domingo, 3 de outubro de 2021

Mera Superstição - Um conto curto


Escrevi esse texto um tempo atrás no grupo Mundo Tentacular do Facebook e achei que havia acidentalmente apagado e perdido. Encontrei por acaso e achei melhor preservar ele aqui. Criei essa lenda baseada na imagem de um estranho objeto que circulou pela internet na época. A imagem está no final do texto.


Mera Superstição
 por Luciano Giehl

No século XVI, uma velha chamada Hermida habitava uma choupana na região do Porto. Era uma anciã encarquilhada, estranha e feia feito o pecado de quem as boas pessoas desgostavam, mas cujas habilidades para auxiliar em partos eram conhecidas nas cercanias. A velha, dada a episódios de sandice, falava de uma tal Cabra Negra (chamava esta de "mãe") e gritava seu nome rodopiando enlouquecida num frenesi medonho. Quem viu tal coisa, correu em disparada, aterrorizado pelo que a imagem evocava. Contudo, como ela auxiliava as mulheres em necessidade, era tolerada. 

Era sabido que Hermida conhecia rituais antigos que tornavam o ventre das mulheres fértil. Até alguns fidalgos recorreram a ela, desejando um mui antecipado herdeiro, pois a mulher sabia de segredos que só velhas como ela, conservam.

Quando os homens do hábito escarlate souberam a respeito de Hermida, decidiram visitar sua rude morada. Invadiram o local e se surpreenderam com o que encontraram lá. As provas de bruxaria eram óbvias: haviam patuás, mandingas e todo tipo de malefício. Acharam vidros com placenta, cordões umbilicais, prepúcios e fetos mal formados boiando em jarros transparentes. Líquidos abjetos e beberagens em frascos, além de gordura de crianças e outros ingredientes nefastos, usados para os feitiços mais perversos.

"Bruxa!" gritaram os homens do Santo Ofício. "Bruxa! Bruxa!" ecoaram as pessoas do Porto.

A velha Hermida foi levada para as masmorras e apresentada aos instrumentos, ao ferro e ao fogo. Seu corpo franzino foi partido na roda, beliscado pelas pinças quentes e flagelado pelo gato de nove caudas. Mas a bruxa continuou calada, nada dizia sobre a padroeira negra diante da qual se prostrava em adoração. Por fim, conduziram-lhe para a catacumba mais profunda onde ela pediu a intercessão de sua senhora.

"Iä! Iä! Cabra Negra. Iä! Iä!" murmurava a velha demente em sua cela.

Foi o acaso que livrou a velha Hermida de arder na pira flamejante ou mergulhar num cadafalso durante um Auto de Fé. A Coroa portuguesa havia decidido esvaziar suas masmorras e mandar para terras distantes além mar todos indesejáveis que lotavam as prisões de Coimbra à Lisboa. Seria degredada para uma terra primitiva onde selvageria se confundia com beleza natural. Verdadeiro inferno na Terra, contavam, lugar de pecados inenarráveis, confirmavam outros.

Mas antes de partir na jornada rumo à distante colônia, Hermida deixou uma vingança no solo barrento do Porto. No tempo que passou no cárcere, esculpiu em madeira um pequeno toco que consagrou em nome da tal Cabra Negra. Tal instrumento maligno apunhalaria o coração de pais e traria tragédia sem precedente, na forma de tristeza e pesar ao povo da cidade. O poderoso artefato, era uma peça de aspecto repulsivo com a efígie de um recém nascido lamuriento talhado de um lado, unido a um punho esverdeado na extremidade oposta.

Antes de embarcar na nau sórdida do degredo, a velha vociferou palavras estranhas que ecoaram pelas docas como um mau agouro. A seguir produziu em suas mãos a peça maligna na qual cuspiu. Finalmente, erguendo o vestido em farrapos que vestia, introduziu desafiadoramente dentro de si própria a coisa maligna, proclamando: 

"Eu lhes deixo a ruína que é meu útero estéril. A poeira dele é de vocês agora".

Os marinheiros supersticiosos fizeram o sinal da cruz, até que um mais valente empurrou a velha que rolou as escadas porão abaixo, longe dos olhos arregalados. Antes contudo, ela teve tempo de arremessar a coisa que rolou e foi cair numa calha de coleta da chuva, perdendo-se para sempre.

Naquela mesma noite e nas que se seguiram, o Porto experimentou um fenômeno atroz que ficou para a posteridade conhecido como a "Longa Noite das Lágrimas". A alegre espera pelos rebentos foi substituída pela tragédia que visitou inúmeras casas na cidade, das mais humildes, às mais ricas. Documentos de época registram que a quantidade de abortos naturais foi notável, embora "natural" não pareça ser uma palavra adequada. Em muitos casos, mães e crianças morreram juntas pois o mal que afligia uma à outra contaminava. Fetos foram enforcados por cordões umbilicais ainda no útero. A placenta se tornou veneno e descamou como uma lama purulenta. Crianças semi-formadas eram expelidas em torrenciais sangramentos, como sementes expurgadas de um fruto maduro. Um surto de mães acometidas por um frenesi puerperal se espalhou e inúmeras crianças foram esganadas em seus bercinhos. Nos partos forçados, executados em caráter de emergência, os recém nascidos viviam apenas o suficiente para balir como cabras famintas, antes de morrer.

Não houve canção de ninar ou alegria no Porto por dias e dias... pequenas caixas de madeira semearam o chão fértil dos cemitérios. "O Purgatório ficou repleto de inocentes" decretou um Bispo sabendo que aquele era o fim para os não batizados.

Quanto à velha Hermida, pouco se sabe de seu destino final. Da sina dos degredados a ninguém costuma interessar. Contudo, na Capitania de São Tomé, na Vila de Piratininga em 1578, dizem que surto semelhante transcorreu. A culpa recaiu sobre uma velha parteira que andava por aqueles cantos, dada a falar sandices tresloucadas sobre uma tal Cabra Negra e de suas milhares de crias. Após a tragédia de Piratininga foi achado fincado no chão, diante da igreja, uma peça de madeira talhada com a cabeça de um bebê e um punho cerrado na outra extremidade. 

Ninguém jamais soube de que se tratava.

A peça insólita sobrevive até os dias atuais, como curiosidades dessa lavra costumam perdurar muito além de sua época. Está lá, atrás de um vidro empoeirado e é exibida como curiosidade num Museu da Capital Paulista. Dizem ser melhor que mulheres grávidas não a vejam, pois mais de uma foi acometida de um mau súbito ao contemplá-la.

Mera superstição, com certeza.

3 comentários:

  1. Maravilhoso como sempre, mestre Vulto. Fosse este um roteiro, e caísse nas mãos de Dario Argento, teríamos a quarta bruxa nos cinemas: Mater Abortum.

    Adorei, do início ao fim. E creio que você saiba que fim este conto terá no Teatro Escuro, certo? Abração. 8)

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  2. Excelente conto. Bem sinistro mesmo. Tudo que envolve bebês é sinistro né.
    Caramba

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  3. bom conto. sinistro e trágico na mesma medida. achei que a cabra fosse o diabo, nem lembrei de shub.

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