sábado, 25 de setembro de 2021

A Mortalha Branca - a Lenda do Fantasma de Hammersmith


Durante os meses de novembro e dezembro de 1803, Londres foi tomada por um estado de puro terror. 

O movimentado Distrito de Hammersmith foi atormentado por seguidos avistamentos de um fantasma de aparência macabra que deixava a todos moradores e transeuntes apavorados. O terror era palpável nas ruas: as pessoas evitavam sair de casa depois do anoitecer e moradores se trancavam em seus domicílios, passando a madrugada em estado de vigília, rezando e pedindo proteção divina. Sob o umbral das portas colocavam crucifixos ou escreviam orações. Tudo isso porque o Fantasma de Hammersmith estava à solta e podia visitar qualquer um.

Todas as noites os relatos sobre a mesma aparição malévola inundavam a delegacia de polícia. De acordo com a maioria das narrativas, o espectro estava determinado a interpelar qualquer um que tivesse o azar de cruzar o seu caminho. A coisa foi descrita como um homem nu e pálido, vestindo uma mortalha branca ou pele de bezerro - uma típica vestimenta usada para cobrir cadáveres, e tendo grandes olhos vítreos. Ele se movia de forma mecânica ou segundo alguns flutuava a poucos centímetros do chão, estendendo a mão esquelética para tocar com os dedos gélidos a pele das pessoas. Alguns iam mais longe nessa tétrica descrição, afirmando que o Fantasma era capaz de atravessar a carne de suas vítimas e com um toque enregelar o coração, provocando a morte em instantes. Por qual razão ele fazia isso, além da maldade pura e simples, ninguém sabia dizer. 

Um dos encontros mais alarmantes envolveu uma mulher idosa e sua acompanhante, uma moça que na ocasião estava grávida. As duas mulheres teriam ficado com tanto medo ao ver o fantasma que morreram de susto em suas camas. Aqueles que viram os corpos disseram que a expressão delas era de completo pavor e que foi o medo petrificante a causa de suas mortes. A porta do quarto trancada por dentro e as janelas lacradas eram uma terrível confirmação de que ninguém estaria à salvo dos ataques do espírito. Outro avistamento envolveu um carroceiro que perdeu o controle dos cavalos e o veículo que ele conduzia, uma composição, descarrilhou provocando grande confusão. Os passageiros que ele levava ficaram feridos, alguns com gravidade. Nessa ocasião pelo menos seis pessoas testemunharam a assombração cruzando rapidamente o caminho da composição e assustando os animais que saíram em disparada. Finalmente, um cervejeiro chamado Thomas Groom afirmou ter sido estrangulado por trás enquanto cortava caminho através do cemitério de uma igreja. Ele ouviu o som de lamento da assombração poucos segundos antes de ser atacado. O homem conseguiu lutar com seu agressor e escapar, mas ainda teve tempo de ver o fantasma desaparecer atrás de uma fileira de lápides.


Os residentes de Hammersmith estavam dispostos a qualquer coisa para esconjurar a ameaça. Especulava-se que o fantasma pertencia a um homem chamado Peter Meers que teria cortado a própria garganta 12 meses antes numa hospedaria local no coração do distrito. O sujeito era um comerciante que contraiu dívidas e estava sendo ameaçado por agiotas, cobrado constantemente para pagar o que devia. Cedendo ao desespero Meers se matou, mas seu corpo foi encontrado apenas dois dias depois no aposento que havia alugado. O cadáver pálido, endurecido e mordido por ratos, foi levado para o necrotério, mas como ninguém o reclamou, acabou sendo mandado para a escola de anatomia afim de ser dissecado e servir ao propósito de estudos médicos. A história parecia se encaixar perfeitamente em circunstâncias que poderiam levar uma alma a vagar sem descanso. Suicídio era um pecado mortal e acreditava-se que as pessoas que o cometiam estavam fadadas a não ter descanso. Além disso, muitos consideravam que a dissecação nas mãos de anatomistas era uma blasfêmia e que tal coisa podia trazer graves repercussões.    

A opinião geral era de que o fantasma de Meers buscava vingança após a morte pelos sofrimentos sofridos em vida.

O temor era tamanho que a Escola de Anatomia de Londres foi cercada por uma multidão que furiosa exigia a devolução dos restos mortais do sujeito para que ele pudesse obter descanso. Diante de uma turba violenta, o Diretor do hospital concordou em entregar os restos de uma vítima que foram levados pelo bando e depositados sem cerimônias em um jazigo num cemitério. Na lápide alguém escreveu com giz: "Aí está seu descanso, agora nos deixe viver em paz e tranquilidade"!

Mas isso não foi o bastante e poucas noites depois testemunhas afirmaram ter visto o Fantasma de Hammersmith novamente, vagando pelas ruas desertas com sua mortalha branca, causando terror e confusão por onde passava. A polícia londrina disse que não poderia fazer muita coisa, mas a população estava decidida a não ficar parada diante dessa ameaça sobrenatural. Alguns céticos formaram um comitê de vigilância, algo muito comum no período, e passaram a rondar as ruas pelas madrugadas frias à procura do tal "espírito". 


Em 29 de dezembro, membros do grupo, incluindo o vigia noturno William Girdler, avistaram uma figura cadavérica envolta em uma mortalha à espreita na área. Ao invés de fugir, Girdler deu início à perseguição à figura que tentou escapar em disparada; no meio de sua perseguição, ela perdeu sua mortalha no caminho. O pedaço de linho branco transparente, idêntico aos usados nas casas funerárias da cidade, foi apresentado no mercado local para uma população assustada.

Quatro dias depois, Thomas Millwood, um gesseiro de 32 anos, estava voltando para casa pela Black Lion Lane na noite de 3 de janeiro de 1804. Havia acabado de chegar da casa de seus pais e ainda estava usando suas roupas de trabalho; avental, colete, e calças cobertas de pó branco. Um dos vigilantes chamado Francis Smith avistou Millwood e imediatamente gritou: “Maldito seja. Quem é você e o que você quer? Eu atiro se não falar!" Sem esperar por uma resposta, Smith disparou dois tiros, um dos quais atingiu Millwood no rosto e o matou imediatamente.

Ao ouvir os tiros de sua casa, Anne Millwood chamou o nome de seu irmão nas ruas, mas não obteve resposta. Ela correu na direção da Black Lion Lane e o encontrou esparramado no chão, coberto de sangue. Assim que ficou evidente que Millwood havia sido vítima de erro de identidade e que Smith disparou sua arma sem chance de reação, ele se rendeu à polícia. O corpo de Millwood foi levado para o Black Lion Inn e examinado pelo cirurgião local, onde foi constatado que um ferimento a bala na mandíbula esquerda e subsequente lesão na coluna foram a causa da morte.

Dois dias mais tarde, um homem franzino chamado John Graham, funcionário de uma tradicional Casa Funerária de Londres foi preso pela Polícia e acusado de ser o Fantasma de Hammersmith. Graham havia se gabado com um assistente da Casa algumas semanas antes e este finalmente procurou a polícia para contar a história. Na casa de Grahan, os investigadores encontraram duas mortalhas escondidas no fundo de uma gaveta, além de talco branco que ele usava para obter a aparência cadavérica. Grahan tinha em seu poder joias e objetos preciosos surrupiados de cadáveres que haviam passado pelas suas mãos. Mas o pior é que ele colecionava alguns pequenos souvenires macabros, entre os quais dedos, orelhas, línguas e até genitais obtidos em seu trabalho como preparador de funerais. Perante os investigadores, o acusado reconheceu sua culpa e disse ser um necrófilo de longa data.


Ele afirmou que se sentia mais à vontade com os cadáveres do que com pessoas vivas. Costumava fantasiar que estava morto, deitava em caixões e adorava andar pelos cemitérios de madrugada. Em tais ocasiões despia as roupas e andava nu, coberto apenas com uma mortalha funerária. Em um desses passeios macabros, ele acabou sendo visto por uma pessoa e precisou fugir. A experiência fez com que ele sentisse um tipo de excitação mórbida e semeou na sua mente o desejo de repetir aquilo. Grahan reconheceu que havia se passado por fantasma repetidas vezes, mas que não desejava ferir ninguém.

Sua confissão não explicava por que algumas pessoas haviam sido atacadas e outras feridas por um suposto espírito vingativo. Ele garantiu que jamais havia atacado ou ferido ninguém e que sua reação quando visto era simplesmente escapar. A explicação de Grahan para os casos de pessoas feridas ou aterrorizadas era simples: Havia realmente um fantasma vagando por Hammersmith. Ele próprio afirmava ter visto o espectro em suas andanças pelas ruas do distrito.

Os juízes chamados para analisar o caso não sabiam como proceder e depois de deliberar por alguns dias, concluíram que o acusado sofria de alguma doença mental que o compelia a se passar por um fantasma. Decidiram que ele estaria melhor em um manicômio longe do convívio com a sociedade. Os registros não mostram qual foi o destino final de John Grahan, mas confirmam que ele deu entrada como paciente no lendário Royal Bethlen Hospital, a mais antiga e infame das Casas Psiquiátricas de Londres, verdadeiro depósito para loucos e maníacos no período. Não há qualquer menção de saída, portanto é provável que o assistente funerário necrófilo tenha morrido atrás dos muros do hospício.

No inquérito movido contra Francis Smith, ele foi considerado responsável pela morte de Thomas Milwood e enviado para a Prisão de Newgate. Uma semana depois, Smith se declarou inocente, apesar de admitir que disparou o tiro que matou Milwood. Como ninguém realmente testemunhou o tiroteio, o ônus da prova recaiu sobre a promotoria. Smith agravou seu apelo justificando suas ações como legítima defesa. Várias testemunhas de caráter atestaram sua boa reputação e surpreendentemente, a sogra de Millwood, Phoebe Fulbrooke, testemunhou que o genro havia sido vítima do Fantasma de Hammersmith. Ela o advertiu contra o uso de roupas brancas à noite, pois isso enfurecia o espírito. A mulher ainda testemunhou que o genro ignorou sua sugestão e por isso acabou morto.


Depois de uma longa análise dos fatos, o tribunal considerou Smith culpado de assassinato e o condenou à morte na forca. Posteriormente, no entanto, o Rei George III comutou a sentença de morte para um ano de prisão com trabalhos forçados. Em 14 de julho de 1804, ele recebeu o perdão total e foi posto em liberdade.

Nos anos que se seguiram ao conturbado Caso do Fantasma de Hammersmith, o espírito vingativo foi visto repetidas vezes por testemunhas que o descreviam da mesma maneira. Uma aparição pálida e coberta por uma mortalha branca. Alguns passaram a acreditar que John Grahan não passou de um bode-expiatório, apresentado pela polícia como culpado de um crime que não havia cometido e que o verdadeiro culpado era de fato um fantasma. Até os dias atuais, a lenda a respeito do Fantasma de Hammersmith continua sendo contada e habitualmente surge alguma testemunha afirmando ter cruzado o caminho da assombração mais famosa do distrito. Pelo sim pelo não, muitos residentes tradicionalmente evitam vestir branco à noite e andar pelas ruas desertas. 

Ironicamente, Thomas Milwood, o homem morto a tiros porque foi confundido com um fantasma supostamente também passou a ser visto assombrando o lugar onde morreu. Diz a lenda que a cada aniversário de seu falecimento, o fantasma do gesseiro aparece no bar que agora ocupa a esquina em que ele foi alvejado. É tradição em Hammersmith que as pessoas nessa data bebam uma cerveja em sua homenagem e brindem pedindo que ele encontre descanso.

Londres é de fato uma cidade com histórias curiosas. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário