sábado, 26 de dezembro de 2020

Natal Lovecraftiano - Boas Festas do Tempo de Yule para todos

Olá para todos, Feliz Natal!

Já que estamos em um blog dedicado a H.P. Lovecraft, o famoso Mestre do Horror do século XX e na época adequada, que tal analisar a relação dele com o festivo feriado natalino?

Pesquisei a magnífica biografia de Lovecraft, escrita por S.T. Joshi em busca de informações e encontrei alguns indícios sobre o que o Cavalheiro de Providence, um cínico materialista, pensava a respeito das festas natalinas e o que ele costumava fazer nessa época do ano. Surpreendentemente o ateu convicto tinha uma visão bastante simpática sobre o Natal. 

Vejamos o que temos a respeito.

H.P. Lovecraft cresceu em uma família que compartilhava uma visão bastante tradicional do feriado de Natal e o via como um evento. As correspondências de Lovecraft aos seus muitos companheiros de cartas deixam claro que ele gostava e aprovava essa visão. Ele demonstrava entusiasmo por certos elementos como a arrumação da casa para a data, com jardins e salas decoradas com motivos natalinos. Canções festivas também são algo típico no Natal de Providence e Lovecraft se mostrava simpático aos corais natalinos, muito embora deixasse claro que ele próprio não tinha talento algum para cantar. Lovecraft também elogia as tradicionais árvores de Natal que eram montadas na Mansão do avô e a troca de lembranças meticulosamente embaladas que ficavam aos pés do pinheiro. Foi a Ceia de Natal, no entanto, que mereceu mais destaque nas reminiscências de Lovecraft, conforme ele escreveu a um amigo: "A velha ceia de Natal com pudim de ameixas, tortas e tudo mais era o ponto alto das festividades". 

Seu banquete ideal seria algo como...

"Sopa Encantada e peru assado, apoteosado com molho de castanhas e todas as especiarias raras e ervas saborosas que caravanas de camelos com sinos retinindo trazem secretamente do oriente esquecido através dos desertos. Além do Oxus - couve-flor com molho cremoso de cranberry com a alma de pântanos de Rhode Island - saladas que os imperadores transformaram em realidade - batata-doce com visões de casas de plantação da Virgínia - molho pelo qual Apício se esforçou e Lúculo suspirou em vão - pudim de ameixa como Irving nunca provou em Bracebridge Hall - e para coroar o banquete, uma linda torta de carne moída bastante articulada com as lembranças das lareiras e adegas da Nova Inglaterra. Toda a glória da terra sublimada em uma refeição transcendente - a pessoa divide a vida em períodos de antes e depois de ter consumido - ou mesmo cheirado ou sonhado - tal refeição!

Lovecraft parecia ser bom de garfo, ou ao menos gostava de elogiar as qualidades de uma boa refeição (recorrendo é claro, à literatura). Para quem no fim da vida teve que se contentar com feijão frio enlatado, é uma lástima saber que ele tinha um apurado senso de gourmand.

O autor escreveu um longo poema em linguagem rebuscada chamado "Velho Natal" (Old Christmas) no qual recriava uma reunião de família na Inglaterra dos tempos da Rainha Ana. Ter recebido elogios de um correspondente britânico pela escolha de certos termos antigos, era motivo de orgulho para Lovecraft.

O autor também estava bastante ciente das profundas raízes romanas e pagãs do Natal, como evidencia um artigo sobre astronomia escrito por ele e enviado a um jornal em 1914. No ensaio intitulado "O Céu de Dezembro" ele comenta a respeito do solstício de inverno e que o festival cristão absorveu depois do século IV, "o antigo festival romano da Saturnália, que por sua vez decorria do mais antigo e primitivo festival da Brumalia." Sobre os costumes pagãos, igualmente costurados nas festividades cristãs, ele destaca no mesmo artigo que "muitos dos costumes presentes nas festas de Yule são derivadas de festivais criados pelos druidas e nossos ancestrais Saxões

Para Lovecraft o Natal e a véspera do Ano Novo eram um tempo para se dedicar a escrita, começando sempre com pequenas poesias que "serviam como aquecimento". Lovecraft aproveitava o feriado para redigir algumas cartas de congratulações e cartões natalinos. Aos amigos mais próximos (e aos seus gatos) ele dedicava cartas mais longas com poemas e versos, referindo-se comumente ao Natal pelo nome Yule, um termo pagão. Para os conhecidos, se limitava a desejos básicos de boas festas e de um feliz ano novo.

Em seus últimos anos de vida, Lovecraft escreveu que gostava de ir até a esquina da casa onde vivia para ouvir o coral natalino do Handicraft Club na College Street. Ele também gostava de comprar pessoalmente a decoração para a sala de jantar e surpreender sua tia com um pinheiro de Natal montado de surpresa. Essa tia, uma de suas últimas parentes, também era companhia frequente em jantares na Pensão Paxton que servia um jantar especial no feriado.   

Ironicamente para um autor dedicado ao horror, Lovecraft não era um grande fã da tradição inglesa de contar histórias de fantasmas na véspera de Natal. Ele achava os contos tradicionais de Dickens melosos e sentimentais demais e mesmo as histórias de fantasmas, na sua opinião, eram contaminadas por esse sentimentalismo enjoativo que demandava uma mensagem positiva. Quando criança, ele parecia mais afeito dessa tradição, ouvindo velhas histórias contadas pelo avô ao redor da lareira ou na grande Biblioteca da Mansão em que ele morou quando criança. "Tempos mais alegres e felizes", lembrava nostálgico.

Fui em busca de sua mais famosa história de Natal - que a bem da verdade não é exatamente uma história natalina, mas que se passa justamente nessa época.

"O Festival" (The Festival) foi publicada pela Weird Tales em 1925, e como muitos dos trabalhos de Lovecraft é uma peça de ficção que combina folclore local da Nova Inglaterra, cenas de horror e sua obsessão pessoal com o estranho e macabro.

A história tem início com um homem chegando a Kingsport, uma antiga cidade costeira da velha Massachusetts. É sua primeira visita ao lugar e ele está ansioso pelo que vai encontrar. Este narrador sem nome, relata que anseia se juntar a parentes distantes e participar de um tipo de celebração que a família mantém há séculos. Veja bem, não se trata de uma típica comemoração de Natal, ainda que ocorra no mesmo mês, mas de uma velha tradição da qual ele ouviu falar, mas de que sabe muito pouco - o tal Festival.

Lovecraft era um profundo conhecedor da história colonial da Nova Inglaterra, aquela região no extremo Leste dos Estados Unidos, rica em tradições e superstições. Ele provavelmente sabia sobre o que estava falando quando menciona "a época em que festividades eram proibidas". Puritanos, os austeros colonos que foram pioneiros na ocupação da região não celebravam o Natal. Eles não encontravam evidência do feriado na Bíblia e portanto não o consideravam como uma data festiva. De fato, o Natal só passou a ser celebrado como um feriado no Estado no final do século XIX.

Os antepassados do narrador sem nome, entretanto, não são descendentes dos Puritanos. Ele alega que eles vinham de outras terras e lugares indeterminados. Lovecraft sugere que as cidades costeiras da Nova Inglaterra receberam um fluxo de pessoas vindas de todas as partes e que portanto tinham uma origem mais diversa do que os assentamentos fundados pelos puritanos (ingleses natos). Lugares como a fictícia Kingsport atraíram mercadores e marinheiros de todo canto e com eles vieram estranhos costumes de suas terras de origem.


Sabemos que Lovecraft se inspirou em uma cidade real chamada Marblehead para criar a fictícia Kingsport. O escritor visitou essa pequena cidade litorânea repetidas vezes, atraído pela aura de antiguidade e pela rica história colonial que impregnava o lugar. Ele se encantava pela sua arquitetura, pelas acanhadas lojinhas de antiguidades, pelas praças com árvores centenárias e igrejas com túmulos igualmente seculares.   

Marblehead foi fundada no século XVII por pescadores e era uma cidadezinha isolada, escondida e cheia de pequenos atrativos para Lovecraft então com seus 30 e poucos anos de idade. Ao visitar Marblehead e caminhar pelas ruas tortuosas com calçamento de pedra, ele se perdia em pensamentos e deixava sua mente criativa imaginar o cenário para sua próxima história.  

Tudo parecia muito atraente. E de fato, Marblehead era um lugar bastante atraente, mas como "O Festival" é uma história lovecraftiana e não um filme natalino, nós sabemos que alguma coisa sinistra espreita nos porões escuros ou observa através das janelas parcialmente cerradas. Nosso narrador em sua visita natalina está prestes a encarar algo bem mais assustador que Panetone e arroz com passas. 

Ao visitar Marblehead na véspera do Natal de 1922, Lovecraft concebeu a trama central de "O Festival". Possivelmente ele se colocou no papel do narrador sem nome, incluindo no roteiro situado em Kingsport, prédios e paisagens, cenas e cores reais extraídas de Marblehead.

Chegando na casa de seu parente distante, o narrador descreve o lugar como um salão iluminado por uma enorme lareira. Prateleiras com velhos livros recobrem as paredes. Há até mesmo uma velha mulher manipulando um tear. O que poderia ser mais típico da Nova Inglaterra? Mas há algo macabro no lugar, a face do parente que o recebe amistosamente, a princípio tranquiliza o narrador, mas logo esse alívio dá lugar a uma suspeita já que a expressão do homem não muda e se assemelha a uma máscara de cera. Suas mãos cobertas por luvas são flácidas. E um dos livros na estante não é outro senão o proibido Necronomicon, o que é um péssimo sinal!

O narrador não tem tempo de analisar sua situação já que logo em seguida ele é escoltado para o lado de fora da casa pelos seus anfitriões. O estranho Festival que ele veio conhecer, está se iniciando e ele é convidado, quase coagido, a tomar parte dele. No caminho pelas vielas escuras ele cruza com pessoas estranhas, todas se dirigindo para a mesma celebração, como em uma macabra Missa de Natal que ocorre no subterrâneo de uma igreja abandonada. O lugar é iluminado por um pilar de chamas esverdeadas que não lança sombra e guarnecido por um rio negro e oleoso que se forma no fundo dessa caverna natural.


Lovecraft alude para a estranheza dos costumes locais aos olhos de um forasteiro. A forma como os costumes de um grupo podem ser peculiares, ou mesmo bizarros, para alguém que não está familiarizado com eles. O ritual descrito em O Festival envolve a invocação de horrendas criaturas aladas, monstros que servem como montaria para transportar os cultistas rumo a cavernas ainda mais profundas. Um dos anfitriões do narrador tenta convencê-lo a acompanhá-los mostrando um velho relógio e um anel que teria pertencido ao tatatataravô do narrador, que havia morrido em 1698 durante a caça às bruxas. O gesto indica que o narrador está sendo convidado por afinidade de sangue a participar da celebração na qual sua família está envolvida desde tempos imemoriais. 

Está em seu sangue tomar parte desse festival blasfema. É sua herança e seu direito! Por um instante parece que o narrador vai abraçar esse caminho, mas então a face do velho parente se revela acidentalmente - uma máscara - que escondia algo tão abominável que o narrador mergulha no rio para escapar ao horror.  

Ele acorda em um hospital, içado das águas e diagnosticado com um tipo de psicose nervosa. No final, ele tem a chance de ler um trecho do Necronomicom que leva a acreditar que tudo não teria passado de um delírio ou alucinação. O livro porém deixa claro que a alma de feiticeiros e bruxas podem criar novos corpos para habitar, usando como matéria prima para esse fim, os vermes que os devoraram no túmulo.

A conclusão bizarra e incerta fecha uma história que injustamente raramente é listada entre os melhores trabalhos de Lovecraft. Mas não obstante, O Festival, oferece uma espécie de história natalina filtrada através das obsessões macabras do mestre do horror cósmico. Nela temos elementos tipicamente natalinos: uma data festiva muito aguardada, uma celebração de cunho religioso, um ritual ancestral e um chamamento familiar para tomar parte e participar dos eventos. Tudo se encaixa na temática do Natal.

Não há nenhuma pista clara indicando que Lovecraft escreveu O Festival como uma visão distorcido da celebração da natividade cristã, mas conhecendo o provocador que ele era, a possibilidade existe.

Seja como for, "O Festival" merece uma nova leitura, quem sabe até um artigo examinando essa pequena joia mais à fundo. Por enquanto, ficamos por aqui.


ADENDO: Comecei esse artigo desejando a todos os leitores um "Feliz Natal", mas me dei conta agora que na tradição lovecraftiana me equivoquei na saudação.

Mas ainda há tempo de fazer a correção.

Feliz Tempo de Yule, sejam vocês investigadores ou cultistas.

Um comentário: