sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Aquaman e Lovecraft - O que há de Lovecraftiano no filme da DC


O que Aquaman e H.P. Lovecraft podem ter em comum?

Tem se falado muito a respeito de uma conexão entre o filme da DC (talvez o melhor dos últimos tempos, inspirado por personagem da editora) e o Horror Cósmico.

Antes de seguir adiante já deixo avisado que o texto a seguir contém SPOILERS a respeito do filme Aquaman, portanto se você quiser ler, tenha em mente que partes do roteiro e da trama serão mencionadas.



Todos avisados? Então vamos em frente.

Será que estamos vendo coisas, ou ainda, querendo ver coisas, ou realmente há algo dos Mythos de Cthulhu no filme do herói submarino?

Quem melhor do que o talentoso diretor James Wan para dizer. Quando perguntado a respeito dessa influência em seu filme ele não pestanejou:

"Eu percebi que não poderia fazer um filme de Aquaman sem perceber as influências dele (Lovecraft) em mim. Então eu decidi, ‘f**-se, eu vou assumir." explicou.


A influência de Lovecraft em um filme como Aquaman pode ser explicada através da carreira do próprio diretor e roteirista. James Wan ganhou fama nos últimos anos com produções de terror que emplacaram franquias extremamente lucrativas - são criações dele Jogos Mortais, Sobrenatural e Conjuração do Mal.

Wan está, portanto, mais do que acostumado a lidar com o horror e transitar entre as diferentes variações inseridas no gênero, o que inclui obviamente o Horror Cósmico.

A inserção de acenos para a obra de Lovecraft, no entanto foi aparecendo na produção de Aquaman aos poucos. A princípio, Wan reconhece que não buscou propositalmente que houvesse algo dos Mythos no filme, mas que esses elementos foram entrando no roteiro de forma orgânica. 

Como não poderia deixar de ser, Aquaman tem lugar nas profundezas insondáveis. Um mundo praticamente desconhecido, repleto de mistérios e coisas que nós, da superfície sequer podemos imaginar. Em determinado momento do filme, comenta-se que sabemos mais a respeito do que existe fora da Terra, em outros planetas, do que aquilo que existe nas profundezas abissais. A Terra é quase toda água e não saber exatamente o que existe lá embaixo, permitiu que muitas ideias para o filme fossem adotadas com total liberdade.

"O filme mostra uma parte da Terra que nós nunca vimos antes", disse Wan. "Isso foi uma das coisas que mais me atraiu, a oportunidade de brincar com uma tela vasta"


Mas antes de falar de Aquaman, é interessante falar a respeito de como Lovecraft usou os mares como catalizador para suas neuroses. A conexão mais direta da obra de Lovecraft com o mar, diz respeito aos horrores das profundezas. No cânon Lovecraftiano, criaturas e entidades alienígenas habitam os oceanos; ocultos é bem verdade, mas sempre observando o que vive na superfície. 

Os gregos já diziam que não há nada no mundo mais misterioso do que o Mar e Lovecraft parece endossar essa noção. Em sua obra, os oceanos são o esconderijo de coisas realmente aterrorizantes. A cidade sepulcral de R'Lyeh, o lar do tenebroso Cthulhu submergiu sob as ondas e afundou em um local isolado do Pacífico Sul. Mas a cidadela de tempos em tempos, obedecendo a alinhamentos estelares, vem à superfície, trazendo consigo a Cripta do Grande Cthulhu. 

A mais conhecida das entidades de Lovecraft habita os mares e tem uma forma bizarra que remete a seres das fossas oceânicas. Dizem que o autor detestava tudo o que vinha do mar e que sentia uma náusea insuportável quando sentia o cheiro das feiras que expunham frutos do mar frescos. O Cavalheiro de Providence tomou emprestado dos polvos e lulas, que tanto o horrorizavam, a imagem para Cthulhu.

Mas dificilmente Cthulhu é o único monstro marinho na obra de Lovecraft.

"Dagon" fala de terrores submarinos habitando os recessos oceânicos, vindo à superfície, arrastando consigo parte dos mistérios das profundezas. O monstro do título é uma abominação venerada por civilizações ancestrais, um típico monstro marinho que governava os mares, tido como um Deus.


"O Templo", é outra obra de Lovecraft que menciona criaturas do abismo. No caso, um cidade em ruínas nas profundezas, cujo mero vislumbre em uma exploração com batisfera provoca loucura e terror.

Já em "O Horror de Martins Beach", escrita em parceria com Sonia Green (sua esposa), ele explora novamente o tema dos Monstros Marinhos, dessa vez uma versão colossal das lendárias Serpentes Marinhas. Uma monstruosidade tão grande que apenas os mares poderiam comportar.

Talvez seja "A Sombra de Innsmouth" a obra mais lembrada de Lovecraft envolvendo o horror que vem do mar. O conto apresenta não apenas uma criatura, um monstro ou uma lenda, mas uma espécie inteira de horripilantes criaturas marinhas, os Abissais (Deep Ones). Esses seres meio homem e meio peixe por vezes vem à superfície com o intuito de cruzar com a raça humana, gerando híbridos. São esses seres os deformados habitantes da Vila Pesqueira de Innsmouth. Eles estabelecem conluio com a raça submarina e planejam o retorno dos antigos tratados como deuses. A ameaça é tamanha que demanda a intervenção do governo americano que realiza uma operação militar secreta no lugarejo. Enquanto isso, submarinos torpedeiam uma cidade submersa e supostamente acabam com a sombra do título, ou será que não?


James Wan, como fã de horror, certamente conhece todos esses contos e bebeu da fonte deles para compor o seu mundo submerso. Há beleza e magia sob as águas, mas há espaço para muita coisa esquisita, bizarra e  certamente assustadora.  

Os acenos de Wan a Lovecraft começam logo no prólogo que conta a origem do herói submarino. A narrativa de Arthur Curry (pai de Aquaman) na qual ele descreve como conheceu sua esposa começa com a imagem de um globo de vidro contendo um farol, colocado sobre um exemplar de "O Horror de Dunwich", história de ninguém menos que Lovecraft.

Aquaman é o resultado da união entre dois mundos, o da superfície e o submarino, como é enfatizado várias vezes ao longo do filme. Na prática, ele possui uma origem mista, nascido de um pai humano e uma mãe parte de uma espécie marinha. E por ter nascido com traços de duas espécies ele é considerado diferente por ambas. Grosso modo, Aquaman, é um híbrido! Talvez ele não seja um ser meio homem, meio peixe, como eram os habitantes de Insmouth, mas ele é basicamente uma mistura de duas espécies.

Quando o filme mostra o jovem Aquaman sendo tratado como um "esquisito" pelos inevitáveis bullies do colégio ou quando seu meio-irmão, um atlanteano "puro" o chama de "mestiço" temos a sensação de que miscigenação, algo presente na obra de Lovecraft continua sendo um tema muito atual. Contudo, diferente do que acontecia nos contos, onde a miscigenação era motivo de horror, aqui ela representa uma conjunção de fatores, nos quais o herói herda os melhores traços de cada espécie.


Mas há elementos de contato bem mais óbvios!

Os povos submarinos são divididos na mitologia do filme em sete grandes reinos que se localizam nas profundezas.

Atlântida é apenas um desses setes reinos, cujos habitantes variam dramaticamente em forma e aparência. Enquanto os atlanteanos são uma raça quase idêntica aos humanos - com a diferença de respirar água, há outros povos bem diferentes. Alguns deles são criaturas com placas crustáceos e garras de caranguejo, enquanto outros possuem escamas e a anatomia dos lendários tritões e sereias. 

Uma das espécies submarinas, que habita o que é chamado de "O Reino da Trincheira", no entanto, se destaca. Esses seres são idênticos aos Deep Ones descritos por Lovecraft. São eles uma raça de homens-peixe que teriam se degenerado e abraçado a barbárie. Essa raça hostil e perigosa habita as regiões mais profundas e ataca sem provocação com uma fúria cega. 


Em uma das cenas mais excitantes do filme, um pequeno barco conduzido por Aquaman e Mera é abordado por dezenas desses monstros. A cena parece saída de uma produção de horror, com monstros escamosos cercando os heróis por todos os lados que tem que abrir caminho afastando uma horda deles. Impossível não sonhar com uma produção de "A Sombra sobre Innsmouth" depois de ver isso!

Mas isso não é tudo.

Em determinado momento do filme, sabemos que a mãe do herói foi executada no tal Reino da Trincheira como punição por ter tido um filho na superfície. E a execução teria seguido uma espécie de Ritual de Sacrifício no qual a vítima é entregue para o Karathen, um  lendário monstro submarino, verdadeiro Leviatã temido por todos os habitantes das profundezas e cuja existência é tida como mítica.

Essa abominação colossal dorme a maior parte do tempo, mas acorda de quando em quando para enfrentar aqueles que tentam derrotá-la com o intuito de reaver um poderoso artefato que está sob o seu poder. Não há nenhuma indicação de que o monstro tenha sido concebido tendo como base o Grande Cthulhu, contudo é possível arriscar que ele pode ter servido de inspiração. 


O monstro é algo titânico, monstruoso e dotado de inúmeros tentáculos. Ok, ele não tem a icônica cabeça de cefalópode que é marca registrada de Cthulhu, mas é medonho o bastante e imponente para nos fazer lembrar dele. No final do filme, quando o Karathen se une ao ataque de Aquaman a gente tem uma ideia do quão grande é o bicharoco.

A grande sacada do monstro é que ele permite que um famoso meme no qual Aquaman literalmente cavalga o Grande Cthulhu (usando seu poder de "falar com animais marinhos") aconteça. A cena é nada menos do que espetacular!

De forma geral, Aquaman é um belo filme de super-herói com doses de aventura e ação, conforme esperado. As conexões com o horror lovecraftiano sem dúvida existem e são muito bem vindas. Não sei dizer quando teremos a chance de ver Deep Ones tão bacanas e monstros marinhos tão incríveis.


Aquaman está nos cinemas! Vale a pena assistir?

Vale! Ah se vale!

Trailer:


Trailer 2:

4 comentários:

  1. Só ressaltando uma coisa: Na animação clássica da Liga da Justiça, tem um episódio que o Aquaman enfrenta um ser chamado Ichthultu (que aliás, é dublado pelo Rob Zombie), e que também é uma referência ao Cthulhu. O nome do ep é "The Terror Beyond" e foi escrito pelo Dwayne McDuffie, um dos pais do Super-Choque!

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  2. Oi Luciano! Não sei se reparou, mas em uma das primeiras cenas do filme a câmera foca em um "globo de neve" com um farol dentro, e o globo está apoiado em um livro. O livro? "O Horror de Dunwich", de H.P. Lovecraft.

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  3. Difícil não esbarrar na obra de Lovecraft, quando o assunto é o fundo do mar....

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  4. Faltou a citação de direta do arraia negra ao encontrar o Aquaman na Itália: "A repugnância espera e sonha nas profundezas, e a podridão se espalha sobre as precárias cidades
    dos homens." - É o parágrafo final de O Chamado de Cthulhu.

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