terça-feira, 10 de março de 2020

Faces da Morte - Mais lendas sobre a morte em carne e osso


Dando continuidade a postagem sobre a Morte Encarnada.

Contudo, nem todos os disfarces empregados pela morte remetem a personagens femininas.

Uma lenda do século XVII surgiu na cidade alemã de Lüchow, envolvendo um camponês chamado  Hans Niebuhr. Este era um simples fazendeiro que certo dia foi interpelado por um forasteiro manco enquanto viajava de charrete. O homem tinha um pedido simples a fazer: levá-lo até a cidade já que andar o incomodava muito. Niebhur concordou, mas no meio do caminho o sujeito revelou ser a Morte Encarnada, interessada em chegar a Lüchow onde pretendia contaminar a população com uma peste mortal. O fazendeiro seria poupado da doença por ter sido gentil e oferecer a carona.

Para sobreviver, entretanto, Niebhur foi instruído a fazer algo peculiar. Deveria ir até sua casa e encontrar um gancho de ferro. Em seguida, ficar nu e correr três vezes em torno de sua casa, enterrando o gancho diante da porta para que a morte soubesse que ali deveria poupar o morador. O fazendeiro decidiu que precisava ajudar seus vizinhos e amigos, por isso apanhou o gancho e correu pelado dando três voltas em torno da cidade, não apenas de sua casa. Em seguida, enterrou o gancho na estrada que dava acesso a Lüchow, salvando a todos. 

Por conta dessa ação, a vila foi preservada e de fato, a cidade continuou existindo sem um único caso de peste registrado ao longo de sua história, mesmo quando outros povoados vizinhos secaram e morreram ao longo dos séculos. O velho gancho enferrujado supostamente ainda está enterrado na entrada da cidade e enquanto estiver ali, nenhuma epidemia poderá atingir o lugar.


Nas escrituras hinduístas também existe uma representação da morte como uma pessoa de carne e osso. Yama é considerado o Senhor da Morte, ele monta um imenso Búfalo Negro cujo tropel pode ser ouvido à distância pela pessoa que vai morrer como uma espécie de anuncio de que o fim está próximo. A figura do cavaleiro é imponente, um homem grande e musculoso, com um bigode distinto, vestido de ouro e seda.

Este Ceifeiro tem como função laçar a alma das pessoas com uma corda dourada no momento que estas abandonam o corpo. Em seguida, Yama carrega a alma capturada para um lugar chamado "Yamalok", uma espécie de submundo onde as contas dos atos praticados em vida serão acertadas.

O interessante a respeito de Yama é que ele poderia usar diferentes formas para não assustar as pessoas com sua presença. Na tradição hindu, ele pode assumir a forma de uma criança, de uma vaca malhada ou mais raramente a de uma lufada repentina de vento. Temido e reverenciado, Yama não chega a ser maligno, mas sua atitude diante dos que tentam ludibriá-lo e assim ganhar mais tempo entre os vivos pode ser brutal. Em algumas representações ele carrega uma maça de batalha usada para partir o crânio daqueles que demoram demasiadamente a morrer. Em algumas tradições antigas, sacerdotes que reverenciavam Yama - os Yamaduts, assumiam a responsabilidade de acabar com o sofrimento das pessoas presas em um estágio entre a vida e a morte. Para tanto, usavam uma maça de bronze utilizada para dar um golpe mortal e assim libertar a alma para ser levada ao Yamalok.

Os judeus possuem uma figura temida que representa a morte. De acordo com o Midrash, o Anjo da Morte foi gerado por Deus no primeiro dia da criação. Ele habita o Céu, mas na tradição alcança a Terra em oito etapas de voo, enquanto os males e doenças chegam em apenas um. Por isso o anjo não intercede em favor da humanidade, sua serventia é apenas coletar as almas e levá-las em suas asas.

Diferente da representação moderna que se tem dos anjos - figuras belas e delicadas, com asas e feições humanas, o Anjo da Morte é bem pouco simpático. De fato, sua imagem chega a ser aterrorizante. Ele teria doze asas negras, sua face seria coberta de olhos para observar em todas direções e em suas mãos carregaria uma espada brilhante usada para fulminar as pessoas. Sua chegada é anunciada pelo ruído de trombetas que produzem enorme estrondo. Na tradição judaica, esse anjo atende pelo nome de Samael, e mesmo o Patriarca Moisés implora a Deus que não o mande para buscá-lo, por temer sua forma assustadora.


Quando um homem está prestes a morrer, ele tem a visão dessa entidade e como resultado sofre sua convulsão final. O Anjo da Morte então se coloca diante da vítima com a espada desembainhada, da qual pingam gotas de fel que caem em sua boca e provocam sua morte. A expressão "ao gosto da morte" teve origem na noção de que a morte deixa um gosto amargo nas pessoas. Segundo a crença, a alma imortal escapa pela boca, ou através da garganta, portanto o Anjo se posiciona acima da cabeça do paciente para sorver a alma no momento que ela é liberada. Por vezes a alma é recolhida em um saco ou em uma espécie de ampulheta de vidro.

O Anjo da Morte, como boa parte das "Mortes Encarnadas" pode assumir outras formas e a aparência que melhor lhe aprouver quando visita o mundo dos homens. Ele pode ser uma criança, um mendigo implorando caridade ou um forasteiro de terras distantes. Uma das funções de Samael é julgar as cidades e decidir se elas ofendem ou não a vontade de Deus. Aquelas que de alguma forma se mostram perversas aos olhos divinos sofrem um terrível destino nas mãos desse anjo vingador, sendo que a destruição por doença é um de seus métodos mais frequentes.

"Quando a peste se enfurece na cidade, não ande no meio da rua, porque o Anjo da Morte passará por lá ceifando as vidas. Quando a peste se enfurece na cidade, não vá sozinho para a sinagoga, porque o Anjo da Morte armazena lá suas ferramentas mortais. Se os cães uivarem, saiba que o Anjo da Morte está na cidade e ai dos homens que desagradaram ao Todo Poderoso".

Para disseminar a morte e a destruição sobre os ímpios, o Anjo da Morte sopra sobre a cidade seu hálito de morte e todos os que forem atingidos por ele irão contrair uma doença e morrer por conta dela.

No folclore chinês, a morte também é frequentemente associada a doenças e epidemias.

Chamada de Yi-kuei, ou "Demônios da Praga", essas almas perdidas existem apenas para disseminar pestes e fazer com que mais e mais pessoas sofram seus revezes. Para piorar, essas criaturas obrigam o espírito das pessoas mortas por eles a habitar uma espécie de limbo do qual jamais poderão escapar. Lá se tornam escravos desses demônios pela eternidade.


Para se proteger dessas entidades malignas camponeses recorrem a uma série de rituais, atos de penitência ou costumes que podem ser vistos como bizarros aos olhos de estrangeiros. O mais peculiar era chamado de "Festivais da Peste" que supostamente ainda acontecem em algumas regiões rurais da China. São eventos festivos realizados com o intuito de banir os demônios e impedir que eles causem maiores tristezas e tragédias. Nessas festas imagens das entidades são talhadas em madeira e queimadas em praça pública. Até aí nada de mais, contudo os rituais podem assumir uma faceta bizarra no decorrer das festividades.

Uma das práticas envolve desenterrar as seis últimas pessoas recém falecidas. Os cadáveres são limpos, vestidos e colocados em um lugar onde possam atrair os demônios, de preferência uma praça ou mercado movimentado. O objetivo é que as entidades entrem nesses cadáveres e que uma vez dentro sejam neles aprisionados. A seguir, os corpos são colocados em pequenas embarcações, levados para o mar aberto ou meio de lagos onde são jogados com pedras amarradas nos pés. O peso faz com que os cadáveres afundem levando para as profundezas os demônios de quem se deseja livrar. Na ausência de água, os cadáveres podem ser incinerados em piras e suas cinzas dissipadas ao vento.

Na Coréia do Sul existe um costume semelhante para se livrar da morte quando esta assume o disfarce de demônios que carregam doenças.

Trata-se do "Festival do Riso" que ocorre há séculos num pequeno vilarejo próximo de Busan. Apesar de parecer algo simpático que remonta a crença de "o melhor remédio para as desgraças é rir", há um componente um tanto bizarro na tal celebração. Segundo a crença, os demônios que servem à morte e cuja função é disseminar as pestes não suportam o som de risadas e podem ser esconjurados por ela. Risadas infantis são as melhores.

Durante o festival, procura-se por crianças que perderam algum parente recentemente e que teriam motivos para tristeza. O objetivo é fazer com que as crianças gargalhem o mais alto possível. Mas nem sempre isso acontece, sobretudo diante do falecimento de um ente querido, algo deveras traumático. Para burlar isso, as crianças podem ser obrigadas a ingerir bebidas alcoólicas ou drogas que liberem seus risos. Se isso falhar, os responsáveis pelo Festival podem chegar ao ponto de amarrar as crianças para fazer nelas cócegas até que comecem a rir sem parar. Pode parecer bobagem, mas a ideia de uma criança amarrada recebendo cócegas mais parece uma tortura do que uma brincadeira inofensiva.


A Morte Encarnada pode assumir, entretanto formas mais vagas e indistintas como por exemplo de animais.

No Egito do século XI, existia a crença de que a morte podia assumir a forma de uma imensa besta semelhante a um felino de corpo sinuoso e escuro. Essa criatura espreitava próximo das casas com o intuito de soprar na boca das pessoas seus miasmas pestilentos. Essa criatura entrava pela janela ou se insinuava para dentro, convencendo crianças a abrir a porta e permitir que se escondessem nas sombras.

Essa lenda, carregada para a Europa medieval podem ter dado origem posteriormente à crença de que felinos, em especial gatos pretos, se insinuam na cama ou berço de recém nascidos para sugar a respiração e assim matá-los por falta de ar. Tolice supersticiosa sem dúvida, mas uma crença que contribuiu para criar a noção de que gatos pretos são traiçoeiros e causadores de azar.

Nas montanhas de Odenwald, na Alemanha, existe uma lenda na qual a Morte assume a forma de uma chama azulada que se instala na lareira das casas que decide visitar. Durante o inverno, quando está muito frio, é costume acender lareiras para esquentar a casa, mas se a morte estiver ali escondida, a chama quando acesa irá emitir um repentino brilho azul. Se isso acontecer, a casa ficará marcada e todos os residentes ali dentro irão morrer antes do final do inverno.

A única maneira de lidar com essa ameça, segundo a tradição é reservar o primeiro dia de inverno e nessa noite evitar de acender a lareira, não importando o quão frio esteja. Se a lareira não for acesa quando ela se mostrar mais necessária, a morte se sentirá frustrada e partirá de mãos vazias. Em uma cidadezinha chamada Erbach, há uma tradição antiga ligada à essa lenda. Diz ela que a Chama Azul que representa a Morte teria sido aprisionada em uma lareira instalada na Igreja. Enquanto essa lareira permanecer apagada, a Luz Azulada não poderá sair e deixará os habitantes de Erbach em paz. 


A origem destas lendas e de misteriosos portadores de doenças mortais parece enraizada em nosso inconsciente coletivo, reminiscência de tempos em que não havia a compreensão de como tais doenças se espalhavam. Em tempos não tão antigos, o saber a respeito de coisas como bactérias e virus era ignorado, ou incompleto. Não se sabia ao certo como as doenças se espalhavam, como elas trabalhavam ou como poderiam ser contidas. Tudo o que se sabia é que quando uma epidemia começava, ela causaria horríveis perdas. 

Conceder uma face a essa força invisível e reputar à ela a culpa pelos males que afligem as pessoas parece ser um comportamento bastante humano. Parece que precisamos dar uma face a algo que nos aflige para poder compreendê-lo. Ao personificar a Morte Encarnada em uma forma tangível, essas culturas conseguiam ter uma certa compreensão do mal que as atingia e como ela parecia se deslocar de um lugar para outro.  

Entretanto, é notável perceber o quanto desse folclore parece surgir da ignorância quanto ao conhecimento médico e como este mesmo conhecimento se deixava contaminar por noções de paranormal. Na ausência da ciência, a única explicação viável era acreditar na existência de uma força sobrenatural agindo.

Mas mesmo hoje, sob a ameaça de uma doença misteriosa, de uma força invisível que lança uma sombra sobre a nossa civilização, será totalmente absurdo se pessoas começarem a ver a Morte Encarnada uma vez mais? Diante de epidemias como a do Sars, H1N1, Influenza e mais recentemente Corona Virus (Covid-19), quem pode imaginar quanto tempo irá levar até as pessoas começarem a ter um vislumbre da Morte à espreita?

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