quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Montes de Ossos - A descoberta de um cemitério perdido e suas lendas


"Nunca são apenas ossos... todos eles possuem uma história".

Em 2017, uma família de York resolveu fazer uma trilha por um terreno florestal nos arredores da cidade de Hull, no Norte da Inglaterra, onde estavam passando férias.

Pai, mãe e duas crianças de 8 e 10 anos decidiram cruzar um descampado que os levaria até um agradável parque do outro lado. Haviam árvores e arbustos naquela área, mas o terreno era bastante plano, o que lhes permitia correr e brincar, com o cachorro da família, um Setter, que os acompanhava. Em determinado momento, uma das crianças percebeu que o cão estava escavando uma área, e foram ver o que o animal havia encontrado. As crianças viram que ele trazia algo na boca, e como o animal queria brincar, começaram a atirar o objeto para que ele buscasse repetidas vezes. Só então o pai percebeu que aquilo que as crianças julgavam ser um pedaço de madeira, era na verdade um fêmur humano. Ele então foi até o lugar onde o cão havia desenterrado o osso e lá descobriu que havia outro, e outro e mais outro...

A Família correu imediatamente para a cidade para relatar às autoridades o que haviam descoberto temendo que pudesse ser a cena de um antigo crime. Descobriram que se tratava de uma longa vala com cerca de 200 metros de extensão, contendo milhares de ossadas ali depositadas sem cerimônia.

A descoberta resolveu uma longa discussão à respeito da localização para onde restos mortais haviam sido transferidos no final século XVIII. Os registros da comunidade citavam que tal coisa havia acontecido entre 1783 e 1785, para que o Cemitério da Santa Trindade fosse esvaziado e transferido para outro local já que originalmente ele ficava no centro da cidade. Os ossos começaram a ser trazidos em grande quantidade para três valas escavadas nos arredores, duas já eram conhecidas, mas a localização exata da terceira ainda era uma incógnita. 


A descoberta motivou um trabalho de escavação iniciado em 2019 que resultou na exumação de algo próximo de 10,000 esqueletos humanos. Durante o auge dessas escavações, coordenadas pela Universidade local e que duraram aproximadamente um ano, cerca de 300 esqueletos completos foram achados em uma única semana.

Os pesquisadores encontraram caixões em boas condições, repletos de uma panóplia de acessórios decorativos em prata e latão, além de túmulos de tijolos com designs variados que eles acreditam pertencer a pessoas de posses. Além disso, descobriram vários dispositivos chamados cofres-fortes que foram construídos a fim de impedir a ação de ladrões de sepulturas. Estes dispositivos geralmente consistiam de uma cinta de ferro simples colocada ao redor do caixão de madeira como uma proteção extra, mas haviam outros ainda mais elaborados. Alguns caixões eram depositados em uma espécie de gaiola de ferro batido, dentro do qual, o caixão era encaixado cuidadosamente para impedir todo e qualquer acesso ao seu conteúdo. 

No norte da Inglaterra, essas medidas preventivas eram bastante raras, mas existem registros históricos de que no século XV, Hull passou por uma epidemia de roubos de sepultura. Havia um terror entre as pessoas de que os restos mortais pudessem estar sendo subtraídos para a realização de malefícios e feitiçaria. A Necromancia, um dos ramos mais aterrorizantes da Magia Negra havia se tornado popular naquelas paragens, ou ao menos é o que atestam alguns documentos da comarca. "Feitiçaria era uma atividade perigosa e condenada pela rígida sociedade local, mas aparentemente as pessoas recorriam a bruxas para conseguir alguma vantagem ou benefício", disse Clive Rowland, um dos diretores dos trabalhos arqueológicos. "A Necromancia era usada principalmente para estabelecer contato com os mortos, mas partes de cadáveres - ossos, cabelos, dentes e unhas, podiam ser empregadas em rituais de maldição". Nada era mais degradante do que ser usado como ingrediente de magia negra, por isso a preocupação de preservar os entes queridos após suas mortes.


Além dessas curiosidades, o trabalho arqueológico obteve da vala comum alguns objetos como alfinetes de liga de cobre, botões de osso, joias, pentes de cabelo, moedas holandesas, uma concha, além de contas de vidro azul que foram associadas às colônias europeias e à África. Foram encontrados também numerosos pratos que podem ter um dia contido sal grosso para proteger o falecido e simbolizar a vida eterna. Sal também era espalhado ao redor da sepultura recém escavada para proteger o morto dos maus espíritos. 

Curiosamente o trecho da floresta onde a vala comum foi encontrada sempre foi considerado como dos mais assombrados. Há relatos a respeito de fantasmas e aparições supostamente avistadas naquela área desde o século XVIII. Vários habitantes locais testemunharam o surgimento de espectros, alguns destes extremamente hostis. Um em especial, apelidado Mildred Maggs, pertenceria a uma feiticeira que segundo as lendas locais cometeu ao menos quatro assassinatos recorrendo a venenos. Após ser capturada em meados de 1720, Maggs foi enforcada pelo condestável local. Seu fantasma, descrito como uma medonha aparição com o pescoço pendendo num ângulo bizarro, supostamente grita e até investe contra as pessoas à noite.

Agora que as escavações na vala foram concluídas, os especialistas começarão a estudar os esqueletos para descobrir mais informações sobre eles, como padrões de saúde e doenças. Eles já notaram alguns detalhes interessantes sobre a saúde geral desses indivíduos. Análises preliminares feitas ainda durante a fase dos trabalhos sugere uma alta prevalência de doenças que causam deficiências, como raquitismo e escorbuto, além de uma alta incidência de fraturas nasais em adultos, problemas dentais graves e presença de doenças como tuberculose e sífilis.


Os restos contam uma triste história à respeito de Hull, cidade que experimentou ao menos dois momentos dramáticos ligados a epidemias durante sua longa existência. No século XIV, a Peste Negra atingiu a cidade com força vitimando algo em torno de 40% da população residente. O cemitério da Sagrada Trindade recebeu a maioria desses corpos e de outros vilarejos próximos o que explica seu tamanho. Posteriormente nas primeiras décadas de 1700, uma segunda epidemia, dessa vez de Cólera, devastou a cidade e fez um número considerável de vítimas. Novamente Hull, uma das cidades mais importantes na construção naval no país, se reergueu, mas ela jamais voltou a ter a importância que havia adquirido anteriormente.

A remoção do cemitério histórico, que, acredita-se, hospedou um dia, algo em torno de 80 mil sepulturas foi um empreendimento ousado, mas necessário para que a cidade pudesse crescer. Por muito tempo, as dimensões da necrópole faziam com que Hull fosse chamada de Cidade dos Mortos, um apelido pouco agradável. Para melhorar a imagem da cidade, e impulsionar seu progresso, o Cemitério tinha que sair. Documentos atestam que o translado dos ossos escavados se deu com o uso de carroças que dia e noite transportavam o macabro material. Alguns desses ossos eram contemporâneos da fundação da cidade, quando Monges se estabeleceram às margens do Rio Hull no século XII e batizaram o lugar como Kingston-upon-Hull.

Após as analises e catalogação dos ossos, a cidade estuda criar um novo cemitério ou quem sabe transportar os ossos para um complexo subterrâneo desativado, onde seria criada uma grande cripta.

Seja como for, após tantos anos, estes ossos poderão finalmente descansar.

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