Na Idade Média e no Renascimento, as pessoas na Europa não tinham dúvida de que os Unicórnios eram reais.
Afinal de contas, não havia porque duvidar da existência de um animal que era tão popularmente retratado em histórias, narrativas e nas artes em geral. Não que alguém tenha visto um desses curiosos "cavalos com chifre", mas até aí, a maioria dos europeus do período jamais havia visto um camelo ou um leão, mas quando histórias a respeito deles foram compartilhadas, ninguém duvidava de sua existência. A natureza era um mistério e ninguém podia realmente duvidar de maravilhas ocultas nos recantos mais distantes do mundo.
No caso do Unicórnio, havia ainda outro sinal que apontava para sua existência factual.
Os chifres desse animal estavam presentes entre os tesouros mais estimados de reis e nobres da mais alta estirpe. Até mesmo sacerdotes tinham seus chifres de unicórnio guardados cuidadosamente. Carlos I da França se orgulhava de ter um na sua sala do tesouro, ofertado por um viajante que explorou o norte da África e trouxe a peça que se tornou lendária entre os convivas do governante. Lorenzo de Medici também mostrava uma magnífica peça aos visitantes de sua propriedade na Itália. Os Reis da Dinamarca ostentavam não apenas um, mas dois chifres de Unicórnio em sua sala do trono em Copenhague. A Rainha Elizabeth I foi presenteada com um chifre de unicórnio em perfeito estado que ela mandou moldar na forma de um cetro cravejado de jóias que custou 10 mil libras - o valor de um castelo nos dias de hoje. De fato, os chifres de unicórnio eram algo tão valioso e desejado entre os nobres da Idade Média que o dramaturgo britânico John Dekker escreveu que eles poderiam valer o mesmo que uma cidade.
Mas havia algo mais do que mero símbolo de extrema riqueza, beleza e raridade. Os povos antigos acreditavam que o Chifre de um Unicórnio guardava propriedades mágicas e que constituía uma poderosa defesa contra doenças e sobretudo, venenos.
Para um animal que jamais existiu, os Unicórnios faziam parte do dia a dia das pessoas. Os mitos mais antigos da China e da Índia mencionam animais semelhantes ao unicórnio, bem como viajantes gregos que visitaram terras distantes. Um dos mais antigos exploradores gregos, o historiador Ctesias, que viajou para a Ásia em 400 a.C, descrevia um grande e ágil animal com o corpo branco de um alazão e um chifre dourado se projetando de sua testa. Cerca de 100 anos mais tarde, estudiosos traduzindo o Velho Testamento interpretaram um animal dotado de chifres conhecido pelo nome hebreu de re'em como unicórnio. No século primeiro d.C, Plínio, o velho descreveu o unicórnio como "um bravo animal, impossível de ser capturado vivo". Indo mais além em sua descrição do magnífico animal ele dizia: "Tem o corpo de um cavalo e a cabeça de um gamo, os pés de um elefante e a cauda de um javali, além de um único chifre adornando o centro de sua testa".
Apesar das diferentes descrições, todos os cronistas dom período enfatizavam que o Unicórnio possuía capacidades curativas e purificadoras.
Ctesias escreveu:
"Aqueles que bebem desses chifres, transformados em taças, ficam livres de convulsões e da doença dos Reis (epilepsia). Eles também ficam imunizados contra a ação vilipendiosa de venenos se, antes ou depois da ingestão dos mesmos, beberem vinho, água ou qualquer líquido nessas taças".
Relatos semelhantes surgiram ao longo das eras. Por volta do século III da Era Cristã, o médico e intelectual grego Philostratus escreveu que no oriente distante os povos faziam taças de chifres de unicórnio para dele beber. Estes tinham a virtude de promover uma vida saudável e longa, afastando as doenças do corpo e das mente contanto que seu uso fosse contínuo. A virtude de tais taças feitas de chifre de unicórnio eram tão difundidas que chegavam a creditar a ele faculdades cicatrizantes, sendo eles alegadamente capazes de sarar queimaduras, ajudar na remoção de flechas, aliviar os efeitos danosos de órgãos supurados e para combater moléstias físicas. Até mesmo a Lepra, a doença mais temida da antiguidade, seria revertida pelo uso do cálice mágico de chifre de unicórnio.
Não demorou para que outras propriedades especiais dos unicórnios fossem descobertas. Por volta do século XII, uma freira alemã chamada Hilderbrand de Bingen, conhecida pelas suas visões santificadas, recomendou uma pasta de fígado de unicórnio e gema de ovo como a cura definitiva para a lepra. A religiosa no entanto fazia uma ressalva de que o remédio seria ineficiente se o doente fosse alguém amaldiçoado por Deus com a temida moléstia. Os pelos extraídos da crina de um unicórnio, por sua vez seriam uma cura para ferimentos produzidos por lâminas. Se aplicados sobre a ferida produzida por uma faca ou espada, as propriedades curativas agiriam rapidamente fechando a ferida e permitindo a sobrevivência da pessoa acometida, "mesmo que desenganada". O couro de um unicórnio era recomendado para a confecção de cinturões e de botas, uma vez que seu uso servia como forma de prevenção de outro dos grandes flagelos da Idade Média: A Praga.
A crença nos poderes mágicos do unicórnio, no entanto, focavam em seu chifre.
A substância da qual o chifre era feito, por vezes chamada de alicórnio, estava associada a pureza bem como a cura, ganhando em algumas versões tons sagrados. O Unicórnio estaria associado a Jesus Cristo, enquanto o chifre era análogo à santa cruz. Para atrair a besta mágica, os caçadores empregavam uma mulher virgem, em especial dotada de uma beleza especial, com pele, cabelos e olhos claros, símbolos do padrão de beleza medieval. Quanto mais imaculada a jovem, maior a chance de atrair a criatura, visto que estas se sentiam compelidas por tudo que fosse tão puro quanto eles mesmos.
Uma jovem virginal também era a única que podia tocar no chifre sem o risco de conspurcar suas propriedades curativas. Embora o golpe final tivesse de ser dado pelo caçador, era a jovem quem precisava extrair o chifre usando para isso uma lâmina com fio de prata. Se ela chorasse durante a tarefa, tanto melhor, pois suas lágrimas de culpa por se prestar ao abate de tão nobre besta, preservavam sua aura mágica.
É claro, caçadores podiam alegar ter obtido o chifre de unicórnio em lendárias buscas, mas obviamente estas não passavam de invenção. Mas então, como explicar a aparição de chifres entre os nobres europeus?
Os chifres encontrados entre os tesouros mais valiosos da Europa, e creditados a unicórnios, vinham de rinocerontes, fósseis de mamutes, e mais frequentemente de narvais, caçados por Vikings no Mar do Norte. Os povos nórdicos caçavam o Narval (um cetáceo de águas geladas) em busca do valioso dente em forma de chifre espiralado. Essas peças eram então trabalhadas e vendidas a mercadores com os quais eles tinham contato.
Uma vez obtido, o alicórnio podia ser comercializado de várias maneiras. Triturado, ele era vendido na forma de poeira e consumido como remédio contra a praga, a gota e várias outras doenças. As raspas do chifre podiam ser usadas para aliviar dores de dente, para prevenir doenças de pele e para combater o escorbuto segundo alguns alquimistas. Uma infusão da poeira de alicórnio, bebida com leite era um remédio confiável contra o reumatismo e doenças pulmonares. O influente médico alemão Johann Schroeder recomendava a poeira para remediar a epilepsia. E é claro, a poeira também tinha propriedades incríveis contra a impotência e ajudava a gerar filhos homens.
Embora alguns médicos do período falassem com ceticismo a respeito das propriedades mágicas, muitos apotecários usavam chifres de unicórnio como ingrediente principal em suas poções. O termo francês Eau de licorn se referia a água purificada pela passagem do líquido através de um chifre, como nossos purificadores atuais. Beber dessa água filtrada pelo chifre era garantia de vida longa e saúde.
Embora o preço exorbitante de chifres intactos fizessem deles artigos destinados aos ricos e ilustres, logo começaram a surgir chifres com preços mais acessíveis para o plebeu em geral. Isso acontecia porque não faltavam aproveitadores na Idade Média e as pessoas acreditavam naquilo que lhes diziam. Substâncias como casco de cavalo, fósseis e outros tipos de chifre, eram usados como substitutivos. No fim das contas, foi justamente o problema das fraudes que levou a ruína do rentável negócio dos chifres de unicórnio e do seu derivado direto, o alicórnio. As pessoas passaram a se sentir enganadas quando um tratamento não funcionava, evidenciando que o chifre vendido não era realmente de unicórnio, mas uma fraude.
Ainda assim, Chifres de Unicórnio continuaram a ser populares, sobretudo entre os mais ricos que podiam se dar ao luxo de colecionar tais objetos, já que estes lhes garantiam fama.
A outra razão para esse desejo dizia respeito ao temor de venenos. Na Idade Média, venenos eram a arma predileta de assassinos contratados por casas rivais para remover seus inimigos de forma discreta. Os europeus sempre confiaram na criação de detectores de venenos que pudessem afastar o risco que essas substâncias nocivas representavam. Utilizavam rubis, bezoares, gemas, garras de grifo e outros itens para isso, contudo o mais confiável para negar os efeitos de venefícios seria o Chifre de Unicórnio.
Alegados Chifres de Unicórnio eram dispostos sobre a mesa de jantar como detectores de veneno, enquanto fragmentos destes, chamados de touchés, pelos franceses, eram usados para limpar pratos e taças nas quais a comida e bebida seriam consumidas. Um touché podia ser usado em torno do pescoço como um amuleto. A ideia é que, se alguém sentisse algo diferente no sabor da comida, colocaria o amuleto na boca para neutralizar os efeitos danosos A realeza da França se orgulhava de ter utensílios feitos de alicórnio que eram usados sobretudo em tempos de guerra ou inimizade.
Esperava-se que o chifre pudesse alertar a presença de veneno mudando de cor, criando bolhas em sua superfície ou ainda se tornando repentinamente quente. Alicórnio também estava presente em broches, camafeus, guardanapos e talheres. Taças feitas de Chifre de Unicórnio eram de uso privativo de Reis e rainhas e pessoas que tocassem tais utensílios podiam ser executadas. Na Inglaterra acreditava-se que uma substância venenosa servida numa taça de alicórnio fervia ou ainda sublimava rapidamente.
Embora alguns pesquisadores da medicina medieval, como o cirurgião francês Ambroise Paré, fossem céticos a respeito desses poderes, muitos defendiam seus méritos. O estudioso italiano Andrea Bacci escreveu uma dissertação em defesa dos chifres de unicórnio em 1573. Nela relatava a história de um homem que foi envenenado, mas que sobreviveu consumindo vinho destilado através de um chifre. Ele também descreveu um experimento no qual dois pombos foram alimentados com arsênico. Um deles recebeu uma dose de água filtrada por um chifre e sobreviveu, o outro não.
No século XVII, o mito dos Chifres de Unicórnio começou a perder espaço em face dos avanços da medicina. Os médicos testavam as alegadas propriedades curativas do alicórnio e não encontravam nada a seu favor. Além disso, europeus que exploravam o ártico pela primeira vez se depararam com espécimes de Narvais, cujos chifres eram muito semelhantes aos alegados Chifres de Unicórnio encontrados nos tesouros reais. Finalmente, expedições que buscavam provar a existência de lendas a respeito de unicórnios, falharam em localizar tais seres.
Em 1661, a recém formada Royal Society determinou que Unicórnios não passavam de uma lenda e que jamais havia existido tal animal na natureza. Os homens sepultavam de uma vez por todas séculos de crenças em propriedades ditas mágicas.
A perda do valor resultou em um progressivo desaparecimento e destruição de itens até então extremamente valioso. Itens que um dia representavam riqueza e status se tornaram da noite para o dia símbolos de ignorância e vergonha. Alguns deles foram relegados a museus e coleções particulares, outros foram simplesmente desmontados ou refeitos, como é o caso do cetro cravejado que pertenceu a Elizabeth I cujas jóias foram removidas e vendidas separadamente.
A crença no poder milagroso de Chifres de Unicórnio e outras de substâncias faz parte de nossos temores com a morte e com as doenças que limitam nossa existência. Se há uma verdade universal é que nós procuramos de todas as formas, desesperadamente, por qualquer coisa que nos permita viver mais e melhor.
Seja ela qual for...
Muito informativo o post! Me faz lembrar de um livro que eu li na biblioteca em frente à minha casa, falando sobre unicórnios, dragões chineses e outros seres mágicos...
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