perfeito para erigir um lugar de adoração, ainda assim ele havia sido deixado vazio por todos os povos que exploraram as escarpas e ali se fixaram. Todas as culturas deixaram aquele espaço de lado. Ou assim parecia.

Alguns documentos mencionavam que aquela área era proibida por ser a morada terrestre de deuses ou demônios. Havia uma lenda sobre um anjo rebelde chamado Semjâzâ, que escolheu cair na Terra afim de tomar todas as fêmeas da raça humana como suas consortes. Semjâzâ também fez um voto, o de ensinar aos homens a magia proibida e conjurações que seriam reunidas séculos mais tarde no Livro de Enoch. Para os nômades que habitavam  deserto, aquele lugar era sagrado e maldito, o lugar onde os anjos tocavam o chão e revelavam segredos proibidos aos mortais. "Os segredos que Deus não desejava fossem revelados" explicavam os sábios iluminados e homens santos.


A equipe da Universidade complementada por trabalhadores e escavadores bastante relutantes a respeito de seu envolvimento, concentrou os esforços naquela área específica. Rapidamente localizaram o que parecia ser um templo religioso incrivelmente antigo. Além da notável descoberta desenterraram relíquias espalhadas pelo sítio (ferramentas e objetos ornados) que sugeriam que o local havia sido usado pelos Natufians. Até essa descoberta, ninguém acreditava que uma sociedade do Período Mesolítico seria capaz de organizar uma força de trabalho para construir um templo tão sofisticado como aquele que o Professor Windsor encontrou. Ele estava no mesmo nível, e de certa forma até superava os detalhes das construções de megálitos achados no Norte da Europa, que predatavam os 6,800 anos.

A animação entretanto teve vida curta e cedeu lugar a um sentimento de apreensão.

O sítio arqueológico começou a revelar detalhes aterrorizantes e inesperados. Uma quantidade absurda de cadáveres humanos com inconfundíveis sinais de terem sofrido sacrifício humano. Os restos de um corpo naturalmente mumificado pelo clima seco que permaneceu sobre um altar por mais de 10,000 anos. Além da profusão de corpos dentro e nos arredores do templo, o sítio apresentava sinais de ter sido o palco de mortes violentas que se sucederam a um incêndio. Havia a possibilidade do lugar ter enfrentado o ataque de saqueadores que destruíram o templo em meio a uma cerimônia subitamente interrompida. 

Mas o pior foi descobrir a divindade que era venerada naquelas câmaras subterrâneas e escuras.

Um enorme monólito de pedra negra havia sido entalhado com a efígie maligna de uma imensa criatura cefalópode. Ainda que a pedra tenha sido tombada durante a destruição do lugar, a equipe determinou que o totem da estranha divindade deveria ter mais de oito metros de altura. A natureza daquele deus esquecido também constituía um enigma: deuses representados através de criaturas marinhas eram muito mais comuns em regiões costeiras, não na parte intermediária de uma cadeia montanhosa. 

Além disso, havia o fosso. Um estranho fosso rochoso que servia para dispor as oferendas diante do Deus, que certamente recebia sacrifícios. Quando vasculhado o fosso revelou ser a entrada de um extenso sistema de cavernas e grutas que atravessavam o coração da montanha. Não havia como determinar se ele havia sido construído ou se era um complexo formado naturalmente, o que causou uma acalorada discussão entre os pesquisadores. A profundidade do fosso era impossível de se determinar visto que não haviam cordas suficientes disponíveis para atingir seu fundo. A marcação final revelou que ele tinha pelo menos 400 pés de profundidade. Sons ouvidos em seu interior eram difíceis de serem interpretados. o ruído do bater de asas foi ouvido por alguns operários que supersticiosamente disseram não se tratar de morcegos, uma vez que tais asas pareciam bem maiores. Ainda assim, os professores reputaram o ruído a uma espécie de morcego raro, mas não inteiramente desconhecido da região. Apesar disso, não se descobriu nenhum resquício de excrementos de morcegos nos túneis. 


O curioso desaparecimento de operários e trabalhadores locais chamou a atenção e foi motivo de muitas interpretações. Vários homens contratados para realizar o trabalho de escavação nos túneis e no complexo simplesmente não retornaram, o que levou os chefes da escavação a supor que o número de desertores era alarmante. Muitos homens, beduínos em sua maioria, tinham receio de entrar no complexo usando apenas tochas, uma vez que a escuridão ali era absoluta. Também haviam velhas superstições compartilhadas e reavivadas pela conversa dos homens nos acampamentos à luz das fogueiras. Falavam de deuses, demônios e maldições ancestrais e de um fim doloroso para todos que tomavam parte na tarefa insalubre de vasculhar tumbas e templos esquecidos.

Com a redução no ritmo das escavações e exploração dos túneis, Windsor passou a se dedicar a catalogar os artefatos e relíquias removidas do templo de pedra. Ele iria se arrepender desse trabalho para o resto de sua vida. As ferramentas e implementos religiosos eram superficialmente de origem Natufiana. Mas uma avaliação mais profunda e esmiuçada começou a apontar... anomalias.   

As foices, ferramentas encontradas em grande quantidade eram um enigma por si só. As lâminas eram feitas com vidro de obsidiana, não com o tradicional sílex. Embora infinitamente mais afiada as foices não deveriam servir para atividade rural, menos ainda para construção. Supôs-se então que elas tinham utilização religiosa em algum tipo de ritual realizado no templo. Muitas dessas peças possuíam curiosos adornos predominando o uso de dentes de animais na empunhadura. Muitas peças tinham engastes feitos de dentes cuja origem foi definida como sendo de alces nativos do Norte da Europa, animais que habitavam uma região muito distante e inacessível. As facas encontradas no templo também eram incomuns. Os Natufianos produziam lâminas pequenas e curtas, mas estas facas eram maiores, pesadas e totalmente estranhas à cultura.

Uma peça muito incomum foi achada, um tipo de fetiche tribal feito de madeira recoberta com cordame de sisal. Os símbolos e desenhos levaram Winsdor a acreditar que se tratava de uma representação menor da mesma divindade cefalópode, uma peça usada para veneração pessoal, provavelmente propriedade de um sacerdote ou cultista. A efígie era incrivelmente detalhada, com engastes de pedras semi-preciosas ocupando o lugar dos olhos da figura com cabeça de polvo.



As fundas e trajes de proteção também eram bem estranhas. Embora a quantidade intensa de ácido tânico no solo tenha miraculosamente preservado as tiras de couro desses objetos, o desenho deles era incrivelmente avançado. Muito embora a cultura Natufiana tenha apresentado poucas alterações desde os tempos pré-históricos, o feitio dessas peças era incomum e aparentava ter sofrido influências culturais distintas, e mais ainda, de civilização absolutamente ignorada.

Outra peça de adereço chamou a atenção por ter provável utilização cerimonial. Tratava-se de um tipo de cocar bastante curioso apresentando o que parecia ser uma cabeça cefalópode, no topo da qual se projetavam tentáculos de couro curtido que permaneciam soltos diante da face de quem a usava. Sem dúvida, outra peça usada pelos sacerdotes de seja lá qual fosse a divindade venerada nas celebrações religiosas. A presença de outras peças feitas com acabamento de ossos de animais, antílopes em sua maioria, revelava uma forma de ritual mágico no qual o sacerdote incorporava atributos dos animais, um princípio usado em várias culturas mas não entre os Natufianos.

Quanto mais o Professor examinava as peças, mais se tornava aparente que o Culto e os cultistas envolvidos com a utilização daquelas peças NÃO eram Natufianos, mas indivíduos que possivelmente haviam migrado de regiões muito distantes. Windsor não quis sugerir claramente em suas notas, mas alguns de seus colegas ouviram ele mencionar que por mais estranho que pudesse parecer, as evidências sugeriam que os artefatos haviam sido confeccionados por uma sociedade do Norte da Europa.        

Então veio a tenebrosa revelação.

A coisa teve início quando um ajudante trouxe para o professor examinar algumas peças que haviam sido desenterradas pelos operários. Um dos ajudantes teve uma discussão com dois escavadores beduínos, justamente os que haviam removido a peça de um depósito. Eles queriam destruir a peça assim que deram uma olhada mais cuidadosa no que haviam achado. Por pouco a peça não sobreviveu, visto que os homens já preparavam picaretas e pás para fazer a relíquia em pedaços.

O item era uma placa pequena de pedra adornada com muitos entalhes e símbolos de aparência incomum. Windsor achou a peça muito curiosa e procedeu em um exame, copiando os desenhos em seu bloco de notas. Os desenhos mostravam cenas que não faziam muito sentido com representações de seres humanos colocados em fila sendo guiados (pastoreados?) por criaturas de aparência claramente inumana. Algumas delas com feições repulsivas, bocas largas e aspectos claramente marinho, dotados de escamas e adornados com jóias e indumentária diferente de tudo que já havia sido visto por Windsor.


O Professor acreditou se tratar de algum tipo de amuleto empregado em rituais de caça para auxiliar os caçadores a encontrar suas presas.Curiosamente, a representação indicava que ele servia a um propósito nefasto: caçar e arregimentar seres humanos. A imagem de pessoas, os braços abaixados e a expressão de derrota evidentemente manifestando o aspecto passivo de cada um era perturbadora.   

Windsor já desconfiava da natureza daquele estranho templo, mas aquela peça deixava claro que as pessoas ali reunidas conduziam sacrifícios, dispunham e reuniam as pessoas para propósitos nefastos. Havia sacrifício e mutilação. Havia rituais e serviço para divindades monstruosas, Vigorava o uso de foices empregadas como armas cerimoniais e outros aspectos sombrios que causaram um arrepio de dúvida e temor no Professor. Ele havia chegado aquele lugar procurando indícios do primeiro povo a produzir ferramentas para ajudar na atividade rural, ao invés disso, havia descoberto um povo dado a atividades cruéis e perversas.

Pior de tudo eram os sonhos que passaram a atormentar Windsor e seus colegas. Sonhos negros e eivados de sinistros desígnios. Holmes escreveu em um diário que temia adormecer e não acordar. Sofriam com portentos alarmantes nos quais a morte, o sangue e a desgraça eram glorificadas por indivíduos trajando mantos que ocultavam suas faces vilanescas. Por vezes, os rostos eram escondidos atrás de máscaras de couro repletas de tiras pendentes, semelhantes a tentáculos.

O medo começou a se espalhar quando um operário matou outro, seu próprio primo, dizendo que havia ouvido em sonhos que isso era necessário. O corpo da vítima foi mutilado com golpes de foice que feriram o rosto e o peito em padrões medonhos. Ao examinar o corpo Windsor ficou pasmo, era um padrão usado nas descrições de sacrifícios encontrada em tábuas achadas no Templo. O operário jamais havia visto aquele material, de onde tirara as informações para repetir aquilo? "De sonhos", traduziu um intérprete que ouviu o relato feito no idioma Pashtu.

À essa altura era claro que a escavação inteira estava sob influência de superstição e de boatos. A cada dia mais escavadores abandonavam os trabalhos e o moral da equipe estava muito baixo. Muitos não tinham mais ímpeto ou disposição de analisar as peças. Dois dos quatro últimos graduandos, que haviam chegado empolgados a respeito da escavação, disseram que simplesmente não suportavam mais prosseguir naquele trabalho indigesto. Pediram transferência, alegando que queriam voltar para a América. Um deles posteriormente largou a arqueologia para tentar outra carreira e jamais falou de sua experiência no Oriente Médio.


Os resultados da expedição jamais seriam compartilhados de forma integral. De fato o que se sabe, relatado acima, é o que foi contado pelo outro graduando Franklin Osgood que mais tarde teria participação nessa história.

É preciso dizer que houve muitos rumores e informações desencontradas, e francamente, ninguém sabe ao certo o que sucedeu naqueles dias no Líbano sob o Governo Colonial da França. Os diários da expedição, até então mantidos em ordem pelo Professor Windsor não revelavam nada de útil, quado foram achados. Constituíam uma bagunça de frases e palavras desencontradas. Papéis foram queimados e deliberadamente arruinados.

Em uma viagem à Beirute para enviar relatórios para a Miskatonic, o Sr. Holmes foi morto e roubado de toda documentação por um grupo de estranhos que pareciam segui-lo. Testemunhas contaram que o bando composto de cinco ou seis indivíduos cercaram o automóvel em que Holmes viajava e o arrancaram de dentro. A seguir o cercaram e se alternaram em um ataque brutal com facas (ou foices, segundo pelo menos duas pessoas que presenciaram a cena). O corpo de Holmes foi horrivelmente retalhado e enquanto agonizava, a pasta contendo os papéis foi subtraída.

Depois disso, investigadores da polícia tentaram contatar Windsor e avisar sobre a morte de Holmes. Não se sabe, contudo, se as cartas chegaram ao Professor no sítio isolado. Dois investigadores coloniais foram despachados para o acampamento nas Montanhas Har-Hermon, mas acharam o local abandonado. Alguns poucos beduínos ainda presentes no sítio afirmaram que o Professor Windsor havia partido e que os últimos escavadores também tinham ido embora. O Professor teria usado cargas de dinamite para detonar a entrada para o Templo Natufiano. As explosões lacraram a entrada do templo sob toneladas de pedras. Documentos produzidos pela equipe nos oito meses de trabalho e os artefatos reunidos aparentemente também foram selados. Um dos beduínos afirmou que o "estrangeiro" havia simplesmente enlouquecido: "a sina dos profanadores de sepulturas", teria dito, mas o tradutor contratado não era muito bom.

A Universidade Miskatonic entrou em contato com as autoridades coloniais francesas e pediu formalmente que fossem dobrados os esforços para localizar o paradeiro do Professor Windsor. Por meses, nenhuma informação foi obtida, a embaixada americana no Líbano, através de seu adido o Sr. Lionel Turner, trabalhou com afinco, mas nada foi encontrado.

Quase um ano depois dos acontecimentos relatados, o Sr. Turner foi chamado no meio da madrugada para verificar uma informação de que o Professor Windsor teria sido encontrado. A pista o levou até um Hotel barato localizado em uma área de má fama nos arredores de Beirute. Lá ele encontrou o Professor em estado lamentável em "estado de agitação e desalinho". Windsor à princípio se negou a revelar o que havia transcorrido e apenas depois de várias conversas foi convencido a abandonar o local onde estava vivendo (há pelo menos três meses) e acompanhar o funcionário da embaixada até um teto mais respeitável. Uma das condições, segundo Turner para que o Professor aceitasse acompanhá-lo é que nem ele (e nem ninguém) deveria perguntar a respeito das escavações em Har-Hermon.


Dois meses depois, o Professor retornou para a América. Ele continuou se negando a compartilhar informações a respeito dos acontecimentos na escavação. Após uma série de procedimentos legais, o Professor foi formalmente desligado do Departamento de Arqueologia da Universidade e do próprio quadro docente. Windsor posteriormente se internou no Asilo Arkham para tratamento psiquiátrico. Ele deixou a instituição em 1935 e se tornou viciado em morfina e álcool. Alguns colegas do Professor tentaram extrair dele algum fiapo de informação sobre a escavação no Líbano, mas todas as tentativas falharam miseravelmente. Em 1938, o Professor foi visto vagando sem destino pelas ruas de Arkham como um vagabundo esfarrapado. Reconhecido por ninguém menos do que seu ex-graduando Franklin Osgood, ele foi encaminhado de volta para o Asilo onde passou a receber tratamento.

Windsor permaneceu no Asilo Arkham até sua morte em 1954 de causas naturais. A Universidade Miskatonic se encarregou de pagar os custos e arcar com o tratamento do Professor até o final de sua vida. Ele tinha 71 anos de idade quando faleceu.

A única peça de informação relevante revelada pelo Professor Windsor foi dividida com Osgood em uma visita na década de 1940. Windsor revelou que havia utilizado todos os seus recursos financeiros (que segundo rumores estavam na casa dos US$ 200,000) para contratar através de agentes locais trabalhadores e operários que enterrassem o sítio nas montanhas: "Para esconder o lugar e manter aquilo que estava lá dentro para sempre aprisionado".

As poucas peças e itens encontradas no sítio da escavação, foram colocadas em uma caixa e enviadas pelas autoridades francesas para a Universidade Miskatonic. Elas foram identificadas como artefatos Natufianos, muito embora alguns especialistas tenham levantado dúvidas sobre sua origem.

O sítio em Har-Hermon permanece fechado. Ninguém entrou no complexo desde que ele foi lacrado em 1935.