domingo, 17 de outubro de 2021

Fanatismo Mortal - O Culto suicida de Uganda


Cultos sempre foram algo estranho e assustador. Não a noção de crença, fé ou devoção, mas a forma como essas coisas são tratadas é que em algum ponto se desvirtuam e se torna algo perturbador. Não faltam exemplos de cultos estranhos e seitas bizarras. 

Em 17 de março de 2000, centenas de seguidores do Movimento para a Restauração dos Dez Mandamentos de Deus (MRTCG) morreram em Kanungu, Uganda. A Igreja onde essas pessoas estavam reunidas foi incendiada no que foi algumas vezes chamado de suicídio em massa e noutras homicídio, perpetrado pelos líderes do movimento. A tragédia e revelações macabras feitas após a tragédia transformaram esse incidente na maior tragédia dessa natureza no século XXI.

Mas como isso aconteceu? Quem eram essas pessoas e que Movimento era esse da qual faziam parte? E mais importante; como tal coisa pode ter acontecido em nossos tempos considerados racionais?

O MRTCG era um grupo cristão renegado pela Igreja Católica Romana que considerava suas ideias subversivas por incluir nos ritos consagrados costumes tribais que não eram aceitos. A seita foi estabelecida após um famoso surto de supostas aparições da Virgem Maria e Jesus em círculos católicos na África. Essas aparições tiveram início na cidade de Kibeho, Ruanda, entre os anos de 1981 a 1989. Na ocasião, sete "videntes" começaram a prestar testemunhos de revelações sobre o retorno de Jesus como preparativo para o Fim dos Tempos. 

Uma série de visões similares de Jesus e da Virgem Maria se multiplicaram então no sudoeste de Uganda criando enorme comoção no país. Em uma ocasião, pelo menos 200 pessoas disseram ter testemunhado o fenômeno nos céus. Uma jovem de origem ruandesa chamada Specioza Mukantabana, foi uma dessas testemunhas e com base nas suas revelações o movimento começou a se formar. Além de Specioza haviam outros videntes como Paul Kashaku e sua filha Credonia Mwerinde que afirmavam ouvir instruções divinas através de sonhos.


O trio afirmou ter recebido essas visões proféticas e uma multidão começou a se reunir para ouvir suas revelações. Padres locais e ao menos dois bispos reconheceram a autenticidade das visões e declararam que elas eram verdadeiras. Uma congregação foi estabelecida no ano seguinte e o grupo recém-formado tentou se fundir a outros grupos "aparicionistas". Por fim, doze Apóstolos (seis deles mulheres) foram nomeados, e após a morte de Kashaku em 1991, um ex-sacerdote católico o Reverendo Dominic Kataribaabo assumiu a liderança do Movimento.

Os Apóstolos previam o Retorno de Jesus e o início de uma guerra mundial que acabaria causando o inevitável Fim do Mundo. Apenas algumas poucas pessoas, em especial os membros da Seita seriam salvos dessa devastação e eles dariam início a reconstrução do que restou e a um mundo novo, moldado pelas suas crenças. As mensagens também abordavam temas típicos de Uganda na época, como o Flagelo da AIDS e a Corrupção Governamental.

Eventualmente, a aldeia de Kanungu foi renomeada Ishayuriro rya Maria (Local de Resgate da Virgem Maria), tornando-se o centro da Igreja depois de 1994. O grupo converteu um punhado de padres e freiras católicos que renegaram suas afiliação cristã e abraçaram de coração a nova seita após testemunharem milagres.

O MRTCG defendia um tipo de catolicismo extremamente conservador que se espelhava nas tradições do Velho Testamento. Alguns de seus líderes e membros foram eventualmente excomungados pelo Vaticano depois que estranhos vídeos das missas vazaram na internet. Os sinais de que a congregação havia enveredado por um caminho perigoso de fanatismo e extremismo eram inequívocos. A Seita reagiu rompendo com os Bispos católicos de Uganda, declarando sua independência. 

O grupo adotou seu nome legalmente em 1995, e filiais da Igreja começaram a aparecer em várias cidades do país. O governo expressou preocupação com as violações dos regulamentos de saúde pública, segurança e possíveis maus-tratos à crianças praticados nas igrejas, mas não houve nenhuma sanção. Para a maioria dos ugandenses, o Movimento e seus membros não eram nada mais do que pessoas excêntricas, mas inofensivas. A mensagem principal do grupo era que os Dez Mandamentos haviam sido distorcidos e precisavam ser restaurados em seu teor original. A terceira edição do manual religioso usado pela Seita, escrito por Kataribaabo, proclamava: "Nossa religião é um movimento que busca conscientizar as pessoas de que os Mandamentos de Deus foram abandonados e mostrar o que deve ser feito para sua observância.


A outra mensagem direta era de natureza apocalíptica, o que ficava claro na convocação expressa pelo Líder da Seita em um dos seus pronunciamentos em 1996:

"Todos vocês que vivem nesse Planeta, ouçam o que vou dizer: Quando o ano 2000 se completar, o ano que se seguirá não será o ano 2001. O ano que se seguirá será chamado de Ano Um e a geração que seguirá terá poucas ou muitas pessoas, dependendo de quem se arrepender à tempo. (…) O Senhor revelou que furacões de fogo cairão do céu e se espalharão sobre todos aqueles que não se arrependerem. A morte chegará a eles e apenas uns poucos, os ungidos e arrependidos, serão salvos".  

Os profetas do Culto previram o Fim do Mundo para 31 de dezembro de 1999, posteriormente revisando a data e alegando que este ocorreria em 17 de março de 2000. Na ocasião, a Virgem Maria apareceria e levaria os membros para o céu. O fracasso profético pode ter induzido vários membros a duvidar dos líderes e pedir a devolução de doações que haviam oferecido. Este desenvolvimento pode ter criado uma categoria de membros considerados como "traidores" no seio da Culto. 

À medida que o dia 17 de março ia se aproximando, os membros da Igreja pareciam cada vez mais agitados e ansiosos, já que aquela era a data profetizada. Na véspera vários membros do Culto foram vistos se despedindo de seus parentes, distribuindo seus bens ou chorando de forma inconsolável diante do que viria a acontecer. Um dos templos chegou a ser visitado pela polícia depois de denúncias de algazarra no meio da madrugada. 

Uma das Apóstolas visitou aldeias próximas anunciando a vinda da Virgem Maria e convidando todos a se refugiar na Igreja em Kanungu onde estariam protegidos da Tempestade de Fogo que desceria dos céus. Alguns aceitaram acompanha-la e foram até o templo ignorando o que aconteceria. Ao que tudo indica, alguns membros sabiam sobre o plano de suicídio, outros foram simplesmente informados sobre um evento sobrenatural iminente, mas não esperavam morrer. Na tragédia haviam três categorias de vítimas: aquelas que sabiam do suicídio; aqueles que esperavam ir para o céu, mas não sabiam como; e os "traidores" que duvidaram da Profecia. 

Não há como estabelecer uma cronologia exata dos fatos que levaram à tragédia naquele dia 17 de março, mas o que se supõe é que um grupo de aproximadamente 580 pessoas se reuniu na Igreja em Kanungu no final da tarde. Estas pessoas foram chamadas às pressas para o templo afim de ouvir a proclamação do Líder do Culto. As portas foram fechadas e trancadas para que o importante comunicado não fosse interrompido. Em algum momento, Kataribaabo e seus discípulos anunciaram que o mundo estaria chegando ao fim e que aquele era o momento tão aguardado, o da confirmação dos fiéis. É possível que alguns dos presentes, não tão certos do alegado "fim dos tempos", tenham pedido para ir embora ou ainda, que tenham levantado dúvidas sobre a Profecia. Prevendo que tal coisa poderia acontecer, os "traidores" foram eliminados com golpes de faca, machete e porrete.


Esses traidores, que totalizavam ao menos 40 indivíduos, foram literalmente massacrados pelos demais membros da Igreja. Dado o estado dos cadáveres encontrados posteriormente numa vala comum, é possível afirmar que eles tenham sido brutalmente agredidos pelos demais. Não é raro que a devoção de membros de um culto seja testada em momentos assim e que o líder tenha incentivado todos - mesmo as crianças presentes, a participar da punição. Após a chacina, os corpos foram embrulhados em lonas, arrastados para fora e atirados numa vala comum. Alguns moradores de Kanungu ouviram gritos e movimentos estranhos na parte de trás da Igreja, mas não estranharam nada.

Enquanto alguns se livravam dos traidores, o sangue deles era lavado do chão da igreja e os preparativos para o culto noturno eram agilizados. Eles tinham pouco tempo, já que acreditavam que o mundo terminaria precisamente meia noite. Testemunhas relataram que os gritos, cantos e gritaria generalizada no interior da Igreja (algo relativamente comum nos dias de culto) estavam muito mais altos naquela noite e muitos imaginaram o que poderia estar acontecendo. Contudo, ninguém quis se aproximar para saber do que se tratava.

Em algum momento da celebração, quando o relógio se aproximava das 23 horas, copos plásticos descartáveis contendo refrigerante misturado com veneno começaram a ser distribuídos aos presentes. Estes deveriam beber e depois deitar no chão da igreja esperando pelo chamado de Deus. Em teoria, aquela demonstração visava separar os últimos "traidores" dos "justos", pois os primeiros morreriam com o efeito do veneno, enquanto os demais apenas iriam dormir e despertar após o Fim do Mundo ter ocorrido. A autópsia dos cadáveres demonstrou que a maioria das pessoas na igreja consumiu o veneno e morreu poucos segundos depois. 

Não se sabe ao certo se os líderes haviam previsto esse desfecho ou se eles esperavam que alguns dos fiéis realmente sobrevivessem, de qualquer maneira, o reverendo Kataribaabo havia adquirido 50 litros de ácido sulfúrico. A substância foi usada para iniciar um incêndio na igreja que se espalhou rapidamente pela estrutura de madeira. Por volta de 12:30, ouviu-se uma grande explosão vindo do Templo e logo em seguida todo ele foi tomado pelas chamas. As autoridades foram chamadas imediatamente, mas quando chegaram o prédio já havia desabado transformando o interior num inferno flamejante.

Os 540 membros do culto que estavam na Igreja morreram no incêndio, inclusive o Líder e seus Apóstolos. Estes foram identificados entre os cadáveres calcinados, ainda que mais tarde o governo de Uganda tenha emitido um mandado de prisão para todos. Os registros dentários dos líderes não estavam disponíveis e foi impossível determinar se eles de fato morreram no incêndio (como suas famílias acreditam) ou escaparam com o dinheiro do movimento (como o governo de Uganda suspeitava). A ideia de que os líderes eram golpistas também foi a explicação preferida pela mídia. Posteriormente novas análises constataram que toda liderança do MRTCG pereceu na conflagração. 

Mas se isso não fosse o suficiente, o pior ainda estava por vir. 


Uma nação traumatizada que havia acabado de assistir uma tragédia teve de confrontar uma outra realidade ainda mais tenebrosa e maligna. A medida que as equipes de remoção retiravam cadáveres carbonizados dos destroços, outros corpos mais antigos começaram a ser encontrados. Seis cadáveres foram achados numa sala selada na igreja que não foi atingida pelo incêndio. A autópsia indicava que as pessoas haviam morrido há pelo menos um ano. Desconfiados de que algo sinistro estava acontecendo, as autoridades ugandenses começaram a fazer escavações no terreno da Igreja de Kanungu. Além das 40 pessoas que haviam sido assassinadas na noite em questão, valas clandestinas revelaram mais 18 corpos em diferentes estados de decomposição.

Chocada a população assistia as igrejas pertencentes ao Movimento serem revistadas. E de cada uma, surgiam informes de que cadáveres eram encontrados aos montes. No complexo de Buhunage foram achados 153 cadáveres, na fazenda pertencente ao líder do Culto Dominic Kataribaabo, que servia como local de encontro, mais 155 cadáveres foram desenterrados, além de 81 corpos na propriedade de um dos Apóstolos. Estes cadáveres pertenciam invariavelmente a ex-membros do Movimento que em algum momento haviam levantado questionamentos à respeito da filosofia, da doutrina ou dos rituais impostos pelo Culto. Eram, também pessoas que pediram a restituição de suas doações quando se desligaram da Igreja. Ao que tudo indica, os chefes do Movimento convidavam estas pessoas para uma reunião afim de acertar as contas e na ocasião os envenenavam ou drogavam. As vítimas haviam sido estranguladas enquanto agonizavam ou estavam inconscientes. Estes eram os membros "fracos", considerados como não totalmente preparados para demonstrar sua devoção ao Culto e que haviam sido considerados por eles como "traidores".

Ainda hoje, Uganda é o centro de centenas de movimentos religiosos, muitos deles apocalípticos e milenares. Isso não é surpreendente, já que Uganda experimentou um "apocalipse institucional" durante o regime sangrento de Idi Amin Dada e devido às atrocidades de uma Guerra Civil. Seguidores de movimentos apocalípticos em Uganda esperam que a Justiça chegue com o fim do mundo, não por meio da política. O país pobre e atrasado possui enormes problemas e enfrenta frequentes crises econômicas e sociais.

Após a tragédia de Kanungu, alguns governos africanos reagiram fortemente contra a presença de "cultos". O risco é que essa proibição se desenvolva numa caça às bruxas, levando as pessoas a assumir que os movimentos religiosos são todos violentos. Na África, como em outros lugares, as afirmações de que todos milenaristas e apocalípticos estão caminhando para o suicídio em massa são imprecisas. Ainda assim, as autoridades fazem bem em seguir certos indícios para evitar tragédias como a que se abateu sobre Uganda.

Um comentário:

  1. Acho que vale um aviso de tema gatilho no post. tema sensível.

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