domingo, 3 de março de 2019

Revisitando Lovecraft - "O Depoimento de Randolph Carter"


"Era numa depressão profunda e úmida, coberta de mato alto, musgo e curiosas ervas rasteiras, envolvido por um vago fedorque minha fantasia ociosa associava absurdamente a pedras putrefatas. Por toda a parte havia sinais de abandono e decrepitude e eu parecia perseguido pela ideia de Warren: nós éramos as primeiras criaturas vivas a invadir um silêncio letal de séculos".

Estamos de volta com Re-lendo Lovecraft e dessa vez com "O Depoimento de Randolph Carter" um conto menor de H.P. Lovecraft e aparentemente bem simples, mas que possui uma série de detalhes interessantes. Escrito em dezembro de 1919 e publicado pela primeira vez em maio de 1920 numa edição da revista The Vagrant.

Sumário: Randolph Carter está prestando um depoimento formal após o desaparecimento de seu amigo Harley Warren. Ele conta tudo o que é capaz de lembrar para os oficiais de polícia a respeito da noite em que Warren desapareceu - de fato, ele conta tudo, várias vezes. A polícia pode prendê-lo ou mesmo executá-lo se provarem que Carter tem alguma ligação com o desaparecimento. Parece haver uma desconfiança e os detetives não estão certos a respeito de suas explicações. Carter se apega ao seu depoimento e repete que não pode ajudá-los em mais nada... Ele espera que Warren tenha encontrado um "esquecimento pacífico".


Warren era um estudante do estranho, com uma vasta coleção de livros bizarros versando sobre temas proibidos, muitos deles em árabe. Carter aceita assumir uma posição de subordinado em um experimento realizado por Warren, um em que ele parece ter esquecido o propósito. Esses experimentos são em geral assustadores e o último, tudo indica, causou o desaparecimento de Warren. Recentemente Warren falou a respeito estranhas teorias a respeito de como "certos cadáveres parecem não se deteriorar, ficando íntegros firmes e gordos em suas tumbas por milhares de anos".

Uma testemunha teria visto Warren e Carter na estrada de Gainesville, que segue para o Pântano de Big Cypress. Carter não consegue se recordar detalhes a respeito disso, mas não nega a possibilidade. Ele também não nega que estivessem carregando estranho equipamento: pás, lanternas elétricas e um aparato de telefone portátil. Warren também carregava consigo um livro que havia recebido da India no mês passado, um com uma linguagem que Carter não foi capaz de reconhecer. Carter também está certo que os dois se dirigiam para um antigo cemitério em uma área isolada e insalubre do pântano. Nessa terrível necrópole ocorre uma cena que ele nuca será capaz de esquecer.

Warren encontra um sepulcro meio aberto, que ele e Carter limpam de terra e vegetação. Eles revelam então três placas de mármore, uma que eles tem sucesso em remover. Gases miasmáticos os afastam assim que ela é aberta. Quando o fedor diminui eles verificam o interior e descobrem escadas descendo para o subterrâneo.

Warren decide descer sozinho, uma vez que Carter parece ser propenso a crises nervosas, e não ficaria à vontade com o que existe lá embaixo. Carter sequer imagina de que seu amigo está falando. Finalmente Warren decide descer usando um receptor de telefone para relatar o que está vendo no subterrâneo ao seu companheiro na superfície.


Warren desaparece na escadaria, deixando Carer sozinho imaginando procissões de sombras amorfas desfilando diante da lua cheia. Quinze minutos depois de ter descido, o telefone toca e Warren dá sinais avisando que chegou a uma câmara. Ele fala com um estranho sotaque que não parece ser seu. O que ele encontra é inacreditável e monstruoso, ele poupa Carter de detalhes, póis nenhum homem deveria saber o que existe naquelas profundezas.

Infelizmente, Warren parece encontrar algo ainda mais aterrador. Ele começa a advertir Carter a recolocar a peça de mármore e fugir enquanto pode. Carter promete que não deixará o colega para trás e que antes irá descer para ajudá-lo. Warren continua a implorar para que ele fuja o quanto antes, a voz vai ficando cada vez mais distante,, até que um chiado irrompe, seguido de uma frase bizarra:“Malditas coisas infernais… legiões… meu Deus! Vá-te! Vá-te! Vá-te! (“Curse these hellish things—legions—My God! Beat it! Beat it! Beat it!”)

Segue-se um período de silêncio. Carter evita de descer pelos degraus. Ao invés disso, senta e murmura para si mesmo, esperando o contato de seu amigo. Será que Warren ainda está lá?

Eventualmente ele ouve a coisa que o deixa em um estado de pavor e o obriga a fugir pelo pântano, onde ele é encontrado na manhã seguinte. Ele ouve uma voz, oca, distante e inumana, talvez até incorpórea. Não é a voz de Warren, e ela entoa: 

"SEU TOLO, WARREN ESTÁ MORTO."


DISSECANDO O CONTO:

O que é tipicamente Lovecraftiano: Algumas vezes, a única maneira de descrever o indescritível é usando um monte de adjetivos. UM MONTE! Lovecraft sempre fez isso, como ninguém. Ele é o Rei dos adjetivos, mas nesse conto, nesse conto em especial, ele vai muito além do repertório normal: "profundo, vazio, gelatinoso, remoto, alienígena, inumano, incorpóreo" apenas para citar alguns da lista. E nós ainda somos abençoados com um novo e infelizmente pouco usado termo tipicamente lovecraftiano: "sombras necrofágicas."

O que é Degenerado: Não há muita degeneração nesse conto. Há uma suposição de que uma coleção de livros adquiridos por Warren estão escritos em árabe - mas até aí, não há nenhuma suposição de que eles possam ter causado alguma degeneração no personagem. Há uma menção a um livro escrito em um idioma desconhecido e que parece muito suspeito. Por outro lado, há centenas de linguagens por aí, e não conhecer uma delas não significa que se trate de algo especialmente sinistro.

O que pertence ao Mythos: Randolph Carter é um dos únicos personagens recorrentes na carreira de H.P. Lovecraft, supostamente o seu alter-ego, ou alguém que ele gostaria de ser. Ele aparece em outras histórias e é o mais próximo de um herói/investigador dos Mythos. Embora aqui ele pareça em "início de carreira" e bem longe de demonstrar suas habilidades como erudito e veterano da Legião Estrangeira, Carter ainda vai se tornar um aluno do hall de honra da Universidade Miskatonic e um viajante experiente que chegará até a distante Kadath. Nada mal para quem começou babando pelo sumiço de seu colega.

Tomos e Livros Blasfemos: A expedição às profundezas do cemitério parece ter sido motivada por algo que Haley Warren leu em um suspeito livro de origem indiana. Para variar, o conhecimento prova ser perigoso para aqueles que tentam desvendá-lo. Me pergunto o que teria acontecido com os livros da coleção de Haley Warren.

O que é Insano: Warren assegura a Carter que ele não é forte o bastante para suportar as revelações do que existe no subterrâneo do Cemitério. Parece um bocado rude, mas Carter realmente reage mal à noção de que coisas abjetas e horríveis habitam aquele lugar ermo. Ademais, ele pensa repetidas vezes em descer para ajudar  colega, mas não o faz; em parte pelas recomendações para que ele fuja, mas em parte porque ele mesmo provavelmente não queria descer e ver com os próprios olhos. Se Carter descesse nós teríamos uma noção de quem, ou o que, avisou a ele que Warren estava morto. Mas possivelmente não veríamos Carter em outras histórias. De mais a mais, apenas ouvir as palavras foi o bastante para fazer Carter correr para o pântano onde foi encontrado na manhã seguinte vagando sem destino. Típico teste de sanidade mal sucedido!

Comentários e Considerações:

- O personagem Harley Warren, teria sido inspirado em Samuel Loveman, um crítico literário, colecionador de livros e colega de correspondência de H.P. Lovecraft. A ideia para esse conto surgiu após um sonho de Lovecraft no qual ele e Loveman exploravam um cemitério, embora os detalhes tenham sido adicionados posteriormente. Outro conto, "Nyarlathotep" também foi inspirado em um sonho de Lovecraft envolvendo Loveman. Curiosamente Loveman era judeu e mesmo assim se converteu em um amigo e correspondente regular de Lovecraft. Após a sua morte, Sonia Green, ex-esposa de Lovecraft teria se encontrado com Loveman e contado a ele das opiniões anti-semitas de seu ex-marido o que levou Loveman a queimar e destruir parte da correspondência que ainda estava em seu poder.

Samuel Loveman em meados de 1925
- O conto aparentemente se passa na Flórida, no Pântano de Big Cypress, que realmente existe e que atualmente é uma área de preservação ambiental protegida pelo Governo Federal. Na época ele era considerado como um pântano isolado e de difícil acesso, uma excelente escolha para uma história de horror. Localizado ao norte do Everglades, contudo, ele não fica próximo da cidade de Gainesville, como afirma o texto e não há nenhuma "Estrada Gainville" hoje ou na época passando através dele. Ao que parece Lovecraft inventou boa parte das informações a respeito da área e de seu passado. A necrópole descrita por ele também parece muito européia e antiga em relação aos cemitérios do período colonial na Flórida. Além disso, o estado é conhecido pelas cheias e terreno arenoso o que tornaria praticamente inviável a construção de uma cripta subterrânea profundo no período colonial, quanto mais em um terreno pantanoso.

- A lista de personagens na obra de Lovecraft que são afetados por um terror insuportável e perdem parcialmente a memória dos acontecimentos é longa. Talvez por isso o depoimento de Carter seja marcado por lacunas e a incapacidade de compreender os acontecimentos e fatos. Lovecraft parecia acreditar que experiências de horror extremo podiam causar um choque tão grande que a mente humana simplesmente se desapegava dos acontecimentos afim de proteger o indivíduo dessas memórias traumáticas. Algo semelhante ocorre em "Um Sussurro nas Trevas" e em "O Festival" quando os narradores se mostram incapazes de conceder uma explicação plausível dos acontecimentos.

-  "Depoimento" é a primeira aparição de Randolph Carter na obra de Lovecraft, um de seus únicos personagens recorrentes. Ele apareceria novamente em "O Inominável" ("The Unnamable" - 1923), "A Procura de Kadath" (The Dream Quest of Unknown Kadath - 1926), "A Chave de Prata" ("The Silver Key - 1926), "Através dos Portões da Chave de Prata" (Through the Gates of the Silver Key - 1932) e faria uma pequena aparição em "Além das Eras" ("Out of the Aeons" - 1932).

Randolph Carter na série Providence
- Carter entretanto tem uma primeira aparição bem pouco auspiciosa para um personagem de sua importância. Seus problemas de memória e os nervos frágeis fazem com que ele fique paralisado e impassível diante do horror. Em sua segunda aparição em O Inominável, Carter também é de pouca utilidade em uma emergência e ele parece aterrorizado diante de porões assombrados e ossadas. Já o Carter nos contos e na Novela devotados ao Reino dos Sonhos é consideravelmente mais ousado e corajoso, um verdadeiro aventureiro e explorador do desconhecido. Talvez essa transformação se dê por ele estar na Terra dos Sonhos ou talvez por ele dispor de um conhecimento invejável e aliados poderosos nos reinos oníricos. No mundo desperto, Carter também se junta a Legião estrangeira francesa e combate no Oriente Médio nos anos posteriores a Grande Guerra, o que concede a ele um pouco mais de fibra e uma aura de heroísmo. O desenvolvimento do personagem, tratado como um alter ego do próprio Lovecraft, é interessante demonstrando que o aprimoramento de Carter nas artes místicas ocasiona uma mudança também em sua personalidade.    

- Embora tenha sido um autor que criou ou ao menos ajudou a criar um gênero acessório dentro do Horror - o Horror Cósmico, Lovecraft por vezes se rendia ao gótico clássico. Ele escreveu repetidas vezes a respeito de cemitérios, casas assombradas, porões e catacumbas onde habitavam coisas aterrorizantes que não deveriam existir. Nas suas descrições estes lugares geralmente são extremamente antigos, abandonados, evitados e temidos por acontecimentos no passado. Em "Depoimento", o Cemitério Colonial é tão isolado e esquecido que os detetives que prendem Carter sequer lembram de sua existência e afirmam que nada parecido com aquilo existe.  

- Finalmente, resta a questão do que seria a criatura ou criaturas que habitam os recessos do Cemitério e fazem dele seu covil. A descrição de Warren a respeito do que ele estava vendo é bem pouco concreta, ele não fala o que estava vendo na escuridão à luz de sua lanterna elétrica e parece utilizar de metáforas para descrever essas tais coisas. Sem dúvida ele menciona algo cadavérico, putrefato e medonho, mas falha em dar mais detalhes sobre a sua natureza. Por exemplo, seria algo material como um cadáver morto-vivo e semi-decomposto ou um tipo de fantasma incorpóreo?

Um ghoul lovecraftiano
- Há suposições de que Warren pudesse ter encontrado ghouls nos subterrâneos. Essa teoria encontra sustentação em vários elementos, sobretudo se tratar de um cemitério, o habitat dessas criaturas que vivem de devorar os mortos e que se escondem nos subterrâneos. Ghouls são uma boa opção também visto que são capazes de falar e reter conhecimento dos tempos que andavam entre os seres humanos. Essa explicação é mais confortável e se encaixa bem com a frase final do conto... não se imagina que um horror ancestral tentacular fosse capaz de falar em inglês e menos ainda de operar um telefone para enviar uma mensagem assustadora para a superfície. Já um ghoul se enquadra perfeitamente em tal comportamento. Se de fato, Warren foi morto por ghouls, é pouco provável que um grupo de resgate enviado ao local encontre vestígio dele. Ghouls aparecem pela primeira vez na obra de Lovecraft em "O Modelo de Pickman" (Pickman's Model - 1925), mas não são criaturas criadas por ele, fazendo parte do folclore. Eles fariam uma nova aparição em "A Procura de Kadath".

- Um equipamento chama a atenção nesse conto: O Telefone Portátil. Essa engenhoca era considerada uma novidade incrível na época de Lovecraft e na que o conto foi escrito. Os primeiros telefones portáteis similares ao usado no conto, foram criados pelo inventor sueco Lars Magnus Ericson em meados de 1910. A ideia original é que automóveis fossem equipados com esse tipo de aparato que era conectado a postes telefônicos ao longo da estrada. O projeto foi considerado pouco prático e abandonado já que as conexões tornavam necessário escalar um poste e entender um mínimo de eletrônica para fazer as conexões corretas. A ideia de telefonia portátil, no entanto, continuou sendo extremamente atraente, tanto que outros inventores deram prosseguimento no projeto de Ericson. Durante a Grande Guerra, estabelecer centrais de comunicação seguras entre os comandantes e os soldados no fronte era uma necessidade, o que permitiu mais pesquisas na área. No final da Guerra, as tropas americanas introduziram os primeiros telefones de campo que eram grandes, pouco confiáveis e complicados de serem operados, em condições adversas.

Telefone militar portátil do tipo usado em trincheiras da Grande Guerra
Uma demonstração de utilização de um telefone portátil em 1922.
- Os telefones de campo portáteis (ou mais ou menos portáteis já que a caixa deles podiam pesar algo em torno de 45 a 55 quilos) funcionavam como uma central de telefonia móvel interligando duas pessoas. A fiação do telefone podia se estender a uma distância de até 100 metros e ela era amplificada por microfones instalados na peça do receptor que permitiam a comunicação com certo grau de distorção. É provável que no conto Carter e Warren se comunicassem com um Telefone Portátil Militar, talvez uma sobra da Grande Guerra ou quem sabe um protótipo dos projetados no período. Seja como for, o método era considerado tecnologia de ponta e Lovecraft foi especialmente genial ao incorporar esse invento a um conto de horror.

Então é isso!

Até o próximo!

4 comentários:

  1. Realmente eu imaginei um Ghoul quando li esta história pela primeira vez. Afinal, a criatura pegou o telefone e falou. Também achei estranho ela saber o nome de Warren, mas isso provavelmente deve ser porque deve ter ouvido Randolph Carter chamando-o pelo telefone.

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  2. Sobre degeneração, não é nesse conto q ele fala q Warren vai se tornando extremamente eufórico e fanático sempre q vai explicar sobre as coisas do livro e do experimento? Lembro q ele chega a ter medo do amigo em alguns momentos desses.

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  3. Eua forei o conto e achei um otimo arroz com feijão com bife bem temperado do terror, o HP praticamente escreveu um tutorial de como fazer uma boa historia de terror funcional de graça, mas não gosto de pensar em qual criatura estava dentro d atumba e matou Warren, e se foi realemnte uma criatura, acjoq ue faz parte da graça o mistério do conto não saber o que tem dentro da cripta se não as sombras e o corpod e Warren, o mistério faz parte dessa historia e considero que o verdadeiro antagonista do conto é a propria tumba escura e não algum monstro especifico em si, eu só não entendi no final se Carter fechou a porta da tumba ou simplesmente saio correndo em desespero

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  4. Acredito que quando fugiu, Carter não fechou a tumba e ela permaneceu aberta, porém, se forem mesmo Ghouls, creio que eles não saíram, preferindo permanecer no subterrâneo, onde poderiam continuar encontrando corpos para devorar. Agora sinceramente, Warren foi ingênuo de entrar ali sem dispor de alguma arma para autodefesa.

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